Edição 227 | 09 Julho 2007

O marxismo trará saúde aos enfermos: Kahlo cumpre seu destino

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Analisando o quadro O marxismo trará saúde aos enfermos, a teóloga Haidi Drebes assinalou: “Considerando o contexto e situação de vida de Kahlo, me parece que pintar esta obra foi como cumprir o seu destino. Frida Kahlo queria através da arte, ser útil ao partido. De forma mais explícita e bastante expressiva, consegue nesta obra sintetizar vida – esperança e atingir o objetivo”.

A entrevista a seguir é exclusiva, concedida por e-mail à IHU On-Line.  As questões foram criadas com base no artigo inédito O marxismo trará saúde aos enfermos, escrito por Drebes para a coletânea sobre Frida Kahlo, que está sendo organizada pela Prof.ª Dr.ª Edla Eggert.

Drebes é graduada em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) e em Educação Artística pela Federação de Estabelecimentos de Ensino Superior (Feevale), em Novo Hamburgo. Cursou mestrado e doutorado em Teologia na EST. Sua tese intitulou-se O desvelar da espiritualidade nas artes visuais. Atualmente, Drebes é coordenadora da habilitação ao ministério na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Confira a íntegra da entrevista.

IHU On-Line - Poderia contextualizar a situação física de Frida Kahlo quando pintou “O marxismo trará saúde aos enfermos”?
Haidi Drebes -
“O marxismo trará saúde aos enfermos” foi uma das últimas pinturas de Frida. A obra foi pintada em 1954, e neste mesmo ano a artista veio a falecer. Neste período, o seu estado de saúde era bastante precário e de uma grande fragilidade física. Ela vivia sob constante efeito de analgésicos. Depois de aproximadamente um ano sem pintar, em 1954, Frida se forçou a sair da cama e retornar ao seu estúdio. Sentada na cadeira de rodas e com uma faixa para sustentar as suas costas, ela pintava em um cavalete durante o tempo em que a dor era suportável. Quando a dor se tornava insuportável, Frida voltava para a cama e lá seguia pintando. O uso de drogas e um esforço quase sobre-humano tornavam suportável a dor, e a artista conseguiu manter-se ativa. Andrea Kettenmann cita que, segundo Judith Ferreto, enfermeira de Kahlo, a artista ao finalizar a obra teria feito o seguinte comentário: “pela primeira vez não choro mais”.

IHU On-Line - Qual é o significado dos elementos dessa obra, o que eles querem dizer?
Haidi Drebes –
Os elementos dessa obra expressam as preocupações, os sentimentos, as convicções e esperança de Frida. Remetem explicitamente ao interesse social e político da artista. A artista se representa com seu “corsé de piel” diante de um fundo dividido em duas partes. De um lado, está a terra ameaçada pela destruição, e do outro a paz. No mesmo lado em que correm rios azuis com água cristalina, também se elevam os continentes vermelhos, a URSS e a China – a pomba da paz voa sob o céu azul. Na outra metade, onde o céu está mais escuro, correm rios de sangue e a mão que se estende da cabeça de Karl Marx estrangula Tio Sam. O partido comunista pode estar representado nas grandes mãos que a amparam. As mãos não a tocam, mas estão ali, lhe dão segurança. Se ela perder o equilíbrio, as mãos estão ali, grandes, fortes, protetoras e vigilantes, lembrando o comunismo.

Por meio dos elementos desta obra, ela expressa especialmente a sua convicção de que Karl Marx, através do comunismo, pode acabar com o capitalismo e proteger os necessitados, amparar os fracos e curar os enfermos. O marxismo foi, no decorrer de sua vida, tomando forma de crença. Isto está claramente expresso na obra analisada, em que a autora expressa a sua fé no comunismo. Considerando o contexto e situação de vida de Kahlo, parece-me que pintar esta obra foi como cumprir o seu destino. Frida Kahlo queria, através da arte, ser útil ao partido. De forma mais explícita e bastante expressiva, consegue nesta obra sintetizar vida e esperança e atingir o objetivo. Por isso, ela não chora mais. Kahlo representa ali a sua terra, a sua dor, a sua força, a sua crença, os seus ídolos. E, desta maneira, dá-se uma reinterpretação crítica da sua trajetória de vida e da sua própria obra pictórica.

IHU On-Line - Em que sentido ela queria contribuir com o Partido através da sua arte? Nesse aspecto, sua obra é, também, política?
Haidi Drebes –
Ao pintar espinhos, sangue, dor e situações de sofrimento, a artista, por meio de sua arte, denuncia uma realidade social injusta. Denunciando-a, Frida coloca a sua expressão artística a serviço do partido. A artista tinha consciência do potencial da arte como um meio de conscientização e transformação social. Mesmo que no conjunto da obra de Frida nem sempre o conteúdo político mais, especificamente, marxista, estivesse tão explícito, ela pintava a sua dor e a dor de seu povo não na dimensão monumental, como o muralismo, mas em doses menores, homeopáticas, mas nem por isso menos intensas. Na obra “O marxismo trará saúde aos enfermos” a artista aponta para o marxismo como a possibilidade de salvação. Entretanto, deve-se destacar que a artista vai construindo esta concepção ao longo de sua vida, mas opta por assumi-la e expressá-la na sua arte mais no final da sua vida e a expressa claramente nesta obra.

IHU On-Line - Kahlo escolheu 1910 como o ano de seu nascimento, coincidente com a Revolução de Emiliano Zapata. Como se expressava a identificação social em sua vida e obra?
Haidi Drebes –
Ainda criança, aos quatro anos, a artista via a sua mãe dar abrigo aos zapatistas , oferecendo comida e cuidando dos feridos. Acompanhou de perto a luta camponesa de Zapata  contra as tropas de Carranza. Sua identificação com a luta era tanta que dizia que ela e o novo México nasceram ao mesmo tempo. Durante toda a sua vida, Frida participava de movimentos sociais e freqüentava espaços de discussão de questões sociais e políticas. A residência dos Rivera no bairro San Angel no México tornou-se um local de encontro da intelectualidade internacional. A casa de Frida e Diego era freqüentada por pessoas ligadas às artes, à literatura, à música, e era também local de hospedagem para refugiados políticos. León Trotski foi um dos refugiados que pediu asilo político ao México e se hospedou na casa dos Rivera. O empenho pela causa social e a crença no comunismo parecia estar no seu sangue, correr em suas veias. A artista mexicana parecia buscar ou ser conduzida para contextos onde a questão política era o cerne.

IHU On-Line - Ainda que fracassada em termos políticos, a Revolução Mexicana deu ao povo um espelho e a arte renasce. Qual é o papel de Frida nesse processo?
Haidi Drebes –
O papel de Frida é justamente o de ocupar e preservar o espaço que a arte e cultura de modo geral conquistaram com a revolução. O povo mexicano reconheceu a sua força, o seu valor, a sua dor, a sua beleza e, através da arte, continua a expressá-la. A arte do povo mexicano aflora e artistas incorporam na sua expressão artística elementos mexicanos, motivos indígenas, mesclam cores e identidades, apropriam-se de temáticas acessíveis e populares. O sofrimento do povo, decorrente de uma história que oprimiu, sufocou e feriu a nação, é expresso por entre as rupturas, pelas feridas e pelo sangue pintado na obra de Frida Kahlo.

IHU On-Line - Assim como sua pátria, o corpo de Frida também é partido, quebrado. Como sua dor pessoal se mistura com a dor de seu povo?
Haidi Drebes –
Em algumas de suas obras, Frida expressa esta mistura da sua dor com a dor de outras pessoas, de forma bem concreta. Como exemplo, pode-se citar “Umas quantas punhaladas” , pintada em 1935. Nesta pintura, Frida se inspira na notícia de um assassinato publicada num dos jornais locais. Segundo Andréa Ketenmann, nesta pintura, a artista teria projetado uma situação pessoal, a relação extraconjugal que Diego teve com sua irmã Cristina. Diego teve vários envolvimentos extraconjugais, sendo que o que mais fortemente abalou Frida foi a relação de Diego com Cristina, a sua irmã mais nova. Nesta obra, a dor aparece escancarada e de forma mais agressiva. A preocupação anatômica escapa e Frida pinta corpos deformados, contorcidos, desproporcionais e chocantes para o espectador.

IHU On-Line - Pode-se afirmar que a pintura de Frida expressa uma utopia que ela desejava ver concretizada? Como fé e política se imbricam nessa relação?
Haidi Drebes –
A arte na vida de Frida passa a ser um recurso para dar vazão ao seu íntimo, razão a sua existência e estabelecer uma relação com a realidade com a qual se sente comprometida em transformar. Sua obra está profundamente conectada com a existencialidade humana na sua forma mais intensa e profunda. A preocupação ou, muitas vezes, a indignação com a sua própria existência é expressa nas suas pinturas. A artista escancara o seu sofrimento e a sua dor que, por sua vez, provoca o/a fruidor/a na sua própria existencialidade. Quando não é o corpo ferido é a terra partida que impacta o/a fruidor/a. A profunda integração da artista com a sua obra, a sua própria existência e a pergunta pelo sentido da sua vida e do seu povo faz da sua obra uma possibilidade de conjugar fé e política.

IHU On-Line - Quais são os pontos em comum do ponto de vista artístico, político e social que Kahlo e Diego Rivera compartilhavam?
Haidi Drebes –
É no contexto político que a artista se aproxima de Diego Rivera. Também na sua relação com Diego a arte e a preocupação social eram pontos em comum. Ambos eram militantes políticos: expressavam na sua arte a indignação com a injustiça social e acreditavam no marxismo como uma possibilidade de vida digna. A forma apaixonada e intensa com que ambos se dedicavam à causa social, à política e à arte também podia ser percebida na sua vida pessoal. O casamento de Frida e Diego foi uma união que de um jeito ou de outro sempre intrigou as pessoas, pela sua forma intensa e livre. Mesmo que na relação conjugal ambos preservassem sua liberdade de ter relações extraconjugais, não conseguiam ficar muito tempo separados. Frida e Diego estiveram unidos pela identificação política, pela arte, pela vida e pelo amor, que os manteve juntos até o final de suas vidas.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição