Edição 227 | 09 Julho 2007

Transgressão, implosão, mistura, descontrução e reconstrução

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“A pintura de Frida Kahlo incomoda públicos diversos, por diversos motivos, uma vez que ela transgride limites e fronteiras constantemente. Na relação com a Teologia Gay, a pintura de Frida e a própria Teologia Gay incomodam por revelarem contradições e inadequações de um sistema que divide dualística e hierarquicamente segundo padrões de gênero e sexualidade. Incomodam porque desestabilizam, derrubam seguranças fundadas em princípios frágeis e artificiais. Provocam porque não permitem respostas fáceis e exigem reflexão e desacomodação.” A opinião é do teólogo luterano André Musskopf, professor no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo.

As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Para compor as perguntas, tomamos em consideração o capítulo La venadita – veadagens teológicas, de autoria de Musskopf, e um dos 13 que comporão a coletânea sobre Frida Kahlo, que está sendo organazida pela Profª. Drª. Edla Eggert.

Musskopf é pesquisador na área de Teologias GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), Teoria Queer e Estudos de Gênero e Masculinidade. Graduado em Teologia, pela EST, é mestre em Teologia, também pela EST, com dissertação intitulada Ministérios Ordenados e Teologia Gay - Retrospectiva e Prospectiva, sobre a ordenação de pessoas homossexuais, e doutorando em Teologia na EST. É autor de Uma brecha no armário - propostas para uma teologia gay (São Leopoldo: Sinodal, 2002) e organizador, juntamente com Marga J. Ströher e Wanda Deifelt, do livro A flor da pele - Ensaios sobre gênero e corporeidade (São Leopoldo: Sinodal, EST, CEBI, 2004). A IHU On-Line realizou uma entrevista com Musskopf sob o título Identidade masculina e corporeidade, publicada na 114ª edição, de 6-09- 2004, e outra entrevista na edição número 121, de 1º-11-2004, sobre o tema À meia luz: a emergência de uma Teologia Gay – seus dilemas e possibilidades, apresentado por Musskopf no IHU Idéias de 4-11-2004. O texto está publicado nos Cadernos IHU Idéias número 32, disponível para download no site do IHU (www.unisinos.br/ihu). Sua contribuição mais recente à IHU On-Line foi na edição 210, de 05-03-2007, com o artigo Crises nas relações de gênero: a busca por uma outra sociedade.

IHU On-Line - Frida Kahlo disse que não pintava sonhos, mas sua própria realidade. Em que medida seus quadros são o retrato de sua vida?
André Musskopf -
O processo de tornar-se uma pintora está muito relacionado com o processo de construção da identidade desta mulher. Em sua obra, é possível perceber as mudanças na forma como ela mesma se compreende, e a coragem de assumir o processo de se autoconstruir, oferecendo-se como arte e testemunho. Seguramente, sua vida foi mais rica do que a soma de suas obras, o que em nada diminui a sua força e intensidade, bem como a honestidade e a esperança presentes em seus quadros. Desde pinturas que retratam o ambiente familiar, passando por obras em que são evidentes seu compromisso com a Revolução Mexicana , com a arte popular e elementos nativos, os lugares por onde passou, as pessoas que conheceu, até os seus auto-retratos (a parte mais conhecida de sua obra), os quadros de Frida Kahlo são ricos na expressão da realidade que ela viveu, da realidade com que ela sonhou e lutou para construir e que poucos puderam compreender na sua época.

IHU On-Line - Como a ambigüidade sexual e as figuras híbridas se expressam em sua obra?
André Musskopf -
Embora a imagem mais conhecida de Frida Kahlo seja em seus trajes de tejuana, a forma fluida como ela compreendeu e construiu sua identidade sexual e de gênero estão presentes em várias de suas obras. Uma delas é “Auto-retrato com cabelo picado”, na qual veste trajes masculinos e cabelo curto, expressando sua revolta com relação ao caso amoroso de seu marido com a irmã, mas também à forma como transita pelas construções de gênero. Além disso, ela incorpora figuras da cultura e religiosidade popular mexicana como La Llorona  e La Malinche , com um forte apelo sexual transgressor. A sua relação com a maternidade, embora geralmente se afirme sua frustração devido à impossibilidade de ser concretizada diante de seus vários abortos espontâneos, também reflete uma compreensão fluida e ambígua da sexualidade. A própria construção da tejuana, analisada muitas vezes como uma forma de reforçar os padrões femininos da cultura machista mexicana, por uma só vez busca valorizar a cultura popular e os elementos nativos, mas não deixa de refletir uma imagem feminina forte e subversiva.

Já as figuras híbridas, ao mesmo tempo em que incluem a ambigüidade sexual, refletem uma cosmovisão em que o ser humano, no caso a própria Frida, se autocompreende como parte da natureza, do cosmo, e a definição de sua identidade necessariamente interdependente e em relação com o todo. Em obras como “Raízes”, e especialmente, “O veado ferido”, está expressa uma síntese entre elementos diversos inimagináveis numa cultura e numa forma de pensamento dualista e hierárquica.

IHU On-Line - Poderia dar detalhes sobre a relação que você faz entre a postura transgressora de Kahlo com a dos "veados" aos quais se refere em seu artigo “La venadita – veadagens teológicas”?
André Musskopf -
A obra “O veado ferido” se coloca como um desafio instigante para a produção de um conhecimento gay/queer  no Brasil, especialmente por apresentar em primeiro plano a figura de um “veado”, animal associado na cultura brasileira a homossexuais. A partir deste elemento mais “evidente”, é possível estabelecer outros paralelos entre esta obra particular e também da história de Frida. No quadro, por exemplo, o veado é traspassado por flechas, numa alusão a São Sebastião , reconhecido no mundo inteiro como ícone gay e assumido como patrão dos homossexuais no Brasil (segundo declaração do Grupo Gay da Bahia – www.ggb.org.br). As flechas também permitem uma associação com a violência sofrida por homossexuais – os veados feridos – como denúncia das diversas formas de violência. A identificação com Frida Kahlo se dá por meio do quadro por se tratar de um auto-retrato, em que ela se apresenta de forma híbrida unindo sua cabeça ao corpo do veado, mas também por meio da forma como ela construiu sua identidade sexual e de gênero, transgredindo os limites rígidos do sistema heterocêntrico.

IHU On-Line - Por que razões você relaciona o veado com o alter-ego de Frida? Em que sentido o veado é o seu “pé direito”?
André Musskopf -
Segundo o sistema de crenças asteca, que é um dos sistemas que fundamenta as concepções que Frida Kahlo recria na sua pintura, animais representam o alter-ego das pessoas. Frida tinha vários animais domésticos, que inclusive aparecem em muitas de suas obras, e um destes animais era um veado de nome Granizo. Neste sentido é que o veado (no caso de Granizo e da obra “O veado ferido”) pode ser entendido como uma representação do alter-ego de Frida. É também de fontes astecas a relação com o pé direito, pois o veado, neste sistema, corresponde ao pé direito, fonte de dores físicas constantes na vida de Frida, resultante da poliomielite que teve na infância e de um acidente na sua juventude, amputado já no final de sua vida. Assim, na figura do veado (e na obra como um todo), Frida sintetiza vários elementos, sistemas de crença e referência, criando, por sua vez, uma infinidade de associações e relações possíveis.

IHU On-Line - Por que a pintura de Kahlo e a Teologia Gay incomodam, são provocativas? A sociedade ainda não está preparada para elas?
André Musskopf -
A pintura de Frida Kahlo incomoda públicos diversos, por diversos motivos, uma vez que ela transgride limites e fronteiras constantemente. Na relação com a Teologia Gay , a pintura de Frida e a própria Teologia Gay incomodam por revelarem contradições e inadequações de um sistema que divide dualística e hierarquicamente segundo padrões de gênero e sexualidade. Por outro lado, em termos proativos, oferecem um outro discurso nesta área que implica a revisão crítica e a reconstrução destes mesmos padrões, um exercício que causa muita ansiedade e medo àquelas pessoas, instituições e discursos seguramente instalados e enquadrados dentro deste sistema que oprime e exclui não apenas pessoas que pertencem às chamadas “minorias”, mas às próprias pessoas que se sentem seguras dentro destes padrões devido aos supostos privilégios que eles garantem. Neste projeto, não apenas Frida Kahlo e uma Teologia Gay são aliados em potencial, mas todos os movimentos que buscam reconstruir a sociedade e a cultura fundamentados em relações de justiça, igualdade e amor, e que garantam a sustentabilidade da vida na terra. Incomodam quando não se calam, mas expõem a realidade sem esconder ou maquiar. Incomodam porque desestabilizam, derrubam seguranças fundadas em princípios frágeis e artificiais. Provocam porque não permitem respostas fáceis e exigem reflexão e desacomodação.

IHU On-Line - Que relações são possíveis de se estabelecer entre os sofrimentos de Kahlo e dos homossexuais em nossos dias?
André Musskopf -
Os sofrimentos de Frida Kahlo são muitos, e resultado de razões diversas. Mas eles nunca transformaram Frida em vítima do destino. Da mesma forma, a exclusão e marginalização não devem ser, no caso de homossexuais, motivos de vitimização, mas de mobilização para transformação da realidade que oprime e exclui, assim como temos visto no Brasil e no mundo inteiro, com o avanço na legislação e a conquista de direitos que garantem a cidadania pelo Movimento GLBT . Por outro lado, Frida Kahlo e seu trabalho, foram pouco reconhecidos antes de sua morte. Vários/as analistas tem mostrado que sua arte tornou-se palatável quando tornada exótica e valorizada pela sua excentricidade, pelas cores, pelo estilo vivo e alegre lembrando a cultura mexicana e latino-americana, e não pelo seu caráter questionador e explosivo (como afirmou André Breton). A crítica social, política, cultural e religiosa contida na obra de Frida Kahlo, mesmo nos quadros que refletem a sua intimidade e identidade pessoal, precisaram ser domesticadas para que elas se tornassem um produto do mercado artístico global. Aí sua obra passou a ser apenas o retrato de sofrimentos individuais e domésticos que provocam emoções e comoções ao/à observador/a. O mesmo risco corre a comunidade GLBT, quando seus sofrimentos, sua marginalização, são assimilados num sistema social que permite a inclusão através de adequações que garantem uma inclusão fundamentada no seu poder de consumo e no seu potencial de diversão, ao invés de questionar o sistema em suas raízes e que segue oprimindo e marginalizando milhões, de diversas formas e utilizando diversos motivos. A arte de Frida tem o potencial de relacionar-se com a comunidade GLBT por sua ambigüidade sexual, pelo seu questionamento das normas sociais de gênero e sexualidade, pelo sofrimento que é fruto da transgressão de muitas destas normas, mas, principalmente, por permitir vislumbrar uma outra sociedade, e dar um testemunho visível da luta por esta sociedade.

IHU On-Line - Por que Frida transgride, implode, mistura, desconstrói e reconstrói os padrões do masculino e do feminino? Que contribuições essa postura da pintora mexicana oferece aos homossexuais?
André Musskopf -
Porque Frida não reconhece os limites de gênero e sexualidade socialmente estabelecidos e sancionados. Sua posição é transitar entre as fronteiras e ela o faz em diversos âmbitos. Ela mesma negou qualquer tentativa de definir seu estilo de pintura. Ela pinta o universo mexicano, ao mesmo tempo em que transcende fronteiras de nacionalidade. Ela mistura elementos de tradições religiosas e culturais diversas, sem preocupação com cânones ou dogmas. Da mesma forma, o masculino e o feminino são fluidos tanto em seu corpo como em sua obra. Tais atributos, inclusive, perdem seu sentido quando relacionados com ela. Ela pode ser mulher, pode ser homem, pode ser planta, fruta, animal, ela pode ser duas (como na pintura “As duas Fridas”). Neste sentido, ela se relaciona com a crítica da comunidade GLBT (ou pelo menos parte dela) aos mesmos padrões de gênero e sexualidade que determinam construções aceitáveis e invalidam e invisibilizam outras formas de construção, ao mesmo tempo em que se coloca como elemento crítico às posturas assimilacionistas facilmente adotas por segmentos da comunidade GLBT, que reificam padrões rígidos e discriminatórios, esquecendo muito facilmente as conseqüências da aceitação artificial numa sociedade heterocêntrica e capitalista.

IHU On-Line - Poderia aprofundar sua afirmação contida no seu artigo supracitado sobre a pintura de Kahlo utilizar o estilo dos "exvotos" ou "retablos"? O que isso significa?
André Musskopf -
Frida Kahlo utiliza vários elementos da cultura e religiosidade popular mexicana. Um destes exemplos é a utilização da “técnica” ou costume dos ex-votos ou retablos, que são desenhos feitos em pequenos pedaços de metal que exprimem gestos de gratidão por graças alcançadas. Ao utilizar este modelo para dar forma a sua arte, Frida insere sua pintura no universo religioso popular mexicano, colocando as temáticas que aborda no universo sagrado. Na tentativa de diálogo teológico com sua arte, este é um elemento fundamental, especialmente quando se busca uma teologia que esteja enraizada na realidade concreta das pessoas, seus conflitos, dilemas, prazeres e suas paixões. A teologia deixa de lidar com elementos miraculosos e mágicos, relacionados com um outro mundo para além do presente e universalizante, para perceber a presença do sagrado na concretude da vida, no cotidiano ordinário em que as pessoas lutam pela sobrevivência e por uma vida digna. Da mesma forma, uma teologia gay/queer, questionando e analisando criticamente uma histórica negação do corpo e da sexualidade, insere estas questões na construção teológica, negando concepções pecaminosas e impuras, colocando-as no âmbito da experiência do e com o sagrado, sem espiritualizá-las, tornando-se, assim, uma teologia relevante para a vida das pessoas.

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