Edição 228 | 16 Julho 2007

“Clarice sempre procurou, de forma radical, compreender os esquemas alienantes do homem”

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IHU Online

“Clarice Lispector desenvolveu um estilo bastante original, desfiando uma trama entrelaçada a dúvidas e buscas sobre o próprio processo criativo”, afirma a professora Vilma Arêas, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.

Graduada em Letras Anglo-Germânicas pela Universidade do Brasil, Arêas é mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no Departamento de Teoria Literária. É autora de, entre outros, Clarice Lispector com a ponta dos dedos (São Paulo: Companhia das Letras, 2005). 

IHU On-Line - Qual é o processo subjetivo que podemos entender ao longo da obra de Clarice? Ela tem uma faceta feminista, ou sua obra não implica necessariamente um questionamento sobre os gêneros?
Vilma Arêas -
Com uma formação livre e nada ortodoxa (trabalho precoce, pouca orientação, curso de direito, leituras misturadas), o que era comum e hoje se torna impensável, Clarice Lispector desenvolveu um estilo bastante original, desfiando uma trama entrelaçada a dúvidas e buscas sobre o próprio processo criativo. O rótulo “feminista” foi pregado em seu texto de maneira equivocada, se com isso entendermos a moderna discussão de gêneros. Embora fale também de mulher, acho que a literatura dela passa longe dessas questões.

IHU On-Line - Os personagens de Clarice transitam por um universo mais íntimo (como na maior parte de seus livros), mas num romance como A hora da estrela parece haver um interesse maior pela situação de indivíduos inadaptados à grande cidade. Como se apresentam esses elementos em sua obra?
Vilma Arêas -
Creio que o “mais íntimo” significa uma intimidade desejada com o tecido do texto e as perplexidades dos vários narradores – homens e mulheres - para entenderem o mundo e a literatura. A situação dos personagens vem sempre discutida, com menor ou maior clareza. Em A paixão segundo G.H., por exemplo, o conflito se desenrola entre uma mulher alienada, batizada pelas iniciais, pois nem nome tem, habitante de uma “superestrutura” (as palavras são dela), e a empregada Janair, pintada com as cores da barata e habitante do “bas-fond” do apartamento. Este é um dos esteios da obra. Em meu livro Clarice Lispector com a ponta dos dedos, examino, em A hora da estrela, o aspecto social do imigrante nordestino na cidade grande. Na verdade, ela inicia o livro no ponto em que Graciliano Ramos  abandona os seus personagens em Vidas secas. Eles não são simplesmente “indivíduos inadaptados”, e sim pessoas que pertencem a uma classe explorada e excluída. Como Macabéa é uma personagem composta de cacos colados, podemos perceber também nela a figura do artista – descrito como “clown”, segundo a tradição modernista -, assim como a própria voz autoral. Ela escreveu o livro enquanto morria e nele também percebemos um balanço da própria vida.
 
IHU On-Line - Como são retratados Macabéa e seu namorado Olímpico de Jesus em A hora da estrela? Clarice faz uma crítica a personagens que sonham com uma vida melhor, sobretudo ilusória?
Vilma Arêas -
Macabéa e Olímpico não são criticados – eles merecem e mereceriam uma vida melhor, pois são trabalhadores. Eles são justamente mostrados como espoliados, massacrados, etc. O livro é claro nisso e expõe com clareza – e dureza - o que cabe aos pobres em nossa sociedade: salário infame, sistema de saúde precário e corrupto, educação inexistente (ela só alcança as informações soltas da Rádio Relógio, do Rio de Janeiro, hoje extinta).

IHU On-Line - Como se apresenta o experimentalismo na linguagem de Clarice? É possível percebermos um fundo filosófico na exposição de idéias, nos monólogos interiores, no fluxo da consciência?
Vilma Arêas -
Os procedimentos tentam seguir o experimentalismo num corpo a corpo entre inteligência, sensibilidade e informação. Quanto à filosofia, podemos dizer que Clarice sempre procurou, de forma radical, compreender os esquemas alienantes do homem, tentando se aproximar do concreto, da “coisa mesma”, conforme dizia. Evidentemente sabemos que esse é um projeto idealista. Por isso, para realizá-lo, ela se aproxima dos animais (conferir “O búfalo”, conto em que a mulher se aproxima da fera para aprender a odiar profundamente – no caso o homem que a abandonara). O desmaio final da personagem – assim como o desmaio de G.H. - indica que tal aproximação é impossível. 

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