Edição 428 | 30 Setembro 2013

O direito dos Quilombolas na Constituição

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Ricardo Machado

A antropóloga Janaina Campos Lobo explica como se deu o processo de reconhecimento do povo quilombola, um dos povos originários brasileiros, na elaboração da Constituição

Para Janaina Campos Lobo, a Constituição Federal de 1988 inaugura uma nova ordem no que diz respeito aos direitos dos povos originários brasileiros, especialmente os Quilombolas, grupo que se organiza coletivamente e o qual ela se dedica a estudar. “Antes da Constituição de 1988, vigorava uma normativa que privilegiava, sobremaneira, o indivíduo e a propriedade privada em detrimento de outros modos de apropriação coletivos. Ou seja, a partir de 1988 o Estado brasileiro reconhece que há outras formas de propriedade que são guiadas por interesses coletivos não estatais”, esclarece Janaina em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Podemos dizer que a Constituição de 1988 assegura direitos que, até então, estavam despojados da normativa, justamente porque os dispositivos legais refletiam uma sociedade que reiterava uma narrativa unilateral, branca e excludente”, complementa.

Ela reconhece que a promulgação da Carta Magna permitiu a abertura de diversas possibilidades ao reconhecimento de territórios específicos para grupos étnicos que foram historicamente marginalizados. Isso permitiu um avanço nas discussões sobre o reconhecimento do outro na sociedade, sobretudo no aspecto jurídico. “Trata-se de grupos étnicos alçados a uma condição de sujeitos de direito, porque o Estado finalmente reconhece que historicamente faltou com uma política da alteridade”, diz. Além disso, ressalta que o reconhecimento de territórios para esses grupos garante o direito de eles manterem suas tradições e organização social. “O território — erigido autonomamente — é vital para manutenção desses grupos negros, porque é nesse espaço, simbólico e geográfico, que as relações de pertencimento e identitárias se conformam como expressões deste ser e estar no mundo”, explica. 

Apesar dos avanços, Janaina lembra que o momento atual é de instabilidade devido à pressão de parlamentares que, em nome do agronegócio, ameaçam a pequena autonomia desses povos que há pouquíssimo tempo foram reconhecidos como povos originários. “Não há dúvidas que o momento é de instabilidade, porque o número expressivo de parlamentares que compõe a chamada bancada ruralista, somado à capacidade desse grupo de mobilização e pressão sobre o governo, tem prejudicado as comunidades quilombolas. Essa supremacia do agronegócio e de um modelo abusivo de desenvolvimento tem incitado uma recusa de direitos constitucionalmente garantidos, o que gera uma afronta aos direitos humanos das comunidades quilombolas”, critica. “Ou seja, a morosidade e a fragilidade da política de regularização de territórios quilombolas têm recrudescido as ações de terror sobre as comunidades”, considera.

Janaina Campos Lobo é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão — UFMA e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Atualmente é doutoranda em Antropologia Social na Ufrgs e desenvolve pesquisa sobre agenciamentos territoriais entre afrodescendentes, na província de Esmeraldas, Equador. Pesquisadora do Núcleo de Antropologia e Cidadania — Naci — Ufrgs. Janaína também é analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário junto ao INCRA/RS. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Quem são os hoje denominados remanescentes de quilombos e qual a importância histórica deles na construção do Brasil?

Janaina Lobo – É importante contextualizar que o termo “quilombo” assumiu uma semântica diversa com o artigo 68 constante no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias — ADCT da Constituição Federal de 1988. Retomo brevemente a genealogia desta “ressemantização”, que já foi amplamente discutida pela antropologia, especialmente pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida (2002; 2011), do qual tomo emprestadas algumas concepções: em termos historiográficos, se convencionou entender quilombo como um local, supostamente ermo, onde negros evadidos se refugiavam. Esse entendimento foi bastante corrente e, de certa forma, se manteve vigente até emergirem essas identidades coletivas que extrapolavam tal definição. São os movimentos sociais negros, no início da década de 1980, que pressionam e dão visibilidade a essas formas organizativas, nas quais o fator étnico é posto em relevo. Assim, rediscutem essas experiências negras como forma de tencionar as normativas jurídicas, pré-1988, que legislavam (ou nesse caso, não legislavam) sobre o direito à terra dos descendentes daqueles que foram escravizados. Ou seja, as discussões pré e pós-1988 se dão no sentido de romper com a noção pretérita do quilombo, de modo a assumir um conceito que agregue a variabilidade dessas experiências negras. O decreto nº 4.887/2003, que regulamentou o artigo 68, já aduz que os hoje nomeados “remanescentes de quilombos” são grupos étnico-raciais, de acordo com critérios de autoadscrição, os quais possuem uma trajetória histórica própria, associada a uma ancestralidade negra que não é dissociada de uma subjugação histórica, cuja experiência reverbera na constituição do território. Mas, o que quero ressaltar, é que o termo quilombo volta à cena, especialmente pré-1988, como uma categoria potente que reexamina problemas que foram legados do período colonial, ou seja, de uma dívida inquestionável do Estado brasileiro com os afrodescendentes. De fato, como referi, os hoje constitucionalmente denominados “remanescentes de quilombos” são aqueles que, nesse percurso histórico excludente e opressor, foram alvos de uma alteridade calcada em elementos específicos de segregação. 

 

IHU On-Line – Que garantias a Constituição Federal de 1988 deu aos quilombolas?

Janaina Lobo – Primeiramente, é importante enfatizar, portanto, que apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988 o Brasil menciona o direito dos denominados “remanescentes das comunidades dos quilombos” à propriedade definitiva dos seus territórios; e ainda não o faz no corpo da Constituição, mas no ADCT, quase um apêndice da Constituição. Porém, temos que reconhecer que essa carta constitucional inaugura uma nova ordem que ampara os direitos étnicos de grupos sociais que costumeiramente eram invisibilizados por uma grande narrativa miscigenadora, que se apoiava em uma suposta paridade e uniformidade de grupos sociais. Ainda, devo dizer que antes da Constituição de 1988 vigorava uma normativa que privilegiava, sobremaneira, o indivíduo e a propriedade privada em detrimento de outros modos de apropriação coletivos. Ou seja, a partir de 1988 o Estado brasileiro reconhece que há outras formas de propriedade que são guiadas por interesses coletivos não estatais. Esse foi um avanço considerável, porque — no caso das terras quilombolas — a norma jurídica incorpora esses usos tradicionais do território, o qual passa a ser compreendido como imprescindível para a “reprodução física, social, econômica e cultural”, conforme consta no texto do Decreto nº 4.887. Esse avanço de impressão pluriétnica não se resume ao artigo 68, mas também refere o comprometimento do Estado, declarado nos artigos 215 e 216 da Constituição, com os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, o que concorre em assegurar que “suas formas de expressão” e “modos de criar, fazer e viver”, conforme consta nesses artigos, serão salvaguardados. Então, podemos dizer que a Constituição de 1988 assegura direitos que, até então, estavam despojados da normativa, justamente porque os dispositivos legais refletiam uma sociedade que reiterava uma narrativa excludente.

IHU On-Line - O que tais direitos significam em termos de construção da cidadania desses povos?

Janaina Lobo – Como disse, estávamos, antes da Carta Constitucional de 1988, sob uma normativa que desconsiderava a questão dos direitos diferenciados. O que isso sinaliza? Que esses grupos negros estavam invisibilizados pela lei, mas jamais silenciados. Com a Constituição de 1988 se abrem novas possibilidades para o reconhecimento de territorialidades específicas. Então, estamos falando de uma concepção agora presente em um dispositivo jurídico, que assume e considera a diferença, o outro. Trata-se de grupos étnicos alçados a uma condição de sujeitos de direito, porque o Estado finalmente reconhece que historicamente faltou com uma política da alteridade. Quero enfatizar que o texto constitucional recobre esses grupos que, anteriormente, não eram reconhecidos pelo Estado como cidadãos. E não apenas destaco o direito consolidado dos quilombolas sobre o território, mas a garantia constitucional de salvaguarda do patrimônio imaterial e de sua sustentabilidade, o que confere cidadania àqueles que descendem dos africanos escravizados.

 

IHU On-Line – Qual a importância de garantir legalmente o direito à propriedade dos povos quilombolas em seus territórios históricos? Qual a natureza do título de propriedade coletiva e o que isso representa em termos de cidadania para tais comunidades?

Janaina Lobo – É inegável que o território agrega vínculos imprescindíveis à “reprodução física, social, econômica e cultural” das comunidades quilombolas. Ou seja, o território — erigido autonomamente — é vital para manutenção desses grupos negros, porque é nesse espaço que as relações de pertencimento e identitárias se conformam como expressões deste ser e estar no mundo. Além disso, com a Constituição de 1988, as terras quilombolas se afastam de um princípio de tutela, para uma condição de propriedade definitiva, autonomizando a relação das comunidades quilombolas com seus territórios, conforme já alertou o Prof. Alfredo Wagner (2011). Nesse sentido, é importante ressaltar que hoje o título emitido, ao final dos procedimentos administrativos da regularização de quilombos, é de natureza coletiva, na qual a figura de uma pessoa jurídica, no caso uma associação quilombola, é a detentora legal desse território. O título, então, é imprescritível, inalienável, impenhorável e pró-indiviso. Tais medidas são significativas porque visam evitar esbulhos, usurpações e mais perdas territoriais, dimensões que sempre ameaçaram a permanência dos quilombolas em seus territórios. Então, a regularização dos territórios, além de concretamente assegurar a proteção desses grupos negros, os quais comumente garantiram a sustentabilidade e o controle eficaz dos recursos naturais desses espaços que ancestralmente ocupam, é a concretude da conquista de direitos. Obviamente, a reivindicação da titulação do território é apenas uma das faces dessa luta quilombola, que também reclama atenção para educação, saúde, saneamento básico, moradia digna. Em suma, esse é o princípio da titulação coletiva. Claro que não podemos perder de vista que a norma jurídica homogeneíza a variabilidade de situações e experiências das comunidades quilombolas, por isso a necessidade do diálogo, nesse percurso burocrático, entre diversos campos de saberes. E nesse sentido, a antropologia tem buscado dialogar com o campo jurídico para incitar e revelar as diversas e múltiplas situações das comunidades quilombolas.

 

IHU On-Line – Que aspectos ainda imprimem dificuldades a esses povos no sentido de garantirem o direito constitucional da titulação definitiva de seus territórios?

Janaina Lobo – Bom, acho que a pergunta poderia ser por que, afinal, depois de mais de 25 anos do artigo 68, há um número ínfimo, em todo o Brasil, de comunidades quilombolas tituladas. Creio que há diversos fatores que atuam como atravancadores dessa política. As normativas que hoje regulamentam o artigo 68, somadas aos procedimentos administrativos da regularização de quilombos, atestam uma burocracia desmedida, irreal, o que avoluma o tempo para a resolução desses processos. Ou seja, o tempo que um processo tramita na esfera administrativa é ilógico. E muitas vezes, por exemplo, depois de publicado nos Diários Oficiais o Relatório Técnico de Delimitação e Identificação — RTID de uma dada comunidade quilombola, etapa que anuncia à sociedade sobre a existência de um quilombo em determinado território e, logo, se abre prazo para ampla defesa dos que contestam tal condição, com frequência tais contendas saem da esfera administrativa para a resolução junto ao Poder Judiciário, o que protela — demasiadamente — o andamento dos processos. Obviamente, essas travas, toda essa morosidade fragiliza as comunidades e as expõem ao conflito. Adiciono a esse quadro estático da política quilombola a falta de orçamento adequado para o INCRA proceder às desintruções, outra etapa crucial para a titulação. Além disso, essa Autarquia não dispõe de uma estrutura apropriada para atender à demanda das comunidades quilombolas. Aqui no Rio Grande do Sul são apenas quatro antropólogas que compõem o serviço quilombola. Há um artigo sobre esses diversos entraves, intitulado “Quais são os obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes de quilombos? Quem são os seus principais autores?”, do Prof. Alfredo Wagner (2011), no qual ele aponta e discute pormenorizadamente alguns desses impedimentos que aqui cito. O que quero enfatizar é que os dispositivos jurídicos e procedimentos administrativos que atendem o artigo 68 parecem contrariar o próprio direito constitucional, na medida em que obstaculizam a titulação. Por exemplo, aqui no Rio Grande do Sul, o INCRA tem 81 processos abertos para regularização fundiária, mas apenas uma comunidade foi titulada (Chácara das Rosas, em Canoas) e outras duas estão parcialmente tituladas, que é o caso da comunidade de Casca, no município de Mostardas, e da Família Silva, comunidade urbana localizada em Porto Alegre. Ou seja, o número de titulações aqui no estado ainda é absolutamente desprezível. 

Igualmente cabe aqui, inegavelmente, uma análise desse momento político em que as estratégias de setores contrários aos quilombolas — e me refiro especialmente à bancada ruralista — parecem reter qualquer ação que vise ao cumprimento desse direito previsto no texto constitucional. 

IHU On-Line – Considera que há riscos às conquistas desses povos, considerando algumas manobras políticas no Congresso Nacional?

Janaina Lobo – Certamente. Não há dúvidas de que o momento é de instabilidade, porque o número expressivo de parlamentares que compõem a chamada bancada ruralista, somado à capacidade desse grupo de mobilização e pressão sobre o governo, tem prejudicado as comunidades quilombolas. Essa supremacia do agronegócio e de um modelo abusivo de desenvolvimento tem incitado uma recusa de direitos constitucionalmente garantidos, o que gera uma afronta aos direitos humanos das comunidades quilombolas. A Ação Direta de Inconstitucionalidade — ADIn 3239, que o antigo PFL (hoje DEM) impetrou, requer que o Decreto nº 4.887 seja nulificado. O STF suspendeu o julgamento, que iniciou em abril de 2012, com o pedido de vistas da ministra Rosa Weber e, no momento, não há informações sobre a continuidade desse julgamento, que já recebeu um voto, do ministro César Peluso, a favor da inconstitucionalidade. Além disso, tem a Proposta de Emenda à Constituição — PEC 215/2000, que insensatamente visa transferir para o Congresso Nacional a demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e áreas de conservação ambiental que, de acordo com a Constituição Federal, são atribuições do poder Executivo. Ou seja, o governo está refém dessas forças que se opõem ao direito dos quilombolas e, também, indígenas. Se tais propostas são aprovadas, podemos dizer que fracassou esse projeto de um Estado pluriétnico, porque concretamente a regularização de territórios quilombolas (e as demarcações de terras indígenas) ficará à mercê de jogos de interesses, como esses que hoje detêm a maioria no Congresso Nacional. E isso tem gerado reações, em todo Brasil, as quais têm o objetivo de reter essa proposta da PEC 215.

 

IHU On-Line – Que desafios estão postos à efetivação dos direitos constitucionais aos povos quilombolas? Onde e como é preciso avançar?

Janaina Lobo – Como disse, há diversos antagonismos que têm refreado o avanço da política quilombola. Isso é realmente preocupante, porque os conflitos estão cada vez mais acirrados. Há casos dramáticos em todo o Brasil. Dia 19 de agosto deste ano, mais uma liderança quilombola, no Pará, foi assassinada. Ou seja, a morosidade e a fragilidade da política de regularização de territórios quilombolas têm recrudescido as ações de terror sobre as comunidades. Aqui no Rio Grande do Sul há casos emblemáticos, porque repletos de conflitos. Poderia citar a comunidade Palmas, em Bagé, na qual os quilombolas foram acuados pelos fazendeiros e proprietários da região, os quais impediram, através de barreiras na estrada, a entrada do INCRA na comunidade. Então, quais foram, afinal, as transformações concretas do artigo 68? Infelizmente, parece que até hoje o Estado brasileiro ainda não conseguiu reverter seu passado colonial. Não se trata da ausência de uma legislação, porque a norma está aí para ser cumprida, há 25 anos! Então, o desafio é assegurar que as ações dessa política quilombola sejam realmente eficazes, efetivas, capazes de fazer valer os direitos das comunidades sobre seus territórios ancestrais, e não violá-los. Porque, na medida em que não se titula, o Estado está violando direitos. Então, conforme a antropóloga Manuela Carneira do Cunha, essa violação pode ser entendida enquanto uma posição etnocida do Estado. Sim, concordo que se trata de um etnocídio.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Janaina Lobo – Não pretendo passar uma imagem absolutamente derrotista desse processo. Ainda que o cenário atual seja preocupante e delicado, acredito na força de mobilização das comunidades quilombolas e dos movimentos sociais na reivindicação de suas demandas. O próprio artigo 68 foi incluído na Carta Constitucional após o impulso e a pressão desses setores que há muito lutavam por uma política étnica, por um reconhecimento jurídico desses modos tradicionais de ser e estar no mundo. Então, creio que os embates, desencadeados por essa série de coalizões opositoras à política quilombola, resultarão em mobilizações capazes impulsionar mundos possíveis, assim como aconteceu com a Constituição de 1988. A capacidade de lutar, agir, pressionar, “resistir” e, sobretudo, de transformar, é fabulosa. E isso motiva as comunidades quilombolas e os movimentos sociais. Não é à toa que, atualmente, quilombolas e indígenas têm se mobilizado conjuntamente, vide as últimas manifestações em Porto Alegre.

 

Referências:

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. Manaus: UEA Edições, 2011.

 

 

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