Edição 316 | 23 Novembro 2009

O mundo do trabalho e o marxismo

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Henrique Amorim e Patricia Fachin | Tradução: Benno Dischinger

Antoine Artous analisa as problemáticas do trabalho em Marx e comenta as releituras marxistas elaboradas por autores consagrados como Rosa Luxemburgo e André Gorz

Antoine Artous é autor de Marx, l'État et la politique (Éditions Syllepse, 1999); Marx et le travail (Editions Syllepse, avril 2003) e Le fétichisme chez Marx (Éditions Syllepse). Suas principais influências teóricas foram: Merleau Ponty, Jean-Marie Vincent e Etienne Balibar. Ele recebeu, em sua residência, o sociólogo brasileiro Henrique Amorim, em maio deste ano, onde concedeu a entrevista a seguir, publicada com exclusividade pela IHU On-Line. Eles traçam um instigante debate a partir das obras de Marx, O Capital e os Grundrisse, relacionando-o com autores como André Gorz e Antonio Negri.
Coordenador da coleção Cahiers de Critique Communiste e membro do comitê de redação da revista ContreTemps, Artours inicia suas respostas afirmando que as leituras de Marx são plurais e situadas na história do marxismo. Talvez, por isso, sugira: “não tem sentido ler Marx para restabelecer a verdade de uma obra que não somente conheceu fortes evoluções de diversas problemáticas, mas da qual os maiores textos – O Capital – são inacabados”. Ao ser questionado sobre a relação entre trabalho imaterial e a produtividade do trabalho face ao trabalho imaterial, ele assinala que “essas categorias fazem aparecer certas confusões atuais”. E explica: “O trabalho produz bens materiais ou serviços, mas o próprio trabalho não pode ser imaterial, ele sempre mobiliza uma força de trabalho no quadro de um processo de produção dado”, e complementa: “No que concerne à categoria de trabalho intelectual e manual, creio ser preciso evitar uma concepção naturalista (os que trabalham com suas mãos ou com sua cabeça), ela visa a divisão entre as tarefas de execução e de concepção”.

Henrique Amorim é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, onde também realizou o mestrado em Sociologia e o doutorado em Ciências Sociais. Fez pesquisa de pós-doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris e na Unicamp. Atualmente, é pesquisador do Departamento de Sociologia da Unicamp. Entre suas obras, citamos Trabalho Imaterial: Marx e o Debate Contemporâneo (São Paulo: Annablume, 2009) e Teoria Social e Reducionismo Analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do trabalho (Caxias do Sul: Editora da Universidade Estadual de Caxias do Sul, 2006). Amorim concedeu uma entrevista à IHU On-Line, publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 13-11-2009, intitulada A relação entre novas tecnologias da informação e a teoria do valor-trabalho.

Confira a entrevista.

Henrique Amorim - Como pensar Marx nos dias de hoje? É necessário ir além de Marx?

Antoine Artous - As leituras de Marx se tornaram irremediavelmente plurais e, além disso, completamente situadas na história do marxismo. Não tem sentido ler Marx para restabelecer a verdade de uma obra que não somente conheceu fortes evoluções de diversas problemáticas, mas da qual os maiores textos – O Capital – são inacabados. Isso absolutamente não quer dizer que o rigor na leitura não seja necessário – ao contrário, e ainda mais do que no passado, sem dúvida, o dimensionamento das perspectivas e as problematizações são plurais. No que me diz respeito, minha caminhada tem sido dupla: de uma parte, realizei um retorno crítico à análise do Estado e da política em Marx e no marxismo; e, de outra parte, faço referência aos textos ditos da maturidade (o período de O Capital) no que se refere à conceitualização das problemáticas e das categorias. Assim, nos textos ditos da juventude, encontram-se indicações muito interessantes sobre a especificidade do Estado moderno, mas é preciso articulá-los com a análise das relações de produção capitalistas como uma relação de exploração. Isso não é fazer prova - como economista -, pois O Capital não visa fundar uma ciência econômica, mas se apresenta como “crítica da economia política”; isto é, como crítica das categorias de análise e formas de objetividade do social trazidas pelo capital.

Henrique Amorim - Qual é a importância do conceito de fetichismo da mercadoria em Marx? A teoria do fetichismo é um desenvolvimento da teoria da alienação?

Antoine Artous - Existe certamente um elo nas preocupações de análise. Trata-se de dar conta sobre como, nas relações de produção capitalistas, as relações sociais se conectam acima da cabeça dos indivíduos (e, em primeiro lugar, dos assalariados) e aparecem como o movimento da “coisa social” (o capital, o trabalho, a mercadoria...), relações sociais que são “naturalizadas”, consideradas como “naturais”. Em todo caso, a teoria da alienação, caso se queira levá-la a sério, se apoia numa problemática “essencialista”; assim, nos Manuscritos de 1844, o jovem Marx faz referência a uma essência humana (do trabalho) que se expressaria sob uma forma alienada no trabalho capitalista. Naturalmente Marx, que conhece Hegel , não a considera naturalista, ela se constrói através da história. Isto tem diversas consequências na análise (o trabalho explorado é pensado sob a forma de um trabalho artesanal dominado pelo capital) e nas problemáticas de emancipação: a emancipação é a marcha para uma sociedade transparente, pois acaba permitindo que se realize a essência humana. Ora, fundamentalmente, em O Capital, Marx toma outro ponto de partida: a especificidade das relações sociais de produção capitalista e seu efeito sobre o agir e o pensamento dos indivíduos. Neste quadro, a teoria do fetichismo não remete ao que seria uma forma de consciência alienada, mas à opacidade específica produzida pela dominação social da forma valor caracterizada pelas relações de produção capitalistas. Aqui, a concepção da dita “ideologia” é interessante, pois Marx não se refere inicialmente à produção manipulada de idéias pela classe dominante, mas – de certa forma – a um campo de visão imbricado nas relações sociais. É, por exemplo, desta maneira que Marx critica a economia política clássica, sem fazer disso um simples discurso apologético.

Henrique Amorim – Nos anos 1980, os Grundrisse de Marx foram revisitados por diversos escritores, como, por exemplo, Jean-Marie Vincent, André Gorz e Antonio Negri. Como pensa a apropriação desta obra?

Antoine Artous - Por razões de traduções, os debates sobre estes textos foram muito tardios na França e, dito isso, eles começaram bem antes dos anos 1980. Assim, desde 1967, Na formação do pensamento econômico de Karl Marx (Maspero), Ernest Mandel  escrevia: “Os Grundrisse ou a dialética do tempo de trabalho e do tempo livre”. Esta concepção sempre me pareceu interessante. O debate de que você fala se refere a passagens – muito marcantes – sobre o futuro da produção capitalista, com o desenvolvimento do maquinismo, da ciência à produção etc.; e, neste quadro, do futuro do trabalho que perde sempre mais o seu caráter de prestação individual. Marx emprega então a fórmula de “general intellect” de que se apropriou Negri . Creio que convém ser prudente quanto à própria categoria que só aparece uma vez e, aliás, não está presente em certas traduções. Em Negri, ela foi elevada ao nível de conceito fechado, articulado com outras categorias (poder constituinte, multidão...) para inscrever-se numa problemática hoje conhecida: de um lado, o considerável alargamento da categoria de produção, já que, por meio do intelecto geral toda atividade participa da produção; e, de outro lado, um novo quadro de expressão de uma problemática “espontaneísta”, já que, sempre graças ao general intellect, a consciência – comunista – é imanente às mobilizações da multidão. Em Jean-Marie Vincent, a referência ao general intellect é bem mais razoável e visa essencialmente sublinhar as contradições em curso na evolução da produção capitalista moderna que, de um lado é obrigada a pôr em obra formas de inteligência coletiva no processo de produção de conjunto, introduzindo novas formas de segmentação e de hierarquização. Nessa época, como ele mesmo dirá mais tarde, Gorz  conhece mal as análises de Vincent; notadamente, esta obra maior que é Crítica do trabalho (PUF), publicada em 1987. Contrariamente, ele critica de maneira muito forte (e com fórmulas corretas) as análises de Negri e a transparência do processo de produção que elas supõem. Ela funciona de certa maneira como um jogo de espelho: Gorz explica que toda forma de controle coletivo da produção moderna se tornou impossível, a não ser para desenvolver problemáticas um pouco “delirantes”, como as de Negri. Num segundo tempo, como ele mesmo o explica, ele retoma a temática do general intellect de maneira, segundo ele, próxima de Vincent. Erradamente, a meu ver, pois, além do fato de que ele considera sempre que é impossível desenvolver formas de controle da produção para simplesmente propor alternativas à margem, ele se põe a explicar que a inteligência que se desenvolveu na produção, o desenvolvimento do capitalismo cognitivo – torna caduca a teoria do valor.

Henrique Amorim - A teoria do valor-trabalho continua analiticamente válida face às novas formas de trabalho, face às novas tecnologias da informação? Como pensa as questões colocadas à teoria do valor pelos teóricos do capitalismo cognitivo?

Antoine Artous - Pode-se continuar com Gorz. Segundo ele, a forte redução do “tempo de trabalho imediato necessário à produção da riqueza”, para retomar uma fórmula de Marx nos Grundrisse, tornaria impossível a medida do tempo de trabalho sobre o qual repousa o valor (Gorz tem fórmulas mais ou menos avançadas, mas esta é exatamente sua problemática). Seria preciso retornar mais em detalhe aos dados empíricos e às extrapolações feitas. Para permanecer no plano geral, para Gorz tudo se passa, portanto, como se o valor repousasse sobre uma medida imediata, no seio da produção, do tempo de trabalho. Num olhar mais atento, isso remete a uma problemática bastante “vulgar”, ligando valor e produção de bens materiais. Aqui se está bem longe de Vincent que não cessou de repetir (com boas razões) que o tempo de trabalho de que fala Marx não remete ao que seria a naturalidade imediata (física) do trabalho no seio da produção, mas a um conjunto de procedimentos sociais. Na ocorrência aqui, a medida (a comparação) dos tempos de trabalho se realiza através da venda de mercadorias no mercado, o que permite pôr em relação social os diversos trabalhos. Além disso, é preciso insistir no caráter contraditório do processo descrito por Marx nos Grundrisse, como o faz de maneira pertinente Postone no livro que acaba de ser traduzido ao francês, Temps, travail et domination sociale (Mille et une nuits, 2009). De um lado, a dinâmica do capital desenvolve de maneira considerável as forças produtivas que abrem para as possibilidades de que fala Marx, mas, de outro, ele não pode passar do tempo de trabalho imediato que o capital re-segmenta sem cessar, já que a valorização (como processo de exploração) repousa sobre ele.

Henrique Amorim - Você prefaciou a nova edição do livro de Isaak Roubine. Qual é a importância deste livro e de Roubine para a teoria do valor-trabalho?

Antoine Artous - Escrito na Rússia dos anos 1920, este livro (que desaparecerá com seu autor. Aqui o problema é outro, a tradução pode estar errada de fato o livro e o autor podem ter sumido, ou mesmo morrido, deve-se fazer uma consulta) é o primeiro texto que faz aparecer claramente a ruptura de Marx com a Economia Política Clássica, em particular com Ricardo. Ele leva a sério conceitos como o de trabalho abstrato e de fetichismo da mercadoria, que são elementos-chave da teoria marxiana do valor com, justamente, a teoria do valor de Ricardo . Mais em geral – e isso me parece decisivo -, ele mostra como o ponto de partida das análises de Marx não são dados ‘naturais’ ou ‘técnicos’, mas formas sociais; isto é, formas sociais de objetividade ligadas a relações sociais dadas. Este livro desaparecerá para só reaparecer nos anos 1970, justamente com uma reatualização destes conceitos-chave. Na França, estas correntes vão cristalizar-se notadamente na revista Critiques de l’économie politique, onde se encontra Vincent, mas também “jovens” economistas como Salama e Valier, ligados, num primeiro tempo, a Mandel. Eu retorno com mais detalhes sobre essa questão em meu prefácio .

Henrique Amorim - Quais são suas censuras à análise de Ernest Mandel sobre a teoria do valor? Quais são as relações entre a análise de Mandel e de Rosa Luxemburgo?

Antoine Artous – Rosa e Mandel questionam uma certa visão cientificista, apresentando a economia política não como uma ciência da economia em geral, mas como uma economia dominada pelas relações mercantis e pelo processo de valorização. Dito isso, Mandel não trata da articulação do conjunto das categorias ligadas à teoria marxiana da qual acabo de falar. Assim, em A formação do pensamento econômico de Karl Marx, as categorias do fetichismo da mercadoria e do trabalho são ignoradas, e Marx é simplesmente apresentado como alguém que seguiu o esforço de cientificidade de Ricardo. A dimensão crítica é injetada do exterior de uma exposição muito clássica do valor-trabalho, em referência ao que seria uma teoria da alienação esboçada nos Manuscritos de 1844.

Henrique Amorim - A produção baseada sobre as NTICs  supera a divisão entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, entre tarefas de execução e de elaboração?

Antoine Artous - Creio que notadamente com Negri essas correntes tomaram pela letra extrapolações dos anos 1980 sobre as novas tecnologias. Dito isso (que não é difícil mostrar) a distinção de Marx entre trabalho produtivo/improdutivo não remete à natureza do trabalho, mas à análise das relações sociais que o estruturam. Para o capital, o trabalho produtivo é aquele que produz valor; pelo menos segundo Marx. Além disso, creio que a lógica do sistema repousa estruturalmente sobre a divisão entre trabalho de execução e de elaboração/direção. Marx o mostra muito bem em O Capital e algumas de suas análises prefiguram o desenvolvimento do dito fordismo. Naturalmente, isso mudou (embora não se tenha feito a demonstração do que seria uma nova forma de regulação). O desenvolvimento das NTICs permite pólos de autonomia relativa em certos setores, mas globalmente a economia organizada em rede e se apoiando sobre o general intellect produz sem cessar não-inteligência, novas segmentações e dominação.

Henrique Amorim - Como pensar a relação entre trabalho imaterial e trabalho material os relacionado aos conceitos de trabalho manual e trabalho intelectual de Marx?

Antoine Artous - Essas categorias fazem aparecer certas confusões atuais. O trabalho produz bens materiais ou serviços, mas o próprio trabalho não pode ser imaterial, ele sempre mobiliza uma força de trabalho no quadro de um processo de produção dado. O trabalho dos caixas do grande comércio nada tem de um trabalho imaterial. No que concerne à categoria de trabalho intelectual e manual, creio ser preciso evitar uma concepção naturalista (os que trabalham com suas mãos ou com sua cabeça), ela visa a divisão entre as tarefas de execução e de concepção e direção de que se falou mais acima. Quanto à questão sobre a produtividade, acredita-se que o processo de produção, como processo de valorização, só pode referir-se à produção de um bem material e o trabalho imediatamente ligado a esta produção. O crescimento da produtividade do trabalho quer dizer que um mesmo número de trabalhadores produz, por um mesmo ritmo de trabalho, uma quantidade maior de mercadorias. Em que medida o trabalho dito “imaterial” estaria fora disso?

Henrique Amorim - Qual é a influência teórica de Jean-Marie Vincent sobre sua análise, sobretudo em relação à teoria do valor?

Antoine Artous - Nos anos 1960-70, em sua maioria, a tradição marxista não se interessava por essas questões (Althusser), seja que, em oposição a Althusser,  reivindicava um “humanismo” marxista e da alienação, ou que, por vezes, se voltava para a teoria da coisificação [réification] de Lukács  de História e Consciência de Classe. Mas, a teoria marxiana do valor, como teoria crítica da forma valor dos produtos do trabalho e das relações sociais ligadas à produção das mercadorias, eram pouco tratadas, pelo menos com O Capital, como “crítica da economia política”. E, fazendo isso, Vincent desenvolveu uma fórmula de Marx, nos Grundrisse, que escrevia que, com o capitalismo, as relações de dependência não se manifestam “de maneira tal que os indivíduos são agora vistos por abstrações, enquanto antes eles eram dependentes uns dos outros”. Vincent sistematizou esta análise da dominação através do que ele chamava de “abstrações reais”; isso é falar das relações sociais tornadas formas abstratas, dispondo de sua própria objetividade e circulando acima da cabeça dos indivíduos. É assim que o trabalho se tornara uma forma abstrata captando o agir dos indivíduos e dominando-o, não somente no momento da produção, mas ao longo de todo o processo de produção.

Henrique Amorim - Qual é o papel de Max Weber sobre o pensamento de Lukács? Quais os limites das análises pautadas pela questão do desenvolvimento da racionalidade econômica?

Antoine Artous - É fundamental, em História e consciência de classe, Lukács não parte, como Marx, da análise das relações de produção e de troca e do modo como ele estrutura as relações sociais, mas da categoria de Max Weber: a modernidade como produto da racionalização do mundo. E ele acrescenta sua própria teoria da reificação [ou coisificação] como, grosso modo, uma teoria da coisificação das relações sociais sob o efeito do cálculo. Este livro terá uma influência sobre certas correntes críticas, notadamente a Escola de Frankfurt . E assim vai se construir toda uma série de categorias (racionalidade econômica, instrumental) através das quais a produção moderna/capitalista é fundamentalmente pensada como aplicação da ciência moderna à produção. Assim, para Gorz, racionalidade econômica é sinônimo de racionalidade capitalista. Vincent conhecia muito bem todos esses autores, e uma de suas contribuições é ter retomado algumas de suas temáticas, mas integrando-as na problemática marxiana da “crítica da economia política”.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição