Edição 458 | 10 Novembro 2014

Os jesuítas e as fronteiras do império. A Amazônia e a missão do Maranhão

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Andriolli Costa

Karl Arenz explora o contexto histórico que perpassou desde o chamado “século jesuítico” na região Amazônica até seu encerramento com a expulsão e supressão da Companhia

Durante o período colonial, a região Amazônica, embora pouco integrada nas dinâmicas rentáveis do comércio atlântico português, ocupava lugar geoestratégico fundamental. Não muito distante da metrópole portuguesa, das ilhas atlânticas, da costa africana ou do centro do Brasil, formavam uma colônia à parte, cuja presença jesuíta foi fundamental para o estabelecimento da geografia local. 

De acordo com o historiador Karl Heinz Arenz, diversos fatores colaboraram para que — mesmo com os tensionamentos constantes com os colonos — a Companhia de Jesus tivesse tanta representatividade social. Utilizando o prestígio do padre Antonio Vieira, conseguiram conquistar o “monopólio” sobre os índios, declarando-os livres mas, ao mesmo tempo, incluindo-os em suas Missões. “Como o norte contava com poucos colonos e não havia grandes plantações (e, por conseguinte, poucos escravos negros), a Companhia de Jesus ganhou logo muita importância, pois era ela que controlava a única mão de obra disponível.”

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line ele ressalta: “A falta de investimentos oficiais ‘condenou’, de certa forma, os colonos a uma vida precária que contrastava com o, relativamente, bom andamento dos aldeamentos. Os jesuítas conseguiram agilizar, sobretudo, o comércio com o cacau, tornando-se fornecedores muito importantes desta ‘droga do sertão’ que estava sendo apreciada na Europa”. Arenz ainda pontua as falácias sobre as críticas do enriquecimento dos jesuítas, explora o contexto da criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão e a influência exercida pelo Marquês de Pombal para a expulsão dos jesuítas da região. 

Karl Heinz Arenz possui graduação e mestrado em Teologia pela Faculdade Filosófico-Teológica de Sankt Augustin, Alemanha. Tem doutorado em Teologia Dogmática com concentração em Missiologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo-SP. Também cursou mestrado em História Moderna e Contemporânea com concentração em História do Brasil e do Atlântico Sul pela Universidade Paris IV (Paris-Sorbonne), França. Doutorou-se em História Moderna e Contemporânea com concentração em História do Brasil e do Atlântico Sul pela mesma instituição francesa. Atualmente, é professor na Universidade Federal do Pará, em Belém.

É autor de diversas publicações, das quais destacamos Levar a luz de Nossa Santa Fé aos sertões de muita gentilidade: fundação e consolidação da missão jesuíta na Amazônia Portuguesa (século XVII) (Belém: Açaí, 2012); Fazer sair da selva: as missões jesuíticas na Amazônia (Belém: Estudos Amazônicos, 2012) e São e salvo: a pajelança da população ribeirinha do Baixo Amazonas como desafio para a evangelização (Quito: Abya-Yala, 2003).

O professor participa da Mesa-Redonda Os jesuítas e as fronteiras do império: o caso da Amazônia, no dia 12 de novembro, das 14h30min às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU - Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em que ano iniciou a missão dos Jesuítas na Amazônia? Quais eram suas principais atribuições? 

Karl Heinz Arenz – Fixar um ano exato para indicar o início da Missão do Maranhão  é impossível. Os Padres Luís Figueira  e Francisco Pinto  foram, em 1607, à serra de Ibiapaba (hoje no Ceará), que ficou, na época, no extremo norte das possessões portuguesas no Brasil. No entanto, esta expedição fracassou devido à morte violenta de Francisco Pinto. Luís Figueira voltou quinze anos depois, em 1622. Naquele ano, ele se instalou, junto com o Padre Benedito Amodei , na cidade de São Luís. Os dois enfrentaram muitas dificuldades, mas se deram conta das potencialidades da região, sobretudo em vista de uma promissora evangelização entre os inúmeros povos indígenas. 

Luís Figueira viajava pelo interior, entrando inclusive nos vales dos rios Tocantins e Xingu. Em 1637, ele redigiu um memorando no qual sugere que os jesuítas assumam, junto com os franciscanos (presentes desde 1617), a catequização dos índios. Ele partiu para Lisboa onde conseguiu, de fato, a fundação da Missão do Maranhão, em 1639. No fundo, este ano marca o nascimento oficial da entidade administrativa. No entanto, as turbulências causadas pela Restauração da independência portuguesa em Lisboa e pela ocupação de São Luís pelos holandeses adiaram a volta de Figueira a terras amazônicas. Ele só conseguiu partir, acompanhado de 14 confrades, em 1643. Mas o grupo sofreu naufrágio, provavelmente em frente da ilha do Marajó e, fora dois (ao menos, é o que se conta), todos pereceram. 

Alguns padres continuaram presentes na região, como Lopo de Couto , que se destacou na resistência contra os holandeses, mas durante toda a década de 1640 não havia uma missionação sistemática ou planejada. Só em 1652, se retomava o envio mais ou menos regular de padres jesuítas. A iniciativa veio do rei, D. João IV , conhecido por ser muito favorável à Companhia. Como ele queria que a Amazônia se tornasse uma colônia mais estruturada, confiou a evangelização dos índios aos inacianos. O primeiro grupo que chegou logo sentiu um clima de hostilidade, pois os colonos temiam uma interferência dos jesuítas nos assuntos indigenistas. Assim, o padre João de Souto Maior  foi forçado a assinar um documento prometendo que a Companhia só cuidaria de assuntos espirituais. 

Finalmente, é a chegada do Padre Antônio Vieira , em 1653, que pode ser considerada como o momento da refundação da Missão. Ele veio com a dupla titulação de superior e visitador e, de fato, até a sua expulsão do Maranhão, em 1661, conseguiu implantar uma política de cunho monopolista (todos os índios estiveram sob a tutela exclusiva da Companhia) e expansionista (ele incentivou a fundação de aproximadamente 50 aldeamentos). Assim, ao invés de falar de um ano de fundação, deveria se falar em um processo de fundação que se estendeu por quase três décadas, de 1622 a 1653. Alguns historiadores falam de um “século jesuítico” na Amazônia que, segundo eles, ia de 1653, a chegada de Vieira, até 1759, a expulsão definitiva. Concordo com isso, pois somente a partir de 1653 podemos falar de uma presença contínua da Companhia.

 

IHU On-Line – Quais foram os marcos da ação da Companhia de Jesus no extremo Norte do País? Como eles se relacionavam com indígenas e colonos?

Karl Heinz Arenz – Como já falei antes, havia, desde o início, um clima de tensão provocada pela mera presença dos jesuítas. Um historiador alemão, Heinrich Böhmer , escreveu, no início do século XX, que a vinda de Vieira à Amazônia desencadeou logo uma “guerra de trinta anos”. Ele tem razão, pois até a promulgação do “Regimento das Missões”, em 1686, houve muitos conflitos. De fato, os jesuítas, sobretudo Vieira, tiveram ainda muito peso junto às autoridades metropolitanas e o aproveitaram para obter leis favoráveis a seus objetivos. Além disso, os padres eram adeptos das ideias da “teologia da graça” e do humanismo que impregnaram sua formação. Vieira conseguiu a lei de 1655 que define o monopólio jesuíta em assuntos indigenistas (não só na esfera espiritual, mas também “temporal” ou civil, como diríamos hoje). Outra lei inspirada por ele é a de 1680, que declara os índios livres. 

Já o padre luxemburguês João Felipe Bettendorff , formado em Direito, acompanhou as negociações acerca do “Regimento das Missões”, que estabeleceu, de certa forma, um modus vivendi entre colonos e missionários. O porquê destas tensões se explica também pelas experiências que a Companhia fizera no Estado do Brasil mais ao sul. Lá, os padres haviam perdido sua influência inicial, passando por abalos tanto externos como internos entre 1580 e 1620. Em consequência disso, o modelo dos aldeamentos acabou sucumbindo, em grande parte, aos interesses das autoridades e dos colonos. Para que isso não se repetisse no Estado do Maranhão e Graõ-Pará, os missionários se empenharam em obter a tutela exclusiva sobre os índios. Como o norte contava com poucos colonos e não havia grandes plantações (e, por conseguinte, poucos escravos negros), a Companhia de Jesus ganhou logo muita importância, pois era ela que controlava a única mão de obra disponível. De fato, os índios eram imprescindíveis, sobretudo para o transporte em canoas. 

Havia muitos índios que morreram remando nos imensos rios da região. No fundo, tudo dependia deles: transportar tropas, transportar “drogas do sertão”, transportar missionários, transportar informações. Além disso, a vasta rede de aldeamentos era mais densa e eficiente do que a dos fortes. A geógrafa francesa Martine Droulers  fala, no caso da Amazônia, de uma “geografia jesuítica”. De fato, quase todas as cidades e vilas maiores na Amazônia remontam a uma antiga missão inaciana. Os dois marcos principais da ação jesuítica são, portanto, a tutela quase absoluta sobre os índios e a fundação de uma vasta rede de aldeamentos com ampla autonomia. Apesar dos surtos de epidemia e dos conflitos com autoridades e colonos, este modelo jesuítico ficou em vigor até as vésperas da expulsão. No interior dos aldeamentos surgiu, por causa da autonomia e do intenso convívio entre padres e índios, uma cultura e religiosidade bem peculiares das quais os “caboclos”, os ribeirinhos nativos da Amazônia, são hoje os herdeiros.

 

IHU On-Line – Quem foram os personagens principais para a compreensão deste período? 

Karl Heinz Arenz – Alguns já mencionamos. Eu considero os Padres Luís Figueira, Antônio Vieira e João Felipe Bettendorff como os fundadores da Missão do Maranhão. O primeiro reconheceu a potencialidade da região e idealizou a instituição da Missão. O segundo viu na obtenção da tutela e na expansão dos aldeamentos um meio para revitalizar o projeto jesuítico. No fundo, Vieira foi rápido demais ao implantar suas ideias. Por isso, ele se tornou impopular e foi expulso em 1661, no contexto de um primeiro levante dos colonos. O terceiro, João Felipe Bettendorff, de origem luxemburguesa e formado em direito, conseguiu reorganizar e consolidar a Missão após a deportação de Vieira e outros contratempos. Sua contribuição é a introdução de um catecismo bilíngue de sua autoria (que unificou o discurso catequético) e, mais ainda, a sua colaboração indireta na elaboração do “Regimento das Missões”. Para mim, este texto era um tipo de lei orgânica da sociedade colonial que estava em pleno processo de formação. 

No fundo, o Regimento define — apesar de muitas modificações posteriores — as relações entre os quatro agentes principais: os missionários, os colonos, as autoridades (locais e metropolitanas) e os índios. Além disso, trata-se de uma das poucas leis indigenistas coloniais que mais ficou em vigor, mais de setenta anos. Depois desta “geração fundadora”, que atuou inteiramente no século XVII, há poucas personagens que se destacam. Podemos apontar alguns cronistas que, em razão de terem sido superiores ou missionários muito ativos, deixaram alguns “vestígios” na trajetória da Missão (a partir de 1727, Vice-Província): Domingos de Araújo , Bento da Fonseca , José de Moraes , Anselmo Eckart  ou João Daniel . Um fato que chama atenção é a presença relativamente considerável (em comparação com a Província do Brasil) de jesuítas não portugueses. Tanto no século XVII como no século XVIII se destacam missionários vindos da península itálica e da Europa Central. Um destes é o já mencionado João Felipe Bettendorff.

 

IHU On-Line - O que acarretou a expulsão dos jesuítas da Amazônia? Por que essa região era considerada importante? 

Karl Heinz Arenz – A região amazônica é fundamental quando se trata da expulsão dos jesuítas de Portugal e de suas possessões ultramarinas. De fato, foi a presença marcante da Companhia nesta colônia que, embora pouco integrada nas dinâmicas rentáveis do comércio atlântico português, ocupou um lugar geoestratégico central (pois não muito distante da metrópole, das ilhas atlânticas, da costa africana e do Brasil, então uma colônia à parte). A falta de investimentos oficiais “condenou”, de certa forma, os colonos a uma vida precária que contrastava com o, relativamente, bom andamento dos aldeamentos. Os jesuítas conseguiram agilizar, sobretudo, o comércio com o cacau, tornando-se fornecedores muito importantes desta “droga do sertão” que estava sendo apreciada na Europa. Eles conseguiram manter um comércio que podemos caracterizar de paralelo, em razão dos privilégios de isenção na exportação do produto. Hoje sabemos que os lucros obtidos não foram acumulados, como alegaram os adversários da Companhia de Jesus, mas, em grande parte, reinvestidos, algo que a Coroa não fez. Quem aponta para isso é o Professor José Alves de Sousa Júnior da UFPA, em Belém, em sua tese. Um outro critério é de ordem jurídica. Já falei antes que o “Regimento das Missões” deu um status importante aos jesuítas e, também, a outros religiosos (sobretudo, franciscanos). Administrando as missões com sua expressiva autonomia, os religiosos controlavam a principal mão de obra disponível. As reformas pombalinas tentaram inverter isso ao fazer dos índios, sob o pretexto da emancipação, trabalhadores disponíveis num mercado de trabalho doravante livre. Convém lembrar que as três leis decretadas em junho de 1755 — que, aliás, resumem muito bem os objetivos do Marquês de Pombal — se destinaram diretamente ao Estado do Grão-Pará e Maranhão. Fica óbvio o quanto elas se complementam mutuamente: afastamento dos missionários de assuntos “temporais” (como a repartição da mão de obra indígena), emancipação dos índios (fim da tutela dos religiosos), introdução de uma Companhia de Comércio (para dinamizar a economia, sobretudo, a exportação mediante novos agentes e investidores).

 

IHU On-Line - Qual o interesse do Marquês de Pombal em apoiar a Espanha na expulsão dos jesuítas da região amazonense?

Karl Heinz Arenz – Existia, ao longo da fronteira luso-espanhola nas Américas uma série de “complexos missioneiros” administrados pelos inacianos. Os mais conhecidos são os dos Guaranis, Chiquitos, Moxos e Maynas. Para os castelhanos, os missionários e seus neófitos tiveram a função de sentinelas em uma zona sensível, pois não bem definida. Fora o primeiro complexo, os outros estiveram em contato, mesmo esporádico, com as missões jesuíticas da Missão/Vice-Província do Maranhão. Evidentemente, ao expulsar os jesuítas da parte portuguesa, a continuidade relativamente concentrada de missões jesuíticas do lado castelhano, ao longo da fronteira, era malvista. Além disso, a definição e a proteção da fronteira constituiu, já anos antes da ascensão do Marquês de Pombal, um assunto importante para as duas coroas ibéricas. Pombal deu continuidade a esta política, acentuando ainda mais o papel do Estado ao longo da nova linha divisória, em detrimento da presença da Companhia de Jesus. Por isso, aumentou o número de destacamentos e de fortalezas. Não é de se admirar que entre os Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), que regulamentaram a fronteira, ocorreram as duas expulsões dos jesuítas: a portuguesa (1759) e a espanhola (1767). Uma visão mais ampla desses acontecimentos aponta para um processo histórico complexo, ligado à afirmação dos países ibéricos como monarquias esclarecidas e nações modernas.

 

IHU On-Line – Quais os nexos entre as pulsões iluministas de Portugal — especialmente na figura de Verney — e o sentimento antijesuíta que levou à expulsão da Companhia de Jesus do País?

Karl Heinz Arenz – A questão dos nexos entre as propostas iluministas (sobretudo, pedagógicas) de Luís Antônio Verney  e a expulsão da Companhia de Jesus constitui um assunto muito discutido pelos historiadores. A meu ver, nexos podem ser estabelecidos, sem dúvida, mas com muita cautela. De fato, Verney era ex-aluno do colégio de Santo Antão em Lisboa, por onde passaram, inclusive, muitos missionários que estavam indo ou vindo da Vice-Província do Maranhão. A sua passagem pelo Oratório, sua correspondência com o filósofo italiano Ludovico Muratori  e, certamente, a influência francesa (seu pai era francês), o transformaram em um crítico ferrenho de uma educação que ele considerava atrasada e incompatível com as propostas ilumunistas. Para ele, o velho sistema educativo era o dos jesuítas. A publicação de suas ideias pedagógicas em Portugal, em 1746, portanto ainda antes da chegada de Pombal ao poder, divulgou e atiçou, de certa forma, o pensamento antijesuítico no Reino. O debate que elas desencadearam preparou o chão para que a expulsão dos jesuítas pudesse ser concebida e, finalmente, executada treze anos depois, em 1759. Sabe-se que ele aprovou a expulsão, embora não participasse diretamente do processo de tomada de decisão, pois naquele ano ele vivia em Roma.  Portanto, os nexos entre as ideias iluministas de Verney e a expulsão dos jesuítas têm um caráter indireto, mas evidente.

 

IHU On-Line - De que modo a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão por Pombal colaborou para diminuir o poder dos jesuítas da região?

Karl Heinz Arenz – A fundação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão está diretamente ligada ao afastamento dos jesuítas dos assuntos “temporais”, inclusive econômicos. Já falei antes que as respectivas leis foram promulgadas dentro de uma semana só, no início de junho de 1755. De fato, desde o começo do século XVIII, o comércio dos jesuítas com a metrópole foi tido como muito lucrativo. Sobretudo, o cacau era um produto muito procurado. E o cacau das matas amazônicas era de ótima qualidade! Ao mesmo tempo, como outros produtos coloniais, como arroz, anil ou algodão, começavam a interessar cada vez mais, a coroa visava implicar mais o estado nas trocas econômicas com a colônia amazônica. Evidentemente, as atividades da Companhia de Comércio iam bem além das da Companhia de Jesus, pois não se tratava de uma simples substituição, mas antes do afastamento de um concorrente de porte menor, mas tido como experiente e intransigente, pois não integrável nas novas dinâmicas econômicas e sociopolíticas.

 

IHU On-Line - Qual o objetivo de Pombal em elaborar o Diretório dos Índios em 1755, e como isso afetou a relação dos jesuítas com os indígenas?

Karl Heinz Arenz – Comumente se apresenta o Diretório, elaborado em 1755 e promulgado em 1757, como expressão do pensamento iluminista que motivou Pombal a modernizar o estado português. Mas ao analisar este documento, por sinal, extremamente interessante, mais de perto, fica óbvio que se trata, no fundo, de uma versão “laicizada” do Regimento das Missões de 1686. Primeiro, o índio, embora declarado livre, continua sob tutela. Segundo, o missionário é substituído por um diretor, ou seja, um funcionário da coroa. Terceiro, a catequese é substituída pela insistência na “civilidade”. De fato, “civilizar” é uma palavra e uma atividade que aparece, de maneira expressa, pela primeira vez no Diretório. É importante lembrar que o conceito de “civilização” surgiu justamente com as reflexões iluministas. Conforme o Diretório, os índios deveriam agora assumir costumes portugueses: falar português, usar roupa europeia, ter um sobrenome luso. Antes, eram os missionários que aprendiam as línguas indígenas e, geralmente, eles não interferiam nos costumes cotidianos não religiosos (ou os que eles consideravam como tais) dos índios. Além disso, o Diretório incentivou a miscigenação por meio de casamentos mistos. Antes, os missionários fizeram tudo para manter soldados e colonos distantes dos aldeamentos para evitar abusos. O que motivou as autoridades portuguesas a introduzir o Diretório é o fato de não terem conseguido implantar mais colonos brancos para a Amazônia. Os índios eram, ainda no século XVIII, a maioria absoluta. Declará-los como vassalos com os mesmos direitos dos demais portugueses era uma forma de transformar o grande contingente de colonizados em colonos. Apesar do aparente interesse econômico de fazer do índio um colaborador imediato e disponível, livre de intermediários religiosos ou de uma legislação separada, vale ressaltar que o Diretório é o primeiro documento em que colonizados são oficialmente igualados aos colonizadores. Contudo, na prática, a realização desta ideia não deu tão certo. Como os índios continuavam, apesar de tudo, sob tutela, desta vez de um diretor (que, aliás, podia ser um índio), as fugas das antigas missões transformadas em vilas aumentaram drasticamente. Assim, após quarenta anos, o Diretório foi abolido, em 1798.

 

IHU On-Line – De que modo estes acontecimentos no Brasil e em Portugal são lastro do que viria a ser a Supressão da Companhia? 

Karl Heinz Arenz – Sem dúvida, a “ousadia” de Pombal de expulsar os jesuítas incentivou outros monarcas católicos (Espanha, França, Áustria, Nápoles, principados italianos e alemães) a fazer o mesmo. Mesmo assim, a iniciativa portuguesa serviu mais de estopim, pois as ideias antijesuíticas já estavam circulando há várias décadas na Europa e até com mais intensidade nos outros países. Folhetos e panfletos haviam, além disso, popularizado o antijesuitismo. O conceito do absolutismo esclarecido, em voga na época, que prefigurou a ideia de nação — Eric Hobsbawm  fala, neste contexto, em protonacionalismo —, era incompatível com a visão universal ou, melhor, universalista da Companhia de Jesus. Também o fato de a Companhia não se contentar com a divisão da administração espiritual e temporal no processo da evangelização (insistindo sempre na “dupla administração”), só fez aumentar as contendas com as autoridades. Mas, além da base comum do antijesuitismo, havia muitas outras particularidades, em cada país, que têm que ser levadas em conta. Assim, o galicanismo e o jansenismo, duas correntes teológico-políticas muito fortes na França, ou os interesses comuns das “cortes bourbônicas” (os tronos da França, Espanha, Nápoles-Sicília e Parma estavam ocupados por membros da dinastia do Bourbons) eram motivos para combater a ordem jesuítica enquanto adversários (reais ou imaginados) de ideias inovadoras e, também, de seus crescentes anseios (sobretudo espanhóis) na península itálica. Isso explica, em parte, a forte pressão que os espanhóis exerceram sobre o papa Clemente XIV  para interditar a Companhia de Jesus. Resumindo, Portugal deu o “chute inicial” que desencadeou um efeito dominó, mas a supressão, em 1773, não pode ser explicada exclusivamente com as decisões tomadas por Pombal. 

 

IHU On-Line – Após a restauração, como retornaram os jesuítas à Amazônia? Quem encabeçou a retomada destas ações?

Karl Heinz Arenz – Pelo que eu saiba, os jesuítas retornaram somente na segunda metade do século XX à Amazônia. Comunidades nos dois grandes centros urbanos de Manaus e Belém, além de uma presença no sul do Pará marcaram esta volta. Durante muitos anos, a atuação na região e a formação de candidatos foram coordenadas a partir do Nordeste (Fortaleza). Somente em meados dos anos 1990 foi fundada uma Região, isto é, uma entidade própria (mesmo dependente), justamente 235 anos após a expulsão. Hoje há jesuítas, além das duas metrópoles amazônicas, em diversas outras cidades de porte maior, como Santarém (que se orgulha de ter sido fundada pelo padre João Felipe Bettendorff), Marabá e Boa Vista. Pastorais diversas (urbana, universitária, juvenil-vocacional, indígena, social) marcam o trabalho dos padres na região. Mas, repito, meus conhecimentos referentes à atuação recente dos jesuítas na Amazônia são mais escassas.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?

Karl Heinz Arenz – Só gostaria de aproveitar e frisar, mais uma vez, que a Amazônia ocupa um lugar central na história das expulsões, pois foi lá que a onda de deportações começou. Embora se indique comumente o ano de 1759, a expulsão da Amazônia começou antes, ainda que de forma mais esporádica. Assim, desde 1756, já temos a retirada proposital de padres tidos como “perturbadores” ou “não leais”. Eu mesmo vou apresentar no seminário o caso do Padre Lourenço Kaulen , cuja expulsão de uma missão no rio Xingu foi até efetuada por índios incitados pelas autoridades em Belém. Como dá para ver, a história é mais complexa do que imaginamos. 

Leia mais

- Missões jesuíticas no Maranhão e Grão-Pará. Entrevista com Karl-Heinz Arenz publicada na edição 348 da IHU On-Line, de 25-10-2010.

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