Edição 221 | 28 Mai 2007

José Bonifácio. Reforma, Independência e Escravidão

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IHU Online

Ciclo de Estudos Interpretações do Brasil: dos clássicos às novas abordagens

Patrono da Independência, José Bonifácio foi decisivo também nos momentos que antecederam o “Grito do Ipiranga”, explica a Profa. Dra. Márcia Miranda. “Vejo a participação de José Bonifácio como uma importante perspectiva para pensarmos a separação política do Brasil de Portugal como um processo, no qual as idéias de independência e de criação do Estado alicerçado numa monarquia constitucional foram construídas paulatinamente”, aponta a professora, que na próxima terça-feira, 29-05-2007, estará participando do Ciclo de Estudos Interpretações do Brasil: dos clássicos às novas abordagens, discutindo o tema O pensamento de José Bonifácio, Reforma, Independência e Escravidão. O evento está marcado para o dia 29 de maio, às 19h30min, na sala 1G119.

Além dessa palestra, a professora também estará presente no IHU Idéias de quinta-feira, 31-05-2007, às 17h30min, no mesmo local. Nesse evento, ela abordará A fiscalidade na historiografia sobre o Brasil e o Rio Grande do Sul – da América portuguesa à Regência.

Márcia Miranda é graduada em História e em Economia e mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), atualmente é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), historiógrafa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.

Márcia Miranda conversou com a IHU On-Line e antecipou os assuntos que discutirá nos eventos. Confira a entrevista:

IHU On-Line - Recente enquete realizada pelo jornal Folha de S. Paulo perguntou a duzentos intelectuais, políticos, religiosos, jornalistas quem foi ou é o maior brasileiro de todos os tempos. Dos sessenta nomes indicados, José Bonifácio foi classificado em sexto lugar. Essa indicação mostra que ele desempenhou um papel bastante importante na história brasileira. Qual a contribuição de Bonifácio para o País? Por que ele é lembrado e considerado um dos maiores brasileiros de todos os tempos? 
Márcia Miranda -
Normalmente, ao ouvirem falar de José Bonifácio, as pessoas lembram que ele é o “Patrono da Independência”, título que retrata, em poucas palavras, o papel destacado que esse brasileiro teve no processo de independência do Brasil, mas que também pode limitar a avaliação da sua trajetória. José Bonifácio não foi apenas político, mas também um intelectual, cuja formação e atuação deu-se nos quadros da ilustração portuguesa. Foi um cientista que atuou nas principais academias e instituições científicas da Europa, morando e desenvolvendo estudos em diversos países (França, Dinamarca, Prússia, Noruega, entre outros), além de ter sido um destacado funcionário da Coroa portuguesa e professor da Universidade de Coimbra, militar engajado na resistência às tropas napoleônicas e, finalmente, um político que participou de forma decisiva na orientação da participação dos deputados paulistas nas Cortes de Lisboa e do processo de independência do Brasil.

O impressionante é que dentre esses vários papéis o de político foi o mais breve, restrito ao período em residiu no Brasil após longos anos na Europa (tendo partido para estudar na Universidade de Coimbra em 1783, quando tinha 20 anos de idade, José Bonifácio só retornou ao Brasil em 1819, já com 56 anos). Foi somente a partir de 1821 que José Bonifácio passou a desempenhar um papel de crescente importância na política luso-brasileira. Trajetória breve, mas decisiva para os rumos do processo.
 
IHU On-Line - José Bonifácio, além de desprezar os títulos da nobreza e questionar o porquê de as mulheres terem que obedecer às leis feitas sem sua participação, foi pioneiro por suas idéias avançadas, por incentivar a reforma agrária, o fim da escravidão, enfim, era um homem que tinha idéias “avançadas” para a época. Qual é a importância de sua participação na proclamação da Independência do Brasil? 
Márcia Miranda -
A participação de José Bonifácio foi decisiva, mas não pode ser realmente avaliada se nos ativermos aos momentos imediatos à proclamação, ou seja, aqueles que antecederam o “Grito do Ipiranga”. Vejo a participação de José Bonifácio como uma importante perspectiva para pensarmos a separação política do Brasil de Portugal como um processo, no qual as idéias de independência e de criação do Estado alicerçado numa monarquia constitucional foram construídas paulatinamente. Além disso, as suas propostas evidenciam que ele tinha consciência de que a independência e a formação do Estado não implicavam na constituição da nação, a qual deveria também ser construída.

Como intelectual ilustrado, educado na Universidade de Coimbra pós-reformas pombalinas, como cientista que vivenciou os primeiros anos da Revolução Francesa, e como funcionário da Coroa lusa na administração de D. Rodrigo de Sousa Coutinho , José Bonifácio era adepto do projeto de constituição de um império luso-brasileiro, que reconhecia a importância do Brasil, mas cujo centro político seria Lisboa. No entanto, o estabelecimento da Corte para o Brasil em 1808 e a constituição de um centro de poder na América contribuíram para que outros projetos de império fossem pensados.

No entanto, é importante ressaltar que, mesmo que José Bonifácio tenha sido exitoso no encaminhamento do processo de ruptura e no direcionamento a ser tomado na construção do Estado, preservando o regime monárquico e a unidade territorial, seu projeto de nação fracassou. É justamente, esse projeto de nação que explicita os aspectos mais “avançados” do seu pensamento. José Bonifácio acreditava que a nação brasileira deveria ser construída a partir de um programa reformista, daí as suas propostas apresentadas à Assembléia Constituinte em 1823, visando a criar condições para a “civilização” e incorporação dos indígenas à sociedade  e propondo a extinção do tráfico negreiro como primeiro passo de um progressivo processo de abolição da escravidão . Esse seu projeto visava criar uma raça nacional, afastar os vícios e a indolência que caracterizavam os brasileiros, fossem índios, negros ou brancos, e visava a criar as condições necessárias para o desenvolvimento econômico e social do país, para a manutenção da unidade territorial e da estabilidade social.
 
IHU On-Line - Na época do Brasil colonial, como funcionava o arrecadamento de impostos? Como esse dinheiro era investido?
Márcia Miranda -
Para pensar no sistema e na arrecadação fiscal da Época Moderna, temos de considerar que o processo de construção dos estados estava em curso, ou seja, de constituição do monopólio das funções extrativas e coercitivas. Desse modo, práticas típicas dos Estados do Antigo Regime foram implementadas por Portugal nas suas possessões ultramarinas, tais como a rematação de contratos. Por esse sistema, a Coroa cedia o poder de explorar monopólios (como da extração do pau-brasil ou da pesca da baleia) e de arrecadar os principais tributos à iniciativa privada. Esses contratos eram vendidos em hasta pública ao indivíduo ou companhia que fizesse o maior lance. O rematante passava a exercer o direito de arrecadar o tributo num território por um prazo determinado (geralmente três anos), obrigando-se a recolher ao Erário Régio um valor pré-estabelecido. O rematante lucrava com a diferença entre o valor arrecadado e o valor devido à Fazenda Régia, mas todas as despesas com a arrecadação dos tributos corriam por sua conta. É preciso lembrar que a maior parte dos tributos eram arrecadados in natura. Desse modo, cabia ao rematante recolher os produtos e comercializá-los. Para a Fazenda Real, esse negócio era interessante, pois permitia a antecipação do ingresso de moeda no tesouro e reduzia os encargos decorrentes da cobrança. Esse sistema era utilizado principalmente para a exploração dos registros (pedágios onde eram cobradas taxas sobre a circulação de pessoas, animais e mercadorias) e arrecadação de dois dízimos (correspondente a 10% da renda pessoal e do produto das lavouras, da criação e da pesa), dos quintos sobre couros (uma em cada cinco peças), dos impostos do Banco do Brasil, do subsídio literário (sobre o consumo de água-ardente e de carne verde), entre outros. Observa-se, assim, que esse sistema não incluía as principais fontes de receita tributária da Coroa, os quintos sobre o ouro, que eram arrecadados nas casas de fundição, e as taxas de exportação e importação, cobradas nas alfândegas. Mas eram justamente os tributos arrecadados sob a forma de contratos régios aqueles que mais pesavam sobre a população da colônia, porque incidiam sobre a circulação e a produção destinada ao mercado interno.

Com relação ao destino dos recursos arrecadados, é importante observar que o principal mecanismo de extração de excedente da colônia pela metrópole era o monopólio de comércio. Dessa forma, com exceção da receita fiscal proveniente da exploração do ouro e dos diamantes, os recursos eram geralmente aplicados na própria colônia. A lógica da exploração colonial visava reduzir os encargos dela decorrentes ao mínimo possível, logo buscava-se transferi-los aos próprios colonos. Nos primeiros anos da colonização, as câmaras eram as responsáveis pelo autolançamento de tributos, sempre que novas necessidades surgiam; mas com o passar do tempo, parte desses tributos, como demonstrou Luciano de Figueiredo , acabavam se perpetuando e sendo incorporados pela administração régia, reduzindo a capacidade das câmaras intervirem ou decidirem sobre essas questões. Deve-se levar em consideração que, a partir da reformas pombalinas, as capitanias passaram a ser mais do que simples divisões administrativas, mas também unidades fiscais. Desse modo, cada junta da fazenda (órgão colegiado composto pelo governador e capitão-general, pelo intendente da marinha, por um escrivão e um tesoureiro) era responsável pela administração dos negócios da sua capitania, procedendo a rematação dos contratos, o recebimento dos quartéis (prestações) devidos pelos contratadores e pela execução de todas as despesas, fossem com a administração, ou com as melhorias na infra-estrutura (abertura de caminhos, construção de pontes etc.), a manutenção de aulas públicas ou com as mobilizações militares para a defesa do território. As juntas das capitanias gerais eram independentes entre si, subordinando-se diretamente ao Erário Régio em Lisboa e, a partir de 1808, no Rio de Janeiro.

O fato dos recursos arrecadados nas capitanias serem despendidos nelas não significa que a arrecadação fosse destituída de tensões. A ação dos rematantes dos contratos era seguidamente denunciada como abusivas, pois estes lançavam mão de troques para aumentar seus lucros e também usavam de violência. Por outro lado, as arbitrariedades da Coroa também geravam descontentamento. Assim, as revoltas fiscais estiveram presentes em diversas regiões da colônia.

IHU On-Line - O processo de arrecadação de impostos se modificou ao longo dos anos no País e no estado do Rio Grande do Sul. A partir da sua pesquisa, como a senhora avalia as mudanças que ocorreram durante o tempo? Os avanços têm sido positivos, de maneira que evoluíram com o passar dos anos ou se tornaram mais burocráticos?
Márcia Miranda -
Essas mudanças estão ligadas ao processo de construção do Estado nacional. Por exemplo, o sistema de contratos dos dízimos, que era um imposto sobre a renda e a produção, foi extinto em 1821, um dos últimos decretos de D. João VI  ao deixar o Brasil. Mas extinguir esse sistema só se tornava viável a medida em que o Estado desenvolvia as condições necessárias para arrecadar diretamente esses tributos, o que requeria o aprimoramento da administração, com a constituição de um corpo de funcionários que viabilizasse a maior presença do Estado em todo o território nacional. Desse modo, a crescente burocratização é uma conseqüência da modernização e da “estatização” do processo fiscal.

Mas a mudança no sistema de arrecadação foi lenta, e em alguns casos só foi possível com a transformação do sistema tributário e do enfrentamento de novas tensões que inevitavelmente surgiram. Um dos problemas colocados pela Independência foi o da construção de um sistema tributário unificado e da garantia da concentração de uma parcela de recursos pela Corte. Paulatinamente, reformas foram introduzidas. A lei do orçamento de 1832 estabeleceu a divisão de competências tributárias entre as províncias e o governo central, ou seja, estabeleceu uma distinção entre as receitas provinciais e centrais, ao mesmo tempo em que distinguiu as despesas que deveriam se supridas pelos tesouros das províncias e o tesouro do Império. O Ato Adicional de 1834 descentralizou o sistema ao criar as assembléias legislativas com competência de legislar sobre os tributos provinciais. A partir desse momento, a disputa em torno do orçamento, ou seja, em torno do que deve ser tributado, do quanto deve ser recolhido e em que deve ser gasto, ganhou uma nova dimensão; deixou de ser um conflito que opunha unicamente as províncias ao governo central, passando também a ganhar uma dimensão interna às províncias, opondo facções das elites províncias entre si, como demonstrou Leitman ao analisar a Revolução Farroupilha. 

Mas as transformações nos sistemas de arrecadação e do sistema tributário, assim como do processo orçamentário envolvem também outros aspectos além das questões relativas à busca de eficiência administrativa ou às clivagens da sociedade. As mudanças também foram impulsionadas e, em certa medida, também provocaram mudanças na economia do país. Desse modo, o sistema tributário essencialmente alicerçado nas receitas alfandegárias, como era o nosso na República Velha, foi progressivamente transformado até aproximar-se do sistema atual, baseado essencialmente nos tributos vinculados ao mercado interno como o imposto de renda e o imposto sobre consumo e circulação de mercadorias.

Assim, as transformações da questão fiscal têm várias facetas. Se as mudanças pelas quais passou e tem passado geram conflitos, também criam oportunidades, estimulam alguns setores, atendem a alguns interesses. Por outro lado, essas mudanças também refletem as transformações do Estado, do federalismo brasileiro, da economia e da sociedade.

IHU On-Line - As críticas ao pagamento de impostos e taxas tributárias elevadas no Brasil são bastante freqüentes. Por que o Brasil, hoje, é um dos países que apresenta a taxa mais alta de impostos?  Isso é um reflexo dos séculos passados?
Márcia Miranda -
Em parte, mais que a carga tributária elevada, acredito que a principal crítica ao sistema tributário nacional esteja relacionada à distribuição não eqüitativa do ônus tributário. A lentidão das reforma tributária decorrente da ação de grupos de interesses específicos é principal entrave à modernização do sistema, tornando-o mais justo e eqüitativo. Como tentei demonstrar na questão anterior, os sistemas tributários e a administração fiscal devem acompanhar as transformações da sociedade e da estrutura produtiva. Mais que herança do passado, a dificuldade para implementação de reformas decorre da nossa realidade política e social.

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