Edição 225 | 25 Junho 2007

“Cinema como arte que incita ao questionamento”: Quanto vale ou é por quilo?

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IHU Online

Vera Haas possui graduação em Comunicação Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), onde, atualmente, é professora, e em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Também na UFRGS realizou o mestrado em Letras, área em que dá ênfase às Línguas Clássicas. Na entrevista, Vera discorre sobre o filme Quanto vale ou é por quilo?, do diretor Sérgio Bianchi, que será apresentado no dia 30 de junho, na sala 1G119, do Instituto Humanitas Unisinos. 

 

 

O roteiro do filme é baseado no conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis. A obra desenha um painel de duas épocas aparentemente distintas, mas, no fundo, semelhantes na manutenção de uma perversa dinâmica socioeconômica, embalada pela corrupção impune, pela violência e pelas enormes diferenças sociais. Vera Haas comenta, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a relação entre a escravidão e o marketing social apresentada no longa-metragem e o tema polêmico da solidariedade de fachada.

IHU On-Line - Qual é a riqueza de associar no mesmo filme o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, e algumas crônicas de Nireu Cavalcanti sobre a escravidão? 
Vera Haas-
A riqueza é sempre a crônica, a recuperação do cotidiano, dos hábitos e dos valores da época. Aliás, pelo que conheço, essa é a grande contribuição de Nireu Cavalcanti no que se refere ao Rio de Janeiro.
 
IHU On-Line - Que relação podemos estabelecer, no filme, entre a escravidão do século XVIII e a dos tempos atuais (exclusão social)? Como se dá a analogia entre o antigo comércio de escravos e a exploração da miséria pelo marketing social?
Vera Haas-
Resulta em um tratado de História, se tomarmos o aspecto da constituição das relações sociais, ou de Literatura, se tomarmos o aspecto das representações da sociedade brasileira. Como meu menu refere-se mais às artes, fico com o viés da representação; o mais deixo aos historiadores. Embora a literatura possa denunciar ações sociais que a sociedade insiste em ocultar, ela o faz mediante criação ficcional, e esse aspecto não pode ser desconsiderado. Assim, refletindo sobre o conto de Machado de Assis e sobre a adaptação de Bianchi, penso que a relação proposta pelo cineasta, ao reunir as duas formas de exploração, acaba por apontar uma desigualdade social historicamente construída, mas sem dar a uma etnia o papel de vítima e a outra o papel de algoz, mas, ao contrário, problematizando a exploração em seus aspectos mais sutis e, talvez por isso mesmo, mais violentos. Aliás, essa era a tônica da obra machadiana, no que se refere à denúncia dos caminhos que a sociedade brasileira escolheu ao fim dos oitocentos.
 
IHU On-Line - O que podemos entender por “solidariedade de fachada” e como isso aparece em Quanto vale ou é por quilo?
Vera Haas-
Preciso comentar falando sobre essa expressão, tão popularizada hoje. Parece-me que a expressão “solidariedade de fachada” já está muito clichê. E isso pode ser um problema, pois as palavras ou expressões-clichês acabam por perder a força da denúncia. Aliás, não sei se essa expressão dá conta do que Bianchi e Machado fizeram... Se lermos afirmações feitas por dois grandes escritores da literatura brasileira (no momento, penso em Instinto de nacionalidade, da Machado de Assis, e na entrevista de Guimarães Rosa  a Lorenz), encontraremos ali a constatação de que o clichê e a palavra em seus usos mais comuns acabam por fragilizar a expressão estética e, conseqüentemente, por enfraquecer a força literária de um texto ficcional, inclusive no que se refere a conteúdos de denúncia social ou à problematização de questões de ordem ontológica. Por isso, o escritor deve depurar a palavra de seus aspectos menos inusitados, de modo a não levantar simplesmente a face evidente do problema. Da mesma forma, também o cinema, quer por meio da condução da câmera, quer por meio de recursos como o cenário, a música e o filme, ou ainda pela composição narrativa resultante do processo de montagem, é uma arte que busca inovações para surpreender o seu público, de modo a libertá-lo de formas de apresentação recorrentes, já comuns e não mais impactantes. Só assim a narrativa fílmica atingirá a consciência crítica do público: por meio da provocação e renovação estética.

Bem, quanto à “solidariedade de fachada”, veja bem, não há solidariedade, certo? O filme apresenta personagens – atores sociais – preocupados em resolver sua vida particular, seus entraves cotidianos, mesmo que para isso precisem burlar a ética de modo despudorado. Quanto à Arminda, há dois finais...
 
IHU On-Line - Conforme citação no site do filme, “Nem o marxismo, com suas leis históricas e categorias econômicas, nem as teses de Joaquim Nabuco ou Gilberto Freyre conseguiram explicar um fenômeno tão grande e complexo quanto a escravidão no Brasil”. Qual é a razão disso? Por que é tão difícil compreender esse processo cultural e histórico?
Vera Haas-
Respondo essa questão considerando minha área de atuação, meu menu. Realmente, não sei quais seriam as ciências que dariam conta da análise de relações sociais constituídas a partir de nossa colonização, mas me pergunto se não precisamos da conjunção de várias ciências para pensar com clareza a formação social brasileira...

Bem, não é da competência da literatura a descrição exata de fatos da realidade nem a conceituação de estruturas sociais, mas, sim, a sensibilização que provoca a reflexão. Parece-me que a literatura, por seu trabalho com imagens, dá conta da complexidade da escravidão e de relações sociais que mantém certo tipo de exploração pela natureza da imagem. Ou seja, a imagem literária apresenta, ao mesmo tempo, o bem e o mal, o certo e o errado. O que há de errado em um pai pobre, um homem com poucos recursos financeiros, amar profundamente seu filho e não medir esforços para não entregá-lo à Roda dos Enjeitados? Veja que não é uma questão de resposta fácil. E, se nos detivermos com atenção à narrativa de Machado, encontraremos muitas outras questões semelhantes a essa. Assim, ainda hoje, o aproveitamento que o cinema faz da literatura está relacionado a essa profundidade da imagem literária e à possibilidade de transformá-la em imagem na tela do cinema. Machado de Assis merece não uma simples releitura, mas uma ousada re-interpretação. Penso que Bianchi chega a isso, forjando seu cinema como arte que incita ao questionamento.

Hoje, parece-me que a Nova História vem utilizando a literatura como fonte de consulta que pode enriquecer a interpretação dos chamados fatos históricos. Mas, veja bem, como fonte, não como História. Acredito que esse procedimento esteja ligado ao reconhecimento da História como forma de enunciação dos fatos e, paralelamente, contempla aqueles autores que, no afã de compreender as relações que a sociedade brasileira tem construído, elaboraram textos em que encontramos passagens que em nada devem à literatura, como é o caso de Gilberto Freyre.

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