Edição 221 | 28 Mai 2007

Gárcia Márquez: muito além de Cem anos de solidão

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IHU Online

Em comemoração aos 40 anos de Cem anos de solidão, de García Márquez, o Prof. Dr. Luiz Costa Lima, a pedido da IHU On-Line, escreveu o texto a seguir. Crítico de literatura e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Puc-Rio, Costa Lima é professor titular de literatura comparada, membro do setor de teoria da História da Puc Rio. Entre os anos de 1984 e 1986 foi professor da University of Minnesota e professor visitante das Universidades de Stanford, Johns Hopkins, Montreal, Paris VIII, Católica do Chile (Santiago) e pesquisador do Zentrum für Literaratur- und Kulturforschung (Berlim).

Escreveu, entre outras, as obras Estruturalismo e teoria da literatura (Petrópolis: Vozes, 1973), A aguarrás do tempo (Rio de Janeiro: Rocco, 1989);  Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral (2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995); Terra ignota: a construção de Os sertões (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997); Mímesis – desafio ao pensamento (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000); Intervenções (São Paulo: Edusp, 2002); Mímesis e modernidade: formas das sombras (2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003) e Redemunho do horror: as margens do Ocidente (Rio de Janeiro: Planeta, 2003).

Costa Lima também foi premiado como pesquisador estrangeiro em ciências humanas (Geisteswissenschaften), pela Alexander von Humboldt-Stiftung, Bonn, Alemanha, no ano de 1993. Confira o texto.

Por economia da memória, sempre costumamos associar o nome de um autor a um de seus livros. Justificada em termos de pragmática cotidiana, esse costume obviamente apresenta seus defeitos. No caso do escritor colombiano, associá-lo ao Cem anos de solidão, não deveria significar que o leitor se sentisse desimpedido de considerar O outono do patriarca, O general em seu labirinto, O amor nos tempos do cólera e mesmo sua novelinha de estréia, Ninguém escreve ao coronel. E isso porque não quero encher linhas com títulos. No caso de um autor tão fecundo como García Márquez, parece-me injusto fixar-nos em um só título. Façamos, contudo, de conta que não se trata de uma arbitrariedade da memória e nos perguntemos por que essa associação é feita. A resposta simples seria: o Cem anos passa a simbolizar o que tem sido para o colombiano a sua imaginária Macondo. Já se disse que Macondo está para Márquez, assim como Yoknopatawpha estivera para Faulkner. Macondo é concebido antes como um “pueblo”, que se converte em cidade. Inventada, o que aí sucede não precisa ter a pretensão de reproduzir fatos da realidade. Pressionada, a imaginação há de aí dispor de tudo o que, no entanto, caracteriza quer o que houve, quer o passível de suceder a uma comunidade humana. Quando se diz “o que houve”, não se pretende que o prosador se obrigue a relatos documentais ou realistas. Ao contrário, Macondo fora necessário a García Márquez para que sua ficção não se confundisse com o lastro de documentalismo que envenenara a ficção latino-americano, até as primeiras décadas do século XX. Não se tratava, nem para ele, nem para Alejo Carpentier – que pusera em circulação o termo de batismo, “realismo maravilhoso” - nem para Lezama Lima, muito menos para Borges – de libertar-se da história para fantasiar, mas sim de captar os interstícios que se apresentavam sob os fatos. Assim, por exemplo, no Cem anos, terá um papel fundamental a repressão à greve contra uma companhia exploradora da banana. Embora a greve houvesse sido real e a repressão militar, igualmente, García Márquez, quando perguntado, sempre fez questão de declarar que o número de mortos, a quantidade de trens convocados para seu transporte, os acidentes destacados não pretendiam ter nenhuma fidelidade histórica. Pois, em princípio, é difícil ao leitor compreender que o romance não é nem uma “ilustração” do histórico, nem tampouco o resultante da mera fantasia individual do autor. O lastro histórico do romance tem a ver com o imaginário que se constitui dentro de um determinado marco espaço-temporal. Assim, no caso de Márquez, esse marco concerne à vida sob o marco de um continente marginalizado, anárquico, instável e explorado. A partir dessas coordenadas históricas, o colombiano cria suas histórias. Elas são fiéis à história, sem que sejam história. Esse princípio ainda se mostraria no relato que fará da vida de Bolívar. Sabemos todos como O libertador se converteu em uma figura mítica na história hispano-americana. Apesar disso, O general em seu labirinto receberia a crítica de historiadores colombianos como biograficamente contendo detalhes falsos. É incrível verificar-se que o grande inimigo do romancista é o historiador “normal”, isto é, aquele que pretende que o romancista tenha como fio de prumo o que dizem os documentos atestados. Na impossibilidade de escrever um texto mais longo – e o que apresentei em O redemunho do horror  não tem a extensão que desejaria – apenas acentuo essa nota: não podemos entender García Márquez sem o seu continente mais a sua invenção da vida, do amor e da morte nessas terras. Se o quisermos ler à maneira como lemos Balzac , nos sentiremos perdidos. Pois Balzac fazia sua Comédia humana aumentar a lista civil da população francesa – ao menos a parisiense – enquanto Márquez não aumenta nosso número senão que expande aquilo que, dadas certas condições de espaço e tempo, nos é capaz de suceder ou que somos capazes de fazer e sentir.

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