Edição 228 | 16 Julho 2007

Clarice 30 anos depois

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Em 1984 escrevi a crônica “Sete anos sem Clarice”, contando umas estorinhas que vivi com ela. Agora em 2007, 30 anos depois de sua morte, vou me lembrando de outros casos. Esta é uma das vantagens de se viver muito, a gente acaba tendo algo que contar.



Conheci-a em Belo Horizonte, creio que em 1962. Eu era estudante de Letras, havia escrito um ensaio sobre ela. Quando ela foi lançar A maçã no escuro, na Livraria Francisco Alves, dirigida pelo prof. Neif Safady, fui convidado para fazer um discursinho introdutório na sua tarde de autógrafos. Encontrei-a antes no Hotel Normandy. Linda mulher. E forte. E misteriosa.

Depois dos autógrafos fomos jantar num restaurante chinês perto da Praça Raul Soares. Ivan Ângelo e Mariângela estavam conosco. E como seguíssemos falando sobre A maçã no escuro, o garçom, na hora da sobremesa, ouvindo aquela referência interveio: “Perdão, a maçã está escura, mas não está estragada”.

Quando mudei-me para o Rio passamos a ter mais contato, pois eu dirigia o Departamento de Letras e Artes, e várias vezes a atraí para congressos, conferências, e até para um curso de criação literária. Quando me casei com Marina, que editava crônicas dela no Jornal do Brasil, conhecemos uma cartomante incrível, lá no Méier. E de fato a pegamos um dia na portaria de seu prédio, no Leme, e fomos ao encontro daquela que acabaria virando personagem de A hora da estrela, e, no cinema, seria representada por Fernanda Montenegro. Clarice ficou fã de Dona Nadir, voltou lá várias vezes.

Às vezes tínhamos longas, engraçadas e ociosas conversas ao telefone. E ela tinha coisas insólitas. Um dia me ligou dizendo: “Affonso, não consigo mais escrever. Você lê e estuda, podia me recomendar coisas e conversar comigo”... Eu ouvindo aquilo e dizendo:  “Quequéisso Clarice! Eu, heim! Te ensinar alguma coisa!...”. Tempos depois soube que ela dava esse telefonema para várias pessoas, até para seu cabeleireiro – o Renault – no Copacabana Palace.

Um dia ela queixou-se de nunca ter sido convidada para jantar em nossa casa. Explicamos que não a convidávamos por pudor. Mas organizamos o jantar só com pessoas que ela gostaria de ver. Marcamos até um horário mais cedo, como ela pediu. Fui buscá-la, ela chegou, estavam todos lá, os seus amigos. Mas daí a uma meia hora ela disse que estava com dor de cabeça, que queria ir embora. Não teve jeito. Levei-a à sua casa. E as pessoas compreenderam que ela era assim mesmo.
Há um livro de entrevistas que ela fez para a revista Manchete, que acaba de sair. Naquela ocasião, ela me telefonou e disse que queria me entrevistar, mas queria que eu mesmo me fizesse as perguntas. Fiquei constrangido. Não me entrevistei.

Um ano antes de sua morte, convidou-me a mim e à Marina para entrevistá-la para o Museu da Imagem e do Som. Sabia que não a ameaçávamos, que a protegíamos, que não íamos fazer algo acadêmico. Ela estava alegre e até contou piadas. Hoje essa entrevista está traduzida para outras línguas e é o melhor depoimento sobre sua vida e obra.

Fui visitá-la no Hospital da Lagoa, em 1977, nos seus últimos dias. Depois soube que fui único homem que ela admitiu que a visitasse. Ali ela diria ao seu médico: “O senhor matou o meu personagem”.

Quando dirigi a Biblioteca Nacional e foi divulgado que entre as obras raras da casa havia os pentelhos que D. Pedro I anexara numa carta à Marquesa de Santos, o prof. Antonio Salles me contatou, revelando que havia recolhido cabelos de Clarice, quando ela, na casa do prof. Celso Cunha, instou para que lhe cortassem o cabelo igual ao de uma das filhas de Celso. Salles, vendo aquela cena rara, recolheu mexas do cabelo da escritora. E agora os oferecia. Aceitei a oferta. Estão lá na BN. Se um dia a ciência conseguir desvendar o DNA dos gênios, encontrará um bom material nos cabelos de Clarice.

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