Edição 317 | 30 Novembro 2009

Subdesenvolvimento: um problema estrutural?

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Patrícia Fachin

Na opinião do economista José Carlos Braga, segue válido o questionamento furtadiano de que não basta ter crescimento econômico. É preciso, enfatiza, dar um perfil a esse crescimento para que ele possa conduzir a superação do subdesenvolvimento

Cinco décadas depois do lançamento de Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado, as propostas desenvolvimentistas têm como premissa fundamental uma renovação do Estado brasileiro, avalia o economista José Carlos Braga, na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Braga não sugere a volta ao Estado do nacionalismo-desenvolvimentista, mas acredita que é necessário “reorganizar o Estado” para enfrentar problemas clássicos como a pobreza e a distribuição de renda. Ele justifica a atualidade do projeto furtadiano: “Ora, na medida em que mesmo com a industrialização e com crescimento, num período correspondente a mais de meio século, ainda continuamos com os traços do subdesenvolvimento, sua proposta de transformação do Brasil segue de pé”.

José Carlos Braga é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre e doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Hoje, é docente no Instituto de Economia da Unicamp. Entre suas obras, citamos Temporalidade da riqueza. Teoria da dinâmica e financeirização do Capitalismo (Campinas: Unicamp, 2000).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O projeto de desenvolvimento brasileiro proposto por Celso Furtado é atual e ainda pode ser aplicado no Brasil de hoje?

José Carlos Braga - O legado principal que ele deixou foi o diagnóstico de que o subdesenvolvimento do Brasil como de outros países é um problema estrutural ligado ao processo capitalista mundial no qual ocupamos posição subordinada e vinculada à expansão dos países desenvolvidos. As condições de subdesenvolvimento reproduzem-se não só internamente como no âmbito das relações internacionais. Ele propôs a bem-dizer que transformações estruturais, política econômica adequada, afirmação cultural, e uma construção nacional-soberana do desenvolvimento abririam o caminho para a superação do subdesenvolvimento. Algo, portanto, extremamente complexo, difícil, ligado à democratização e à participação popular nos processos decisórios que montam as trajetórias da economia.

Ora, na medida em que mesmo com a industrialização e com crescimento, num período correspondente a mais de meio século, ainda continuamos com os traços do subdesenvolvimento, sua proposta de transformação do Brasil segue de pé. Evidentemente, cabe aos que vivem o presente e batalham por um futuro diferente pensar e agir a partir da “matriz furtadiana” aplicando-a com a consciência acerca das condições históricas atuais. Em outras palavras, sabendo adaptar aquela perspectiva às novidades que foram surgindo e que continuarão surgindo. Ao invés de congelar, enriquecer aquela matriz coerentemente com seu método histórico-estrutural.

IHU On-Line - Que reflexões e questionamentos a obra de Celso Furtado ainda suscita sobre o tema do desenvolvimento e do subdesenvolvimento?

José Carlos Braga - Ainda vivemos no Brasil sob condições graves de concentração de renda e de riqueza que implicam miséria, pobreza, desemprego estrutural. São traços marcantes do subdesenvolvimento e os que mais o preocupavam e angustiavam. Em seu depoimento para o documentário sobre sua vida – O longo amanhecer,  do diretor José Mariani - ele fala sobre como é possível que ainda haja no Brasil “um monte de gente pedindo esmola”. E comenta em outro momento do filme - “Quem manda nesse País? Essa taxa de juros...” e fica calado num lamento. Acusa a enorme concentração de poder como causa importante.

Segue válido o questionamento de que não basta ter crescimento econômico, é preciso dar uma certa qualidade, um determinado perfil a esse crescimento para que ele possa conduzir à superação do subdesenvolvimento, para que ela seja um real desenvolvimento.

Permanece a questão de ampliarmos a geração brasileira de progresso técnico que se fez presente apenas em poucos casos como a Embraer-aviões - e Petrobrás-petróleo e outras poucas exceções. Aprofundar o processo de democratização, de participação de amplos setores da sociedade nas decisões cruciais. Enfrentar as desigualdades regionais que persistem. Ter um sistema financeiro voltado às políticas de desenvolvimento, fundar de fato a estabilidade monetária, acompanhando a estabilidade de preços.

IHU On-Line – Mas como aplicar as propostas desenvolvimentistas de Celso Furtado, considerando os problemas de emprego, distribuição de renda, pobreza e miséria, que estão agregadas ao modelo capitalista? Que aspectos do modelo furtadiano deveriam ser resgatados com urgência?

José Carlos Braga - Não é força de expressão dizer que vivemos sob um capitalismo selvagem. Parte disso deve-se à corrosão do Estado, das instâncias públicas, das empresas estatais, o que é consequência da crise dos anos 1980 e da implementação das políticas neoliberais, realizadas desde o início dos anos 1990 e só recentemente e, em parte, revertidas no segundo governo do Presidente Lula. No próximo governo, aplicar as propostas desenvolvimentistas tem como premissa fundamental uma renovação do Estado no Brasil. Não é uma volta ao Estado do nacional-desenvolvimentismo; não falo de retorno ao passado o que em si seria uma impossibilidade. Penso em reorganizar o Estado justamente para enfrentar os problemas mencionados na pergunta e, simplesmente, porque o dinamismo do mercado em si não poderá resolvê-los. Reestruturar o Estado para as políticas públicas de corte social e para aquelas da infraestrutura econômica. Tem-se que efetuar um diagnóstico profundo de quais despesas públicas devem ser eliminadas e quais devem ser fortalecidas. Há, ao mesmo tempo, desperdícios e carências nos aparatos públicos federais, estaduais e municipais. É preciso um diagnóstico realista - sem preconceitos - e ações de novo tipo. Cortes serão efetuados de um lado, e mais gastos serão efetuados de outro. Sem reforma tributária, isso não será implementado. Com ela, haverá uma base socialmente saudável e justa de recursos para efetuar as despesas correntes e os investimentos compreendidos como necessários.

Então, para Furtado, enfrentar as desigualdades, iniquidades e desemprego era sinônimo de Planejamento e atuação estatal pertinente. Precisamos ir atrás dessas condições. E a política fiscal não pode ser a de gerar superávits para pagar juros escorchantes.

IHU On-Line - Que contrapontos o senhor faz entre o atual modelo de desenvolvimento econômico brasileiro e o proposto por Celso Furtado?

José Carlos Braga - Aqui se aplica a palavra modelo mesmo. Isto porque, para o paradigma neoliberal que teve início no Brasil com o Governo Collor, trata-se de implantar um conjunto de princípios e regras e deixar que o livre funcionamento dos mercados cumpra as metas que o modelo dita como atingíveis em vários países. Corresponde, como se sabe, ao que foi apelidado de “Consenso de Washington” que hoje é desacreditado pelo seu próprio mentor, o economista John Williamson.  A partir do segundo governo Lula, algo começou a mudar através das políticas distributivas de renda - recuperação real do salário mínimo, Bolsa Família, crédito aos de baixa renda, outras formas de transferência de renda via diversos programas sociais.

Mas, o referido consenso é o oposto da visão de Furtado uma vez que se fundamenta no livre jogo de mercado, desvaloriza o planejamento, busca o Estado mínimo, introduz a livre movimentação internacional de capitais quer sejam especulativos ou não, prioriza altas taxas de juros como instrumento central no combate à inflação, deixa a taxa de câmbio flutuar amplamente, chegando a aceitar um Real ficticiamente valorizado frente ao dólar, corta gastos sociais e de infraestrutura para pagar juros, busca a privatização radical, supõe que o desenvolvimento dos mercados em si mesmo resolva o desemprego e a distribuição da renda etc.

IHU On-Line - Que lições e subsídios o pensamento crítico de Celso Furtado pode oferecer à conjuntura econômica e política atual?

José Carlos Braga - Em poucas palavras, Planejamento e construção da soberania nacional a partir do Estado num contexto de ampla democratização. Defesa das reservas internacionais - em moedas fortes - que o Brasil acumulou e que atingem hoje algo como US$ 235 bilhões. Para tanto, a taxa de câmbio tem que ser administrada para uma posição favorável à competitividade de nossa estrutura produtiva para evitar desindustrialização e problemas de déficits no balanço de pagamentos.

A taxa de investimento global da economia vem subindo desde 2004, tendo sido atropelada pela crise que bateu aqui no segundo trimestre de 2008, mas da qual já estamos saindo. É vital criar confiança no empresariado para que cresça o investimento privado e ter condições fiscais e tributárias para acelerar o investimento público. Não perder de vista a estabilidade de preços, mas privilegiar doravante as políticas promotoras do desenvolvimento conforme acima comentado.

A política monetária terá de tornar-se sinônimo de taxas de juros compatíveis com o estímulo ao investimento produtivo. Manter e aperfeiçoar a política do atual governo de articular e expandir o raio de ação dos bancos públicos. Induzir a cooperação destes com o sistema bancário privado que está forte e tem que definitivamente participar do financiamento de longo prazo. Como antes observado, partir para uma estratégica reordenação do Estado na qual a dívida pública seja alongada e financiada a juros civilizados. Manter e acelerar medidas que têm procurado a melhoria da distribuição de renda e se preocupado com o desemprego.

IHU On-Line - Que projeto de país o Brasil está construindo? O país carece de um projeto nacional de desenvolvimento?

José Carlos Braga - Nada de nacionalismo como xenofobia, isto é, como aversão ao que é estrangeiro. Precisamos de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, conduzido com uma participação do capital estrangeiro que esteja atrelada aos objetivos traçados para a Nação. Ainda não temos esse Projeto. Ele está por ser construído embora recentemente alguns avanços tenham sido feitos nessa direção conforme assinalamos anteriormente.

Hoje, não há desculpa para omissão na construção ampliada desse projeto porque as condições conjunturais da economia brasileira são por demais favoráveis seja do ângulo da inflação, seja quanto às reservas internacionais, ou sob os termos do sistema financeiro público e privado, seja no que tange às condições das empresas líderes produtivas que se mostram reestruturadas, solventes, com capacidade interna de acumulação. E ademais, contamos com as novidades de horizonte de médio e longo prazo – tais como o Pré-Sal, os biocombustíveis e demais possibilidades da biomassa – que sinalizam muitas potencialidades se os programas de exploração do mesmo forem devidamente conduzidos sob a ótica do desenvolvimento.

Agora, nunca é demais relembrar que a construção desse projeto não é do âmbito da tecnocracia, embora a contribuição dos intelectuais e dos técnicos seja relevante. É do âmbito do processo político com P maiúsculo, é do plano do desenrolar histórico.

IHU On-Line - No Brasil, existem atualmente herdeiros do projeto furtadiano? Se sim, quem são?

José Carlos Braga - Despida a máscara da globalização liberal, pensamentos como o dele reaparecem naturalmente com muita força, pois sua atualidade fica evidente. Penso que há herdeiros espalhados pelo Brasil inteiro, pela América Latina e em outros centros estrangeiros que lidam com os problemas dos países em desenvolvimento.

No Brasil, tem tido importante papel o Centro Internacional Celso Furtado na divulgação das ideias do mestre, seja através de publicações, seminários, cursos, palestras etc. Várias escolas de economia e ciências sociais ligadas ao pensamento crítico sempre mantiveram viva a reflexão dele tanto nos cursos quanto nas pesquisas. Desde logo, devo dizer que no Instituto de Economia da Unicamp ao qual pertenço isso sempre ocorreu e segue com renovado vigor diante da trajetória nacional e internacional das últimas décadas. A força de seu pensamento calcado na perspectiva histórico-estrutural seguirá como referência estratégica enquanto subdesenvolvimento houver.

Leia mais...

>> José Carlos Braga já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. O material está disponível na página eletrônica do sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Entrevistas:

* A política cambial é homicida. Publicada nas Noticias do Dia em 24-08-2009;

* O Brasil regido por um "novo" padrão de desenvolvimento capitalista. Publicada nas Notícias do Dia em 29-05-2006;

* Precisamos ter um projeto de Nação. Publicada na IHU On-Line número 227, de 09-07-2007.

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