Edição 228 | 16 Julho 2007

Clarice Lispector - Nossa escritora maior

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“Eu não mereço este prêmio. Este é um prêmio para profissionais e eu não sou uma profissional. Profissional escreve todos os dias, porque precisa. Eu escrevo quando quero, porque me dá prazer.”Brasília, Palácio do Buriti, abril, 1976. Palavras de Clarice Lispector ao receber o Prêmio da Fundação Cultural de Brasília por Conjunto da Obra, no valor de 70.000 cruzeiros.


Em março de 1959, a revista Sr. era caríssima, sofisticadíssima, inteligentíssima. Meu irmão Arduíno e eu ganhamos o primeiro número e descobrimos Clarice Lispector.

Seu conto “A menor mulher do mundo” passaria a nos exigir, por obra de sedução, mirabolantes artimanhas de economia mensal para ter direito ao encontro com um búfalo atrás das grades do zoológico, com o terror escondido nas folhas do Jardim Botânico ou com a solidão da loucura trazida por um buquê de rosas. Clarice nos fascinava. Levados por ela, descobríamos uma literatura de angústia, profunda solidão de diálogos mudos.

A escritora vivia assim em nossa casa, ao pé da nossa cama, transitando em nossas conversas. A mulher, não sabíamos.

No retrato pintado pelo artista italiano De Chirico , entre tantos outros nas paredes de sua casa, a mulher Clarice tem rosto de mistério nas maçãs altas, nos olhos de talhe oblíquo e expressão não revelada. Mas tem também rosto de sensualidade nas cores quentes, na boca vermelha, brilhante.
A primeira Clarice que conheci já não era igual a esta. Era - ou será que me pareceu? - alta. Os cabelos vermelhos, cobre-escuro, cortados quase curtos e apenas escovados para trás em mechas leoninas, marcavam com muita força os contornos do rosto. Rosto pouco carnudo, de boa carpintaria e leve emboço, apenas arrematando, suavizando o desenho anguloso das maçãs altas, altíssimas, o corte, decididamente corte, dos olhos claros.

Eu a olhava em silêncio de devoção, levada à sua casa por um amigo comum. Não creio que Clarice me visse naquela tarde, ou melhor: feita pequena por minha humildade frente a ela, eu me senti invisível. E como invisível fiquei reparando nas mãos grandes, nas pulseiras de cobre, na máquina de escrever portátil posta numa mesinha da sala, nos livros em prateleiras suspensas ao longo das paredes.

Guardei aquela Clarice na memória e fui adiante, andar a minha vida. Quando nos reencontramos, anos mais tarde, eu já não era a mesma, levada pelo amigo, nem ela era mais aquela.
Tive assim uma segunda Clarice. E, com o tempo e com a amizade, fui acrescentando outras e tantas Clarices às imagens que dela guardava, construindo em mim, aos poucos, a totalidade de uma pessoa tão rica e tão vária.

“Marina? Eu precisava de uma informação sua.”
“Pois não, Clarice, diga.”
“Onde é o lugar que se compram mocassins?”

Eu, surpresa do meu lado do fio, na redação do Jornal do Brasil, procurando nomes de sapatarias onde houvesse mocassins dignos da Clarice. Ela, delicada e imprevisível, eu querendo atendê-la.
Assim a gente se sente ao lado dela. Querendo de qualquer maneira atendê-la. Somos, nós amigas dela (e hoje me ponho sim, com segurança, no rol das suas amigas próximas, por amor e empatia), convocadas por nosso mais profundo sentimento maternal. Desejo de aconchegá-la. Evitar-lhe males. Clarice de vidro, sensibilidade exposta, tem que ser resguardada.
De vidro. E, no entanto, de extrema segurança. Numa estadia em Brasília, Clarice, que foi casada com o diplomata Mauri Gurgel Valente e mantém, até hoje, muitas relações de carinho no mundo do Itamaraty, acabou indo a uma sofisticadíssima recepção diplomática numa mansão do lago, contrariamente a seus hábitos muito frugais. Chegou Clarice e a dona da casa logo se movimentou querendo atendê-la. Desejaria Clarice um uísque, um coquetel, uma taça de champanhe ou até mesmo um refrigerante? Não, Clarice queria mesmo, e só, um copo de leite. Aterrorizada, a dona da casa deu-se conta de que não havia nas geladeiras da sua mansão uma única gota de leite. O chofer foi imediatamente enviado em busca do leite, produto difícil àquela hora tardia numa cidade como Brasília. De fato, o chofer e o leite demoraram.

Após uma espera regulamentar, Clarice serenamente levantou-se e, informando que seu leite estava demorando demais a chegar e que ela se sentia cansada, retirou-se com toda a tranqüilidade.
Clarice nasceu em 1926, na Ucrânia, em Tchetchelnik, pouco antes de seus pais, Pedro e Marian Lispector, decidirem mudar-se para o Brasil. Aqui se estabeleciam no Recife. E a escolha da cidade violentamente tropical, em se contrapondo às origens, marcou para sempre, naquela que viria a ser um dos nomes mais importantes da literatura brasileira, o dualismo entre a força incontrolável de vida e a profundidade interna do pensamento.

Letra e literatura juntaram-se para ela, desde o início, numa unidade indissolúvel, pois aprender a ler foi também aprender a escrever. Aos 7 anos de idade, quando a maioria das crianças é apenas alfabetizada, Clarice já era autora de uma peça e alguns contos.

Em 1934, a família mudou-se para o Rio. E em 1943, cursando a Faculdade de Direito, Clarice escreveu seu primeiro romance: Perto do coração selvagem. Tinha 17 anos. Mas o romance foi recusado pelo editor José Olympio. E só um ano mais tarde, quando Clarice trabalhava na Editora A Noite, veria sua publicação. No mesmo ano, o livro que a José Olympio havia recusado ganhava o Prêmio Graça Aranha.

“Escrevo quando quero, porque me dá prazer.” Não houve, ao que parece, momento em que Clarice não quisesse escrever. Dois anos depois de lançar Perto do coração selvagem, ela edita O lustre. Três anos depois outro romance, A cidade sitiada. Em 1959, o Serviço de Documentação do MEC publica Alguns Contos. No mesmo ano é editado Laços de família. Em 61, A maçã no escuro sacode os ambientes literários, recebendo, no ano seguinte, o Prêmio Carmem Dolores Barbosa, de São Paulo. Em 64, aparecem o livro de contos e crônica A legião estrangeira e o romance A paixão segundo GH. Em 69, é a vez de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, que lhe vale o Golfinho de Ouro da Literatura. Segue-se Felicidade clandestina, livro de contos. O ano de 73 nos traz Água viva. E já em 74 sai Onde estiveste de noite, contos, seguido em 75 por Visão do esplendor, impressões leves.

É o conjunto riquíssimo dessa obra que lhe valeu o prêmio de Brasília por unanimidade do júri.
“Profissional escreve todos os dias.” Quando escreve Clarice? Organizadamente, ela costuma escrever de manhã. Acorda muito cedo, às vezes escuro ainda, no silêncio da madrugada. Mas não se senta diante da máquina. Perambula pela casa, fuma, toma café, olha pela janela o despertar de Copacabana, o sol invadindo aos poucos o Leme, seu bairro de muitos anos. Não escreve. Espia o avanço do dia. Esquenta-se por dentro, como um atleta. Só no momento em que a vida toda foi posta a funcionar com seu alarido, ela começa a trabalhar.

Mas escreve também desordenadamente, a todas as horas e em qualquer lugar, tirando um pedacinho de papel e uma caneta da bolsa, anotando aquilo que, como um fluxo, sobe. Esses pedacinhos férteis serão pescados na bolsa no fim do dia, guardados. Quem os conhecesse os veria depois aparecer nas impressões leves ou mesmo nos romances, soltos da mesma maneira como surgiram ou então aplicados, como um retalho, à colcha maior.

Talvez seja justamente a convivência com esses pequenos escritos de Clarice a chave para que se possa conhecê-la melhor, descobri-la. Eu os encontrei primeiro no “Children’s Córner”, seção por ela assinada na revista Sr.. E os revivi depois, já editados em livro, em A legião estrangeira. Mas os tive mais próximos no longo período em que, como subeditora de texto do Caderno B, do Jornal do Brasil, era diretamente responsável pelas crônicas de Clarice.

Eu digo crônicas por cacoete porque, na verdade, fugindo à estrutura da crônica tradicional, eram simplesmente textos, reflexões curtas, talvez rabiscadas em origem nas costas de uma nota de compras. Vinham num envelope pardo, grande, trazendo sempre a recomendação: “Atenção, não perder, não tenho cópia!”. Isto durante anos (já não sei quanto ao certo, mas arrisco dizer que foram oito), sempre a mesma recomendação. E às vezes, em breves contatos telefônicos, ela ainda reforçava: “Marina, tome cuidado, não perca minha crônica, porque não tenho cópia” - e em seguida acrescentava - “Eu não uso carbono, o carbono franze”.

É claro que nunca perdemos um único texto de Clarice mas, mesmo assim, ela só se tranqüilizou quando viu pessoalmente que, logo ao chegar, as crônicas eram xerocadas e as numerosas cópias entregues à Agência JB para distribuição a jornais do Estados.
Assim mesmo, passados já alguns anos, quando vejo a letra da Clarice, que hoje me chega nos autógrafos de seus livros, não posso deixar de associá-la às recomendações e também ao carbono, resumo em mim da sua delicadeza.

Percebo, escrevendo, que uma característica importante de Clarice dificilmente poderei transmitir com precisão. É seu modo de falar. Clarice fala de um modo absolutamente peculiar, que lhe acrescenta encanto e aumenta seu mistério: fala com sotaque. Ou, pelo menos, é isso que parece e isso que, na verdade, gostamos de acreditar.

À luz da medicina, ela me explicou um dia, trata-se de um problema de língua presa ou de formação palatal, não sei ao certo. O fato é que resulta num erre afiado, quase rolado, mas com arestas, um erre que se constitui em diapasão de toda sua conversa, modificando a letra que o segue. Atribuindo ao “a” uma música de “e”, anasalando as palavras e permitindo aos imaginosos - como eu - defini-lo sem hesitação com um puro sotaque tártaro. A este som ela acrescenta uma distribuição de pausas pessoal e imprevisível, de quem pensa densamente por trás e se ocupa mais em seguir o pensamento do que em verbalizá-lo. Fico às vezes esperando o resto da frase que não vem, presa por aqueles olhos mágicos, ou então interrompo uma frase que vinha e eu não sabia. E muitas vezes, na dúvida, alimento longos silêncios animados de sorrisos.

Clarice sorri amplo quando se sabe entre amigos. Mas quando não sabe bem quem a rodeia, mantém-se quieta, nem bem na defensiva, apenas encolhida.

Foi assim que Affonso a viu na tarde em que ela foi fazer uma conferência na PUC. Affonso Romano de Sant’Anna, meu marido, diretor do Departamento de Letras daquela Universidade, onde ela havia sido convidada a falar. Ele chegou quando ela já havia feito a palestra e começava o debate. Pelo visor da porta, a viu sentadinha atrás da mesa, rodeada de alunos ansiosos, alunos que haviam lido e estudado sua obra, cheios de perguntas, querendo respostas. E ela ali, ela própria feita só de perguntas sem resposta, debaixo do bombardeio. “Por que havia posto o nome de Ulisses em uma de suas personagens masculinas? Qual a relação profunda entre a personagem e o herói da Odisséia? Havia-se inspirado em Homero?” Pausa. Silêncio de Clarice. Depois, falando quase baixo: “Botei o nome Ulisses porque era o de um rapaz que conheci na Suíça, um jovem professor”. Estavam frustradas as expectativas dos estudantes, desejosos de correlações mirabolantes. E então Affonso, para quebrar um pouco o ritmo e amenizar o clima, perguntou, lembrando a frase: “Clarice, você acha que dois e dois são cinco?”. Ela mesma conta o fato em Visão do esplendor: “...Por um segundo fiquei atônita. Mas me ocorreu logo uma anedota de humor negro. É assim: o psicótico diz que dois e dois são cinco. O neurótico diz: dois e dois são quatro mas eu simplesmente não agüento. Houve então sorrisos e relaxamento.”

Quando menos se espera, ela quebra o momento e impõe seu ritmo. Foi o que fez também durante o I Encontro Nacional de Professores de Literatura realizado na PUC, de cujas sessões ela participava acompanhada da escritora Nélida Piñon , sua fiel amiga. Uma tarde, no meio do confronto que os ensaístas Luiz Costa Lima  e Zé Guilherme Merquior travavam em altas teorizações literárias, Clarice virou-se para Nélida dizendo com boa entonação: “Não estou entendendo nada. E isso tudo me deu fome. Vou-me embora para casa comer um frango assado inteiro com farofa”. E levantou-se.
Algo deste gênero deve ter acontecido também em Bogotá, onde foi ela foi participar de um congresso de bruxaria.

O que estaria Clarice fazendo no meio de bruxos e parapsicólogos internacionais? Todos nós perguntamos. Mas ela me explicou com a maior simplicidade que leria um texto seu, o do ovo, em que analisa e discorre sobre a essência do ovo, sua força misteriosa. Ela apenas leria o texto e diria, em seguida, que o achava absolutamente mágico e que não tinha para ele nem resposta nem entendimento. Se alguém pudesse lhe esclarecer alguma coisa, ficaria muito grata. Assim, com sua magia toda interior, Clarice sentou-se entre feiticeiros.

Num mundo cujos limites ela mesma traça, onde o diálogo interno é uma constante através da escrita - “Mas eu paro três dias cada vez que leio uma crítica a um trabalho meu ou que vou a uma noite de autógrafos cheias de escritores” -, ela se move rodeada de estranhezas. Como naquele dia, que era o primeiro do ano, e ela, na casa de uma amiga, mas sentindo-se tão só, saiu, sentou-se nos degraus da porta e conversando com Deus perguntou-lhe se era necessário tanto sofrimento. Que ele lhe desse uma mensagem. E uma pomba branca desceu e pousou diante dela. No dia seguinte, Clarice saiu e, passando diante de uma vitrina, viu uma peça de cerâmica com três pombas brancas. Entrou e comprou. Depois seguiu, ia ao médico, mas estava uma tarde tão quente, e ela parou à sombra de uma árvore e levou o braço à cabeça e algo caiu no seu braço e ela olhou e era uma pluma branca de pomba. Então entrou num táxi, que de repente deu um freada e ela perguntou ao chofer o que era e ele disse “quase atropelei uma pomba branca”. E finalmente Clarice chegou ao médico e ele a examinou e sentaram e antes de escrever a receita o médico disse “você quer um presente?”, e, então, abrindo a gaveta, lhe entregou uma branca pena de pomba.

A história das pombas foi ela que me contou e certamente, em sua mão, um dia ainda virará conto ou então entrará em algum romance. Mas eu a ouvi dela assim, dita sem literatura alguma, e a guardei. Foi uma pena branca que Clarice me entregou um dia.
Estávamos, naquele dia, ela e eu indo a uma cartomante. Não sei o que a vidente disse a Clarice. Sei que saímos as duas muito impressionadas, cada uma com sua breve visão de futuro, depois de tomarmos café na pequena sala de casa de subúrbio. Acreditávamos, ambas, que o destino se escreve em palmas e plumas e nos espera.

Teria visto a vidente as chamas que um dia invadiram a vida de Clarice? Falar dela sem falar no acidente seria negar um vigoroso momento de sofrimento, escamotear um momento limite de sua vida. Eu soube primeiro pelos jornais: Clarice havia sofrido um incêndio. Tocada, eu, que naquela época era apenas a moça tímida que havia ido à sua casa um dia, lhe mandei flores, soubesse que lhe queria bem e estava próxima. Depois me disseram. Ela havia adormecido fumando e, acordando, já no meio das chamas e fumaça, tentara apagar o fogo, salvar seus papéis na escrivaninha. Queimou-se gravemente, sofreu durante longo tempo física e moralmente.

Dizem alguns que ela mudou muito com o acidente. Eu que procuro entendê-la com amor penso que o acidente permitiu-lhe assumir fisicamente a enorme fragilidade interior que a sólida mulher leonina e ruiva não se concedia. Rompeu-se, no fogo, uma dura crisálida.

Antes de tentar traçar o perfil de Clarice, pensei que deveria telefonar-lhe e, como jornalista, entrevistá-la. Pensei que iria à sua casa e que o cachorro Ulisses - o nome do moço suíço - me faria festa, me faria tanta festa até Clarice resolver trancá-lo na cozinha, de onde certamente sairia quando eu fosse buscar a bandeja com as xícaras e a garrafa térmica de café. Pensei que sentaríamos no sofá rodeadas de seus belos quadros, na tranqüilidade cheia de livros do seu apartamento e que ela, pela primeira vez, me daria uma entrevista bem profissional, dizendo coisas objetivas e falando de literatura. E cheguei à conclusão de que não era nada disso. Eu teria talvez mais dados, falaria melhor dos filhos Pedro e Paulo, dos livros infantis que ela já escreveu, das traduções de suas obras no exterior, daquilo que já está escrevendo agora, de suas crises de criação quando pensa que já não sabe, que já não quer, que já não tem o que escrever e se nauseia até voltar à máquina.
Mas não é atrás dos dados sólidos que se esconde o perfil de Clarice. É no erre rolado, nas pausas, no não falado, que ele se desenha. Como nos momentos em que me diz alto do outro lado de uma sala: “Marina, pára de namorar! Você não sabe que namorar é proibido?”. E eu sei que é exatamente o contrário, que ela está bem contente de me ver abraçada com Affonso, feliz, sorrindo, sorrindo para ela.

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