Edição 223 | 11 Junho 2007

Richard Rorty – 1931-2007

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Traduzimos e publicamos o artigo de Manuel Cruz, catedrático de Filosofia na Universidade de Barcelona e pesquisador do Instituto de Filosofia do CSIC, publicado no jornal El País, 11-06-2007.

O filósofo americano Richard Rorty nasceu no dia 4 de outubro de 1931, em Nova York. Estudou nas universidades de Chicago e Yale e formou-se na tradição da filosofia analítica anglo-americana e no pensamento centro-europeu. Rorty integrou ambas correntes e se situou na corrente do neopragmatismo. Ensinou na Universidade de Princeton até que em 1983 renunciou à cátedra de Filosofia para ocupar o posto de professor de Humanidades na Universidade de Virginia. Entre os seus livros, destacamos O futuro da Religião (São Paulo: Relume Dumará, 2006), publicado em conjunto com Gianni Vattimo; Pragmatismo e Política (São Paulo: Martins, 2005); Ensaios pragmatistas (Rio de Janeiro: DP&A Editores, 2006), em co-autoria com Paulo Ghiraldelli Jr.; e Philosophy as cultural politics, volume 4 (Cambridge-USA, 2007).

Ele faleceu na sexta-feira, dia 8 de junho, aos 76 anos de idade.

Não foi o melhor dia de Epicuro quando escreveu a celebra Carta a Meneceu, aquela em que despachava com uma só penada o medo ancestral dos homens ante a morte com o argumento, mais apropriado a um sofista do que de um filósofo em sentido minimamente próprio, de que a morte “não é nada para nós, já que enquanto nós somos, a morte não está presente e quando a morte está presente, então nós não somos”. O raciocínio não podia ser mais simples: “Não existe (...) nem para os vivos nem para os mortos, pois para aqueles ainda não é, e para estes ainda já não são mais”.
Mas questionar o argumento de Epicuro de nenhum modo implica em dar razão a quem, no outro extremo, empenhou-se em atribuir à condição mortal do ser humano seu traço mais específico, até o extremo de chegar a definir o homem, como fez Heidegger, como um genuíno ser-para-a-morte. Desta disjuntiva escapara todos aqueles pensadores que colocaram o fato de que a morte deve ser pensada sob a perspectiva da vida, e não o inverso. O homem resulta ser, assim, um ser-para-a-vida, dimensão que adquire todo o seu valor, toda a sua densidade, precisamente do fato de que toda a vida, qualquer vida, chega a seu fim, em algum momento.

Tudo isto vem a propósito de que a nós, os vivos, parece acontecer o mesmo que, segundo dizem, passa aos mortos precisamente antes de iniciar sua caminhada (de acordo com o que explicam os que se salvaram e regressaram para contá-lo), e se os segundos vêem projetados, em poucos instantes, sobre a tela da imaginação as imagens fundamentais que compõem a película da própria vida, para os primeiros a notícia do falecimento de alguém que se conheceu oferece lugar a uma experiência, em certo sentido, análoga. Já não nos distraem as estórias recentes ou aquele episódio mais longínquo, mas nos vem a recordação dessa pessoa de um golpe só, com um único golpe de memória.

Sempre tem algo – muito – de presunçoso aventurar-se a afirmar, rotundamente, em que termos passará à história da filosofia um pensador que acaba de desaparecer: o autor do prognóstico parece se colocar num lugar fronteiriço ao do narrador onisciente, insinuando que conhece as chaves pelas quais alguém alcança a posteridade. Mas inclusive situando-se na mais modesta das perspectivas, uma coisa pode-se afirmar, sem margem de erro: Richard Rorty, Jacques Derrida, Jürgen Habermas  e Gianni Vattimo constituem – para além, obviamente, das enormes diferenças entre suas propostas – os quatro pilares fundamentais do pensamento filosófico no último quarto do século XX.

No caso de Rorty, esse lugar de privilégio foi adquirido graças a uma obra animada por uma particular combinação de curiosidade à prova de dogmas e de sensibilidade extrema para os problemas coletivos (ou das dimensões gnoseológicas e ético-políticas do pensamento, se quisermos utilizar uma jargão mais profissional).

Desde a sua antologia sobre a filosofia analítica, em cuja introdução assumira o rótulo – acunhado por Gustav Bergman  – de giro lingüístico, que tanta sorte teve na posteridade, até o seu recente diálogo com Vattimo sobre o futuro da religião, editado por Santiago Zabala, poderia se afirmar que o conjunto da trajetória rortiana se dá permanentemente entre ambas as dimensões, alternando as contribuições de um e de outro tipo.

Do primeiro seria representativo o  texto que lhe proporcionou mais notoriedade, no qual o autor mostrava seu estilo filosófico particular, feito tanto de espírito crítico e de abertura teórica (precursora do diálogo interparadigmático), seu já clássico A filosofia e o espelho da natureza, enquanto que do segundo caberia mencionar o polêmico Forjar nosso país, onde se incluía, de maneira decisiva, o debate sobre o significado de ser de esquerda nas sociedades ocidentais desenvolvidas de nossos dias. Sem esquecer, é claro, os trabalhos recolhidos em três volumes de Escritos filosóficos, o livro Conseqüências do pragmatismo e, sobretudo, essa fundamental contribuição à reflexão metafilosófica que é Contingência, ironia, solidariedade.

Porque é neste último texto que encontramos, claramente explicitado, o sentido último do projeto rortiano. É nele que se apresenta a definição do filósofo que ironiza, como aquele que “passa seu tempo preocupado com a possibilidade de ter sido iniciado na tribo errada, de ter aprendido o jogo da linguagem equivocada”. Não se trata, certamente, de uma preocupação menor. Porque se fosse o caso que o processo de socialização que o converteu em ser humano ao lhe dar uma linguagem lhe tivesse dado uma linguagem equivocada, então ele mesmo teria se convertido na “espécie errônea do ser humano”. A ironia não proporciona a solução, mas nos torna conscientes do problema. Se a ironia serve para algo, é precisamente como remédio contra a idéia de que a ciência natural, a teologia ou a filosofia estarão em condições de dar a única descrição verdadeira e real da essência do homem.

Daí sua luminosa afirmação: o que distingue uns filósofos de outros é precisamente quem é o objeto da inveja. Os filósofos analíticos sempre invejaram os cientistas da natureza ou, no mínimo, os matemáticos. Rorty, ao contrário, se precisar escolher alguém para acompanhá-lo numa ilha deserta, escolheria Blake  ou Rilke.

Quase sem dar-nos conta, a evocação acaba por nos reenviar ao ponto de partida. Esta é a vantagem em escrever (bons) livros: seus autores nunca acabam de morrer completamente, o que é, como dizer, que são um pouco mais seres para a vida que o resto dos mortais.

Chega-me a notícia da morte de Richard Rorty e, como de repente, não consigo imaginá-lo adornado com os traços que mostrava em seus textos: inteligente, mordaz, brilhante e cheio de entusiasmo. Ah! E rindo-se de tudo, como somente os grandes podem fazê-lo.

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