Edição 367 | 27 Junho 2011

As raízes do riso e a ética emocional brasileira

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Márcia Junges

Experiência humana diversificada, o riso popular permitiu o surgimento do humor como arma política contra a repressão, criando produções ambíguas, não inocentes e espécie de “espelho da sociedade, embora distorcido”, frisa o historiador Elias Thomé Saliba

De acordo com o historiador Elias Thomé Saliba, o riso brasileiro nasceu “para compensar um déficit emocional em relação aos sentidos da história brasileira; ela misturou-se à vida cotidiana, daí a sua constante remissão à ética individual. Entre a dimensão formal e pública e o universo tácito da convivência personalista construiu-se uma fragmentada representação cômica do país, dando ao brasileiro, naqueles efêmeros momentos de riso, a sensação de pertencimento que a esfera política lhe subtraíra”. Assim, as raízes do riso em nosso país estão ligadas a essa “ética emocional”. A criação da linguagem humorística por aqui deve ser compreendida a partir da “abertura proporcionada pela imprensa moderna, juntamente com uma crise de valores culturais, no plano mundial – e, no caso brasileiro, as expectativas geradas pelo advento da República”. Saliba acentua que “a produção humorística é um espelho no qual as sociedades podem mirar-se – mesmo quando as piadas sejam vistas como ‘ruins’ ou de ‘mau gosto’”.

E completa: “Tudo indica que pelo humor, o brasileiro apropriava-se, por momentos, do espaço público, que lhe era negado pelo poder republicano nas suas mais variadas e perversas formas de exclusão social”. Espécie de arma política contra o poder repressivo, o riso entre os brasileiros adentra até os territórios santos: Thereza de Lisieux aqui é chamada de Santa Terezinha. “Usamos de diminutivos para quebrar hierarquias e tornar tudo próximo, porque temos horror das distâncias sociais, que são enormes. Não conseguimos ver o mundo sem emoção, distinguir o público do privado. Vem das nossas raízes ibéricas. O brasileiro não resiste muito à seriedade”. As declarações foram feitas por e-mail à IHU On-Line.

Elias Thomé Saliba é professor titular de Teoria da História na USP, historiador especializado em História Cultural, com foco na história do humor e das formas cômicas. Entre suas publicações mais importantes estão os livros Raízes do riso (3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008) e As Utopias Românticas (2. ed. São Paulo: Estação Liberdade,2004); organizou as coletâneas, História e Música no Brasil (São Paulo: Alameda, 2010) e História e Cinema; dimensões históricas do audiovisual (São Paulo: Alameda, 2008); escreveu ainda os capítulos “A dimensão cômica da vida privada na República”, que integra o vol. 3 da História da Vida Privada no Brasil (12. ed., Cia. das Letras, 2010) e “Histórias, memórias, tramas e dramas da identidade paulistana”, que integra o vol. 3 da História da Cidade de São Paulo (São Paulo: Paz e Terra, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as raízes do riso na representação humorística do dilema brasileiro? O que é esse dilema?

Elias Thomé Saliba – Foi exatamente esta a questão que me formulei durante todo o tempo da pesquisa, que durou mais de cinco anos e originou o livro Raízes do riso. No livro procuro mostrar que o humor não produz identidade, pelo contrário, ele questiona, pela sátira, as falsas identidades, que sempre estiveram comprometidas com o poder. Aliás, esta é a grande questão do livro: por que representar o país, os brasileiros, a sociedade e a história na forma efêmera e passageira de uma piada?

Uma resposta já se mostrava no quadro geral da história do país: porque que a história brasileira não cria e não criou nenhuma identidade autêntica e duradoura, ela apenas ajudou a segregar, a isolar a maior parte da população – não criou espaços públicos – tudo isto se acentuou na Belle Époque brasileira, após a Abolição e a República, que prometeram muito e, na realidade, realizaram pouco ou quase nada.
Em muitos casos, o riso brasileiro nasceu assim, como que para compensar um déficit emocional em relação aos sentidos da história brasileira; ela misturou-se à vida cotidiana, daí a sua constante remissão à ética individual. Entre a dimensão formal e pública e o universo tácito da convivência personalista construiu-se uma fragmentada representação cômica do país, dando ao brasileiro, naqueles efêmeros momentos de riso, a sensação de pertencimento que a esfera política lhe subtraíra. O livro todo é sobre isto e seu título foi colocado de propósito.
Com uma inspiração oblíqua no clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda , Raízes do riso sugere, numa interpretação mais libertária da obra desse autor, que as raízes históricas devem ser bem conhecidas para serem melhor extirpadas, já que a representação humorística do mundo, implícita na cultura brasileira, é uma invenção histórica e, tal como a vida, ela pode ser modificada, reinventada, transformada.
Mas, não é um retorno puro e simples ao “homem cordial” que está em Raízes do Brasil. Nunca é demais lembrar que Sérgio Buarque de Hollanda sempre ressaltou que ele utilizava a metáfora do cordial no seu verdadeiro sentido, ou seja, relacionado ao coração – a sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos –, ora as raízes do riso brasileiro estão relacionadas a esta ética emocional.

IHU On-Line – Quais são as maiores diferenças entre o humor da Belle Époque brasileira àquela dos primeiros tempos do rádio?

Elias Thomé Saliba – As coisas não devem ser colocadas apenas sob a forma de diferença. Há vários anos realizando pesquisas na área de História do Brasil no começo da República, chamou-nos a atenção a quantidade da produção cômica brasileira, muito superior a de outros países neste período conhecido como Belle Époque (cobrindo as duas décadas finais do século XIX até o fim da I Guerra Mundial, em 1918). Daí meu esforço por tentar entender como nasceu a linguagem humorística brasileira. A Belle Époque foi a época que viu nascer o jornalismo moderno. Foi neste período que, no Brasil, surgiram as revistas semanais ilustradas, que continham seções fixas de humor e de caricaturas e, ainda, de publicidade. Este último aspecto também foi importante porque a grande maioria dos humoristas brasileiros criou anúncios publicitários. Em termos mundiais, a Belle Époque foi uma espécie de resumo do que seria o século XX, com todas as benesses da Revolução Tecnológica mas também com todas as tristes perversidades, anunciadas pela guerra de 1914.
A abertura proporcionada pela imprensa moderna, juntamente com uma crise de valores culturais, no plano mundial, e, no caso brasileiro, as expectativas geradas pelo advento da República é que possibilitaram a criação de uma peculiar linguagem humorística brasileira. Esta linguagem múltipla, variada, concisa e eclética – porque misturava música, anúncios publicitários, dança e marchinhas de carnaval, cantadas no teatro de revista – transfere-se, com poucas adaptações, para o rádio, nas décadas de 1930/1940. O humorista brasileiro típico era alguém que já tinha um pé na cultura verbal mais culta e um outro pé numa cultura mais popular – daí sua capacidade de produzir um linguagem humorística compreensível a todos.

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