Edição 223 | 11 Junho 2007

“Experimentei com Paulo Freire o verdadeiro sentido do que é participação”

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Para a pedagoga brasileira Ana Maria Saul, Paulo Freire “sempre tinha algo novo a propor”. A professora destaca que seu objetivo era a construção de uma escola pública, popular e democrática. No entanto, ela ressalta que o educador sempre enfatizou que, para ocorrerem mudanças, “era fundamental que a escola quisesse mudar a sua cara”.  As declarações fazem parte do artigo a seguir, exclusivo, enviado por e-mail para a IHU On-Line.

Docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Saul é graduada em Pedagogia, mestre e doutora em Educação pela mesma instituição. Sua tese intitulou-se Avaliação emancipatória: uma proposta democrática para reformulação de um curso de pós-graduação. Atualmente, desenvolve o projeto de pesquisa A presença de Paulo Freire na educação brasileira: análise de sistemas públicos de ensino, a partir da década de 90. É autora de Paulo Freire e a formação de educadores: múltiplos olhares (São Paulo: Editora Articulação Universidade/Escola, 2000) e Avaliação emancipatória: desafio à teoria e à prática de avaliação e reformulação de currículo (7. ed. São Paulo: Cortez, 2006). É organizadora de Paulo Freire i la formació de persones educadores: enfocaments diversos (Valência: CReC, 2006) e uma das organizadoras da obra Paulo Freire:um pensamento atual para compreender e pesquisar questões do nosso tempo (São Paulo: Editora Articulação Universidade/Escola, 2005).

Tive a grande felicidade de partilhar com ele, pelo período de quase duas décadas, o espaço da sala de aula, dirigindo os seminários das terças-feiras à tarde. A presença de Paulo Freire, na sala de aula, sempre foi muito querida, marcante e significativa. Raramente, ele era o primeiro a falar. Ele ouvia, atento e respeitosamente, as argumentações dos alunos e ficava à vontade para interferir, no momento que julgasse oportuno, ou quando alguém do grupo a ele se dirigia. Neste momento, ele começava a falar calmamente, gesticulando com as mãos, procurando sempre tocar, delicadamente, o braço ou o ombro de quem estivesse mais próximo dele, na roda da sala de aula, como se, com este gesto afetivo, ele se fizesse entender melhor. Então, ouvíamos sua voz pausada que revelava, porém, uma postura forte que convidava a pensar sobre os desafios por ele apresentados, na direção de uma leitura crítica do mundo, na defesa intransigente da ética do ser humano e da luta  em favor dos oprimidos.

A grande oportunidade que tive de conviver e aprender com Paulo Freire, na universidade, ampliou-se e aprofundou-se quando fui por ele convidada para dirigir a reorientação curricular da Secretaria Municipal de Educação do Município de São Paulo  e coordenar o programa de formação permanente dos educadores. Trabalhar na equipe Paulo Freire, enquanto Secretário da Educação, foi uma experiência inusitada.

Em nossos encontros de quase todas as manhãs, no seu gabinete, em um edifício da Avenida Paulista, eu encontrava um homem alto, elegante, de terno e gravata, cabelos brancos, quase sempre longos, com suaves ondulações sobre os ombros. Bem disposto, chegava com pontualidade nas primeiras horas da manhã. Mostrava sempre a sua preocupação com os aspectos mais gerais da política educacional. Surpreendia-me o modo criativo e concreto com que ele tratava o cotidiano. Quem imagina o Secretário Paulo Freire como alguém que manejava tão somente as diretrizes mais gerais da Secretaria da Educação, engana-se.

Com a experiência dos seus setenta anos e com a autoridade de um saber, reconhecido por muitos povos do mundo, tinha sempre algo novo a propor, na perspectiva de colocar em ação a política mais geral, avançando passo a passo, rumo à construção de uma escola pública, popular e democrática.

No dizer coloquial de Paulo Freire, era preciso “mudar a cara da escola”; no entanto, era fundamental que a escola quisesse mudar a sua cara e por isso precisava ser respeitada, consultada, fazendo-se sujeito de sua própria história. Por isso, ele indagava com detalhes sobre cada programa em desenvolvimento; ficava absolutamente atento à leitura da realidade, aos avanços e dificuldades, demonstrando profundo respeito pela história e vivendo um tempo de mudança com paciência/impaciente.

Entusiasmava-se com cada pequeno avanço; o relato de simples ações de escolas que evidenciavam estar caminhando na direção de uma escola séria na produção de conhecimentos e, ao mesmo tempo, alegre e democrática, era o suficiente para mantê-lo animado e estimulado. Desafiava-me sempre com novos projetos, quase todos, ousados. Parecia que reservava a noite para sonhá-los e explodi-los, no dia seguinte, com o raiar de um novo dia, numa atmosfera que tinha clareza de propósitos, determinação, alegria e esperança.

A cada novo projeto, exibia no olhar o brilho e a excitação de um menino. Toda a sua criação ousada, todavia, era cercada por uma moldura democrática onde o diálogo sempre foi a pedra fundamental. Paulo Freire queria ouvir sempre e atentamente a posição de sua equipe sobre todas as propostas. Ouvia ponderações, recriava suas propostas, estimulava e dava espaço a nova proposições; externava preocupações, colocava parâmetros.

Experimentei com Paulo Freire o verdadeiro sentido do que é participação. Muito ao contrário da falsa participação que manipula colaboradores, centralizando todas as decisões nas mãos do chefe e delegando apenas a execução de tarefas, a participação, na equipe de Paulo Freire, assumiu o mais radical dos significados, caracterizando-se verdadeiramente como uma participação em nível político. Isto significou, efetivamente, compartilhar decisões. E observe-se que chamar a equipe para integrar o processo de tomada de decisão implicava, necessariamente, uma divisão do poder do dirigente. É isto! Paulo Freire dividia o seu poder de Secretário de Educação com sua equipe, na Secretaria. Fazia isso com tranqüilidade, mas, sobretudo, por convicção política. Importante destacar que isso não o ameaçava ou o tornava “menos poderoso”. Ao contrário, como ele mesmo dizia em tom muito bem humorado: “Sou o secretário que menos tem poder e, por isso, contraditoriamente, sou o que tem mais poder”.

No cotidiano difícil, demandante, desafiador da educação na cidade de São Paulo, na construção de uma gestão democrática, a equipe de Paulo Freire pôde experimentar a sua disposição para o diálogo, a tolerância, uma paciência/impaciente e um toque de paixão em tudo o que ele fazia.

Assim posso sintetizar a minha vivência, ao trabalhar com Paulo Freire, enquanto gestor de uma rede pública de educação: um grande aprendizado de política, de teoria e de prática. Mais do que um aprendizado, o privilégio de aprender lições de vida com um homem que surpreendia, especialmente pela sua coerência.

Após o seu falecimento, em sua homenagem, a PUC/SP criou, no 2º semestre de 1998, a Cátedra Paulo Freire, sob a direção do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo.
Na PUC/SP, temos entendido a Cátedra como um espaço para o desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre/e a partir da obra de Paulo Freire, focalizando as suas repercussões teóricas e práticas na área da educação e a potencialidade de sua pedagogia fecundar novos pensamentos. Em outras palavras, homenageamos Paulo Freire do jeito que entendemos que ele gostaria de ser homenageado, estudando com rigorosidade o seu pensamento, para compreendê-lo e para recriá-lo.

A Cátedra Paulo Freire da PUC/SP oferece, semestralmente, cursos em nível de Pós-Graduação. Recebe, também, estudantes que ainda não estão formalmente vinculados a esse nível de ensino. Desenvolve-se, na Cátedra, uma metodologia que contempla “múltiplos itinerários”, o que significa dar atenção a diferentes focos de trabalho/pesquisa, em acordo com interesses e demandas dos objetos de investigação dos alunos, referenciados pela pedagogia freiriana, desenvolvendo-os. O método de trabalho, na Cátedra, inicia-se com a “investigação temática”, momento em que são levantados os interesses de pesquisa dos participantes. Trabalha-se, a seguir, com uma imersão no pensamento freiriano, buscando, na análise crítica de sua obra, os referenciais para a pesquisa dos participantes.

No estágio final do trabalho, ao término de cada semestre, objetiva-se a elaboração de uma produção escrita que é socializada e discutida na classe. Esta produção tem tido várias destinações. Uma delas é a própria pesquisa do pós-graduando que freqüenta a Cátedra (dissertação ou tese). Uma segunda destinação tem sido a apresentação do texto elaborado na Cátedra, em eventos nacionais e internacionais. Uma terceira possibilidade para divulgação desta produção tem sido a publicação da mesma em livros organizados pela Cátedra. Neste caso, os textos têm sido submetidos a uma nova instância de análise (também de caráter pedagógico) podendo voltar ao autor, para revisão e complementação.  

A Cátedra vem desenvolvendo uma ampla pesquisa cumulativa que busca mapear e analisar a “Presença do pensamento de Paulo Freire nos sistemas de educação, no Brasil, a partir da década de 90”. Os resultados desta pesquisa estão sendo registrados em uma ferramenta virtual que figura no site da Cátedra, www.pucsp.br/paulofreire, com o objetivo de sistematizar informações e adensar uma massa crítica de dados que possam subsidiar pesquisadores e gestores de políticas públicas de educação na perspectiva crítico-emancipadora, possibilitando-lhes analisar e recriar políticas e práticas.

Esta pesquisa deve se ampliar, assumindo uma abrangência nacional, por meio de uma rede freiriana de pesquisadores de cursos de pós-graduação, em  várias regiões do país que investigam a influência de Freire na educação brasileira.

As produções da Cátedra Paulo Freire, ao longo de seus quase dez anos de existência, incluíram dissertações e teses, textos preparados e apresentados em Congressos nacionais e internacionais e livros. Três livros já resultaram do trabalho da Cátedra, integrando textos produzidos pelos seus participantes. O livro Paulo Freire e a formação dos educadores - múltiplos olhares,  lançado no ano 2000, incluiu vinte e sete textos de autoria de alunos e professores que foram convidados para conduzir seminários na Cátedra. Este livro já foi publicado no México e na Espanha, no idioma catalão. A pedagogia da libertação em Paulo Freire  foi lançado em  2001. A mais recente publicação da Cátedra data de novembro de 2005 e tem como título Paulo Freire: um pensamento atual para compreender e pesquisar questões do nosso tempo .

A Cátedra Paulo Freire da PUC/SP, com grande responsabilidade, tem orgulho de ser um espaço privilegiado de ensino e pesquisa sobre/e a partir do  pensamento  de Paulo Freire, um dos mais importantes nomes da Pedagogia mundial do último século.

Paulo Freire deixa saudades pela sua lucidez de interpretação dos fatos do mundo, pelo seu poder de indignação, por seu contagiante amor à vida e ao ser humano, por sua luta incessante pela justiça, pela liberdade e por sua presença solidária e sempre amiga.

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