Edição 227 | 09 Julho 2007

Uma estética libertadora

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IHU Online

No ponto de vista da teóloga argentina Marcella Althaus-Reid, “Frida Kahlo denuncia a estética burguesa idealista e apresenta corpos antagônicos, em conflitos interiores e exteriores. Esta é uma estética libertadora que anuncia beleza e coerência nas fraturas e divergências sociais que Frida representa através de categorias corporais. Na Teologia, a estética burguesa é responsável pelas construções particulares de racismo, homofobia, classismo. Mas as categorias essenciais estéticas ocidentais estão em vias de descontrução.”

As afirmações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Para criar as questões a seguir, a IHU On-Line teve acesso a um artigo inédito de Manrique, intitulado Yo soy la desintegración, escrito para a coletânea sobre Frida Kahlo que está sendo organizada pela Prof.ª Dr.ª Edla Eggert.

Membro da Igreja Metodista, Althaus-Reid é catedrática de Teologia Contextual no New Collage, Universidade de Edimburgo, Escócia. É a única profesora de Teologia em uma universidade escocesa, e a primeira mulher a lecionar Teologia na  Universidade de Edimburgo em 160 anos. Nasceu em Rosario, Argentina, e se criou em Buenos Aires, onde fez seus primeiros estudos em Teologia no ISEDET (Instituto Superior Evangélico de Estudios Teológicos). Em Dundee, Escócia, coordenou um projeto de conscientização popular inspirado na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Obteve doutorado em Teologia na Universidade de San Andrés, Escócia, como uma tese sobre a influência de Paul Ricoeur na metodologia e na teologia da libertação. É autora de inúmeros livros, dentre os quais citamos Indecent Theology. Theological perversions in sex, gender and politics (London: Routledge, 2000); The Queer God (London: Routledge, 2003); e From feminist Theology to indecent theology (London: SCM Press, 2004). Para maiores informações, acesse o site http://www.althaus-reid.com/.

IHU On-Line - Como o auto-retrato “Yo so la desintegración” representa a fragmentarização do corpo de Frida Kahlo?
Marcella Althaus-Reid -
Yo soy la desintegración” é um auto-retrato que admite várias interpretações, dependendo de como nos situamos. A partir de uma posição quase de direita (heterossexual), a interpretação estaria mais influenciada pela fragmentação do corpo de Frida. Aqui observaríamos que este é um corpo que se desfaz, que não corresponde e que pouco obedece. É um corpo que parece desconhecê-la, como se fosse um estranho e que não respeita leis, como se fosse um inimigo. É a visão de um corpo incapacitado.

Mas assim nos colocamos em uma posição distorcida. Com uma pressuposição menos direita ou normalizadora (ou seja, “Queer”), poderíamos dizer que essa desintegração, esse corpo imprevisível que cai numa multidão de órgãos, tem uma representação material verdadeira, não somente do corpo de Frida, mas de todos os corpos. Efetivamente, esta é a representação com a qual se desconstrói uma estética dualista e heterossexual para desvelar o feito de que nossos corpos nunca são dogmáticos, ou seja, eles saem das leis. É que a heterossexualidade tem sua própria estética corporal legal que “Yo soy la Desintegración” ameaça. Mas trata-se de uma ameaça positiva, já que representa a presença da sombra de um referente original antigo e ambíguo, de geopolíticas confusas e sem força de catálogo. É que a referência original corporal está mais próxima de uma estética bissexual ou de transgênero, na qual, como este é um auto-retrato, se multiplicam e contradizem os órgãos sexuais e os espaços do desejo.

De alguma maneira, este auto-retrato de Frida evoca uma poética Queer bissexual que poderia ser traduzida pelas palavras de Judith Butler: “Isto não quer dizer que em algumas ocasiões políticas eu não queira sob o signo de ser lésbica, mas em troca quero deixar uma permanente impressão na significação do dito signo” .

IHU On-Line - Relacionando com o aspecto teológico, a senhora poderia explicar sua afirmação “allí adonde mas coeherencia assumimos, más fragmentación ocultamos”? A obra de Kahlo pode metaforizar a desintegração do sujeito pós-moderno?
Marcella Althaus-Reid -
A coerência de gênero é produto de uma ideologia sexual que funciona como uma metanarrativa normalizadora de certas relações de poder, incluindo o poder eclesiástico de sacralizar ideologias políticas. A chamada desintegração do sujeito pós-moderno não é tal porque a estabilidade intrínseca no sujeito só ocorre nos corpos legais, não nos humanos. As teologias imperialistas temem que não se possa controlar, e por isso o Cristianismo não foi articulado num discurso sobre o desejo, mas foi regulado em sua dispensa. O medo teológico à dispersão se contradiz com a encarnação de Jesus, na qual Deus se dispersa e assume um corpo impossível, o corpo divino/humano do messias, feito de bordas e desejos, tanto sensuais como teológicos, imprecisos.

IHU On-Line - Em termos da Teologia Queer, como a obra dessa pintora ajuda a questionar e repensar a participação das mulheres na Teologia?
Marcella Althaus-Reid -
Esta é uma pergunta “pós-teologia feminista”. Aqui nos encontramos não somente com uma questão de exclusividade eclesial ou de fraternidade conceitual teológica, mas com um corpo de mulher que não é mulher. Um corpo de mulher não pode ser conceituado e, por vezes, nos desconceitua criticamente. É uma mulher Queer, que não apresenta uma identidade sólida, mas uma identidade feita de paisagens atravessadas, na qual as fronteiras não apenas mudam, mas chegam a se anular e a se recriar mutuamente, deslocando também nossas concepções de Deus, de Cristo e do significado da presença corporal divina na historia. Em resumo: estamos frente a uma teologia estética baseada na obra de Frida Kahlo e, portanto, temos uma base mais realista para expandir nossa intuição e nossa vocação divina. Na Teologia da Libertação , dizemos que a teologia é um “segundo ato”. Portanto, o primeiro ato é a realidade crítica. Em relação à posição da mulher na teologia, este questionamento da identidade hetero-normalizadora da mulher é o primeiro passo para fazer uma teologia concreta e realista não só para as mulheres, senão para toda a humanidade.

IHU On-Line - Que relações você estabeleceria entre a obra de Kahlo e a Teologia Queer no retorno aos atores da história, conforme Marx?
Marcella Althaus-Reid -
Para Marx, os atores da história não eram indivíduos, e sim uma classe social. As diferenças de classe são diferenças de produção que se constituem historicamente. Mas as classes não são necessariamente sempre antagonistas, mas sim mostram uma intertextualidade que as determina de diferentes maneiras. Voltar teologicamente aos atores da história é voltar à história da produção teológica e às inter-relações das identidades legalmente fixadas pela Igreja através de signos. As mulheres, por exemplo, são ou têm sido (porque não todas as Igrejas são medievais como a Igreja Católica Romana) o equivalente de uma classe teológica, na qual sua identidade depende da organização de produção social e espiritual. Os atores “Queers” são os que não encaixam nos lugares “assinados” de produção sócio-teológica. Portanto, eles podem contribuir na desorganização das ideologias reinantes: isto era o que dizia Marx, que, para desconstruir ideologias, deveria voltar a estes atores ou protagonistas. E aqui Queer funciona como uma categoria de denúncia, mas também de agência (recordemos o Carnaval Anti-Capitalista!). Já Samin Amir especulava sobre as possibilidades Queer de visualizar e desestabilizar o sistema do capitalismo global.

IHU On-Line - O corpo e a obra de Frida Kahlo não se enquadravam em padrões estéticos de beleza perfeita. Como esse ideal de beleza perfeita aparece na Teologia? Como os quadros de Kahlo podem ajudar a desconstruir esse desejo de perfeição física e teológica?
Marcella Althaus-Reid -
O que é a estética senão uma produção idealista? A capacidade sensual e uma capacidade de formação institucional, como a eclesiástica, dependem mutuamente de uma precondição material que, como diria Freire, nunca é neutra. Nesta precondição, encontramos categorias de exploração: por exemplo, o corpo transpirado e os pés sujos não são estéticos porque refletem o corpo dos trabalhadores, não o de uma classe ociosa. (Na Inglaterra, as mulheres ricas são chamadas de “fragrantes”; nunca se agitam ou transpiram.) Frida Kahlo denuncia a estética burguesa idealista e apresenta corpos antagônicos, em conflitos interiores e exteriores. Esta é uma estética libertadora que anuncia beleza e coerência nas fraturas e divergências sociais que Frida representa através de categorias corporais. Na Teologia, a estética burguesa é responsável pelas construções particulares de racismo, homofobia, classismo. Mas as categorias essenciais estéticas ocidentais estão em vias de descontrução, não somente numa leitura inspirada por Kahlo, mas também, por exemplo, por Glauco Mattoso e sua contra-estética fetichista, pelas leituras Queer e pela mesma Teologia da Libertação.

IHU On-Line - Qual é o maior legado de Frida Kahlo, cem anos após seu nascimento? O que sua trajetória tem a dizer às mulheres e homens do século XXI?
Marcella Althaus-Reid -
Volto a citar Freire no que este chamava de “a vocação de ser mais”. Talvez este seja, para mim, como teóloga, o legado mais importante de Frida Kahlo: o chamado a ter a coragem de ser mais, o qual implica também a metáfora Queer do excesso, de ser excessivo. Este é o excesso que se fala na raiz do Cristianismo, representado por um Deus excessivo que necessita sair de si mesmo e de sua identidade divina para poder “ser mais” em Jesus Cristo. Parafraseando Marx/Derrida: há um fantasma que aceita o Cristianismo e que é o excesso de suas origens. E este excesso dos profetas que saem dos parâmetros da injustiça construídos eclesiasticamente em Israel. E é o excesso de Mary Daly quando, nos anos 1970, chamou as mulheres a um êxodo das Igrejas... e o de James Cone, quando falou do Jesus Negro... ou Gutierrez vendo nos campesinos peruanos a opção de Deus. Frida nos chama para sermos mais, a questionar as construções ideológicas de sexualidade, gênero, raça e política e amar mais além dos cânones. Não somente amar a uma companheira, mas também ao Deus que temos de libertar do espelho de nossas próprias ideologias. Frida também anunciou, a sua maneira, o retorno do amor Queer de Deus, do Deus Queer.

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