Edição 228 | 16 Julho 2007

O lápis e a folha em branco

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- O que é necessário para uma pessoa vir a ser escritor?Pergunta simples. Resposta complexa.



Clarice Lispector, no fabuloso A maçã no escuro, nos diz algo a respeito. Algo não, muito, a respeito disto. É ter a coragem e a competência para ler, mastigar, ruminar esse manual da escrita e da vida que é esse livro, é já um teste para quem se pensa escritor. Verdade é que o bom leitor, o que não quer necessariamente ser escritor, mas se escreve e se inscreve nos livros alheios, esse terá também aí a prova de suas habilidades.

- O que nos diz Clarice?

Mais ou menos no meio do romance, o personagem Martim teve um impulso de escrever. Esse impulso, esclareça-se, surge numa progressão de descobertas de sua relação com o mundo: “Como um homem que fecha a porta e sai, e é domingo. Domingo era o descampado de um homem”. Ele já havia iniciado um aprendizado de observar e interpretar o seu entorno. Principiou pelo mais simples, pelo mundo mineral e vegetal. Reaprendeu a ver a natureza dentro e fora de si mesmo: as pedras, os pássaros, as vacas na fazenda. Já reaprendera a ver as roseiras, as abelhas, as samambaias e a surpreender a singularidade pungente e alarmante que cada objeto ou criatura tem. Já se aproximara de seu semelhante, estava descobrindo a mulher e o amor. Portanto, fora um longo trajeto de reelaboração interior articulado com a redescoberta do mundo.

Numa noite, dando seqüência a esse percurso de pequenas epifanias, ele teve estranha necessidade de escrever: “Nessa noite, pois, ele acendeu a lamparina, pôs os óculos, pegou uma folha de papel, um lápis; e como um escolar sentou-se na cama. Tivera a sensata idéia de por ordem nos pensamentos e resumir os resultados a que chegara nessa tarde - uma vez que nessa tarde ele finalmente entendera o que queria. E agora, assim como aprendera a calcular com números, dispôs-se a calcular com palavras”.

Martim, no entanto, começa a ter algumas surpresas e dificuldade: “Ele não sabia que para escrever, era preciso começar por se abster da força e apresentar-se à tarefa como quem nada quer”. Surge, então, uma série de pequenos desconfortos até físicos que os criadores sentem nessa circunstância. Alguns, na hora de escrever, começam a se distrair involuntariamente. Resolvem dar um telefonema. Levantam-se para ir pegar água na geladeira. E querendo e precisando escrever, mas disfarçando a necessidade, começam a arrumar objetos que os cercam.

Como todo ato de criar, escrever (às vezes, até mesmo uma simples carta, relatório ou trabalho escolar) é colocar-se na borda do abismo. Martim “hesitava e mordia a ponta do lápis (...) de novo revirou o lápis, duvidava e de novo duvidada, com um respeito inesperado pela palavra escrita. Parecia-lhe que aquilo que lançasse no papel ficaria definitivo, ele não teve desplante de rabiscar a primeira palavra. Tinha a impressão defensiva de que mal escrevesse a primeira palavra e seria tarde demais”.

Ler Clarice, minhas amigas e amigos, é uma das angustiantes e deliciosas responsabilidades da vida intelectual. Lamento não poder reencenar aqui a densidade verbal do que ela segue narrando naquele livro. Seu personagem segue sofrendo para encontrar seu canal de expressão: “tudo o que lhe parecera pronto a ser dito evapora-se, agora que ele queria dizê-lo”. E “de repente se sentiu singelamente acanhado diante do papel branco como se sua tarefa não fosse apenas a de anotar o que já existia mas a de criar algo a existir”.

Em meio às dificuldade em realizar algo que anteriormente lhe parecera tão simples, indaga-se o personagem se “teria havido um erro no modo como ele se sentara na cama ou talvez no modo de segurar o lápis, um erro que o depusera diante de uma dificuldade maior do que ele merecera ou aspirava? Ele mais parecia estar esperado que alguma coisa lhe fosse dada do que ele próprio fosse sair alguma coisa, e então penosamente esperava”. Enfim, ajeitando e reajeitando-se física e animicamente, “como um dócil analfabeto estava na situação de pedir a alguém: escreva uma carta para minha mãe dizendo o que penso. ‘Afinal que é que está acontecendo?’ Inquietou-se de repente. Pegara no lápis com a modesta intenção de anotar seus pensamentos para que se tornassem mais claros, fora apenas isso que pretendera! Reivindicou irritado, e não merecia tanta dificuldade”.
E a autora vai enfatizando aqui e ali – “desolado, ele provocara a grande solidão. E como um velho que não aprendeu a ler ele mediu a distância que o separava da palavra”. Surge, então, dentro do texto de Clarice, a observação mais simples e aterradora em relação ao gosto da escritora: “- Que esperava com a mão pronta? Pois tinha uma experiência, tinha um lápis e um papel, tinha a intenção e o desejo - ninguém nunca teve mais que isso”.

Um lápis e um papel. E a tremenda solidão e responsabilidade. O abismo. Abismo onde se perder e se reencontrar. Onde outros se perdem e se reencontram através da escrita alheia.
O romance de Clarice é uma alegoria não só sobre o processo de criação e recriação do indivíduo, mas uma alusão à trajetória de qualquer criatura que queira assumir o embate e a alteridade entre o eu e o outro, entre o eu e o mundo. O leitor visceralmente leitor, que não escritor explícito, aprenderá aí a fazer uma releitura de seu espanto e perplexidade diante da vida. E quem é escritor, quem carece não apenas de embarcar e viajar nas palavras alheias, mas construir, elaborar o seu próprio discurso, esse encontrará aí pistas e trilhas, mas sobretudo o consolo de descobrir essa realidade que funciona como desafio: um lápis e uma folha em branco - nunca ninguém teve mais do que isto.

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