Edição 228 | 16 Julho 2007

Uma conversa com Clarice Lispector

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IHU Online

A procura da palavra no escuro é o título da dissertação de mestrado de Gabriela Lírio, que foi publicada pela Editora 7Letras, em 2001, e que pretendeu percorrer o caminho da (des)construção da linguagem na obra de Clarice Lispector. Para isso, foram analisados cinco livros: A maçã no escuro, A paixão segundo G.H., Água viva, A hora da estrela e Um sopro de vida. Ao longo do processo de escritura da dissertação, em 1999, Gabriela fez muitas perguntas à Clarice, num “diálogo” intenso em que uma resposta levava a uma outra pergunta, e assim sucessivamente.

Quando recebeu o convite da revista IHU On-Line, para uma “entrevista” com a escritora sobre seu trabalho, resolveu encarar o desafio de lembrar das suas conversas imaginárias com Clarice, que só conheceu através de sua literatura. Por isso, todas as respostas desse “diálogo” não foram inventadas, mas habitam os livros de Clarice.

Gabriela Lírio é doutora em Letras pela PUC-Rio e professora do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. É também coordenadora do Núcleo de Dramaturgia e editora das publicações “Digitagrama” e “Folhas de Cinema” na mesma instituição.

Gabriela Lírio - Clarice, em A maçã no escuro, Martim é um herói que se aventura na reconstrução do mundo. Ele perde a palavra para encontrá-la no momento seguinte. Qual é a verdade de Martim?
Clarice -
A reconstrução de Martim tinha de começar pelas próprias palavras, as palavras são a voz de um homem. Ele não podia admitir as palavras alheias com sendo as suas. Não interessa se a verdade já existe ou se é criada, criada mesmo é que vale como ato de homem. A verdade não importa.

Gabriela Lírio - Quando nasce Martim, nasce o desejo. Em A maçã no escuro, o narrador diz que “uma pessoa se mede pela sua fome”. Qual é o desejo do herói?
Clarice -
É o de encontrar o mistério da palavra, tocando a vida com a ponta dos dedos. Com horror santo. Horror de herói. Eu sou Martim.

Gabriela Lírio - No caldeirão de uma nova língua, de um novo princípio de sintaxe, da criação de um sonho real, Martim não havia ainda encontrado a palavra. Sentia-se na escuridão de quem cria, na solidão profunda de uma escolha. Que palavra era essa afinal?
Clarice -
Martim liberta-se de si mesmo e da palavra final. Sua língua é abstrata. A palavra não tem nome.

Gabriela Lírio - Da falta de um nome dado à palavra surgem duas iniciais: G.H. G.H é uma pessoa inteira?
Clarice -
Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. Todos os retratos de pessoas são um retrato de Mona Lisa.
 
Gabriela Lírio - O fato é que o retrato nunca pára de ser tirado e revelado, tirado e revelado, tirado e revelado, em uma conjunção dolorosa e mágica. Em A paixão segundo G.H., o sorriso da Mona Lisa é uma gargalhada e parece não ter fim. Ser o sorriso seria o fim?
Clarice -
Pensei nisso e cheguei à conclusão de que, no caso da personagem, a redenção deve ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa é G.H. botar na boca a massa branca da barata. Então ela avança.

Gabriela Lírio - Ao encontrar a barata, G.H. anuncia uma metalinguagem do olhar. Descascando a barata como uma cebola, percebendo no inseto duas miniaturas de olhos dele mesmo, a personagem amplia sua percepção de mundo, abrindo novas possibilidades de sentidos. G.H. sente muita angústia?
Clarice -
Sim. Por isso, ela diz: “Dá-me a tua mão. Porque não sei mais do que estou falando. Acho que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem me aconteceu – quem me garante que também não inventei toda a minha vida anterior a ontem? Dá-me a tua mão”.

Gabriela Lírio - Da falta de um nome em A maçã no escuro, passando pela convulsão de uma linguagem em A paixão segundo G.H., chega-se à construção de um coisa/objeto através da percepção do fracasso de uma ordem de palavras. Em Água viva, a personagem afirma que o que a salva é “escrever distraidamente”. Clarice, como você escreve?
Clarice -
Não sei sobre o que escrevo. Sou obscura para mim mesma. É uma festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que uma voz. Deixo-me acontecer.

Gabriela Lírio - O retorno a uma suposta origem das coisas, a este lugar anterior a tudo, inclusive anterior ao próprio pensamento é encharcado de it. Material de ligação, síntese protéica que liga uma palavra à outra, uma pergunta a uma possível resposta, um não a um sim, uma molécula à outra, um silêncio a outro silêncio. Clarice, por favor, fale mais do it.
Clarice -
Tenho uma coisa importante para te dizer. É que não estou brincando: it é elemento puro. É material do instante do tempo. Não estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do it. Sinto-me tonta como quem vai nascer. Já assisti gata parindo. Esse processo é it. Estou grave. Penso que terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença sim? Não demoro. Obrigada.

Gabriela Lírio - A hora da estrela é um romance muito bem estruturado. Macabéa nasce de um olhar de Rodrigo ao ver “... o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina”. A personagem herda a riqueza da despersonalização de G.H. e a falta de preocupação com  nomes, tal qual a pintora de Água viva que nunca se questionou sobre ter ou não ter um.
Clarice -
Só uma vez Macabéa se fez a trágica pergunta: “quem sou eu?” Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Ao criar Macabéa me perguntava: Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer? É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: Não tinha. Se der para entender, está bem. Senão, também está bem.

Gabriela Lírio - Um sopro de vida encerra, sucumbe, projeta um duplo: dois personagens, duas histórias, duas narrativas, dois livros. Ângela e Autor, este último sem nome próprio, mas com requinte de palavra, é o que nomeia e é o que dá voz à personagem. Para o seu duplo, ela é seu contrário, tão contrário que chega a ser um igual...
Clarice -
Sim. O Autor pergunta “estou falando eu ou está falando Ângela? Meu não-eu é magnífico e me ultrapassa. No entanto, ela me é eu”.

Gabriela Lírio - Clarice, obrigada pela entrevista. Você gostaria de falar mais alguma coisa?
Clarice -
Cheguei finalmente ao nada. E na minha satisfação de ter alcançado em mim o mínimo da existência, apenas a necessária respiração – então estou livre. Só me resta inventar... 

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