Edição 221 | 28 Mai 2007

“O mundo de García Márquez é masculinizado”

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IHU Online

Ao resumir a importância de Cem anos de solidão, a professora Márcia Duarte a descreve como uma “chave de leitura para García Márquez, como uma porta hermeticamente fechada, mas cujos furos permitem entrever o que se passa no ambiente”. E o sucesso da obra, explica ela, se deve ao fato de ser “extremamente original, pois abarca um século da história da família Buendía, de modo a colocar o leitor como espectador dos mais tênues detalhes da vida familiar e social das personagens”. Em relação à imagem das mulheres apresentadas na obra, a professora ressalta que embora elas sejam “transgressoras, não há possibilidade de uma emancipação do feminino, pois esse mundo e esse momento não comportam uma tal perspectiva”. Entretanto, explica ela, “as mulheres da família Buendía não são totalmente submissas, elas se insurgem e se comportam como seres diferentes, tanto que não são, por vezes, compreendidas pelos homens”.

Duarte é graduada, mestre e doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sua tese intitulou-se Os Sussurros da Sombra: A Literatura Escrita por Mulheres na América Latina como (Sub)Versão da História. Docente na Unisinos, é autora de vasta produção acadêmica, desde artigos especializados a capítulos de livros.  Em 02-06-2003 concedeu entrevista à IHU On-Line edição 62 falando sobre a obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, apresentada no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, em 05-06-2003. É autora da edição 8 do Cadernos IHU Idéias intitulado Simões Lopes Neto e a Invenção do Gaúcho. A publicação tem como base a apresentação de mesmo nome que a professora conduziu no IHU Idéias de 4-09-2003. Sobre esse tema, confira ainda a entrevista O gaúcho que antecipou Guimarães Rosa concedida à edição 73, de 01-09-2003. Em 13-03-2006, na edição 171 da IHU On-Line, Duarte concedeu a entrevista Caio Fernando Abreu: um autor extemporâneo tratando sobre o IHU Idéias que conduziu em 16-03-2006 intitulado Caio Fernando Abreu: uma síntese da pós-modernidade. Na edição 175 da IHU On-Line, de 10-04-2006, contribuiu com a editoria Sala de leitura falando sobre a obra Rumo ao farol. Publifolha: São Paulo, 2003, de Virginia Woolf. Em 30-05-2006 Duarte ofereceu a oficina O simbolismo na poesia de Mario Quintana, dentro das atividades do Seminário Mario Quintana: cotidiano e poesia, promovido pelo IHU de 29 a 31-05-2006. A entrevista abaixo foi concedida, por e-mail, à IHU On-Line.

IHU On-Line - Como o homem e a mulher são mostrados na sociedade patriarcal apresentada por Cem anos de solidão?
Márcia Duarte -
O homem e a mulher são vistos, em Cem anos de solidão, como seres difusos, que vivem em um mundo para o qual não foram preparados. Cada personagem da obra congrega uma série de características de abandono, visto que o tom do texto é a impossibilidade de as relações humanas serem plenas, principalmente as relações familiares. Nesse universo, às mulheres é dado o papel de transgressoras, pois são elas que rompem com a ordem e estabelecem novas formas de harmonia, dentro da própria desarmonia que perpassa o texto.

IHU On-Line - Um dos aspectos que se destacam em Cem anos de solidão é o da sexualidade, com destaque para alguns personagens. Por exemplo, Úrsula passa a usar um cinto de castidade, porque sua mãe tem medo que ela dê à luz filhos com rabos de porco ou iguanas, porque ela teria se casado com o primo José Arcádio. Sem fazer sexo, ela e o marido passam a enfrentar comentários da sociedade. Como é vista, de modo geral, a sexualidade no romance de García Márquez?
Márcia Duarte -
Do mesmo modo que as demais questões que compõem o texto de García Márquez, a sexualidade é vista como algo mágico, que se instaura no âmbito do sobrenatural, do inumano. As personagens transitam por um misto de abundância e carência de sexualidade, e, assim, nunca se efetiva uma sexualidade natural, visto que as questões de sobrevivência, que são a chave para a compreensão do livro, corrompem as relações, tanto sexuais como afetivas.

IHU On-Line - A maneira como García Márquez descreve a mulher em Cem anos de solidão tem alguma ligação ao desempenho dela, histórico e social na América Latina, havendo espaço para que possa mostrar sua voz, ou o mundo que o escritor descreve é masculinizado?
Márcia Duarte -
O mundo de García Márquez é masculinizado, porque ele narra a história de uma família patriarcal. Sendo assim, ainda que as mulheres sejam transgressoras, não há possibilidade de uma emancipação do feminino, pois esse mundo e esse momento não comportam uma tal perspectiva. Entretanto, as mulheres da família Buendía não são totalmente submissas, isto é, elas se insurgem e se comportam como seres diferentes, tanto que não são, por vezes, compreendidas pelos homens.

IHU On-Line - O que essa obra em especial apresenta de diferente dos outros livros do autor?
Márcia Duarte -
A obra de García Márquez apresenta muita similaridade, inclusive alguns personagens se repetem de um texto para outros, entretanto Cem anos de solidão apresenta, de modo ampliado, as discussões que se fazem presentes no restante da obra do autor, ou seja, tudo é exagero, no referido livro, desde a melancolia, a solidão e o abandono, aspectos que congregam negatividade, até a sexualidade, a afetividade, a amizade, aspectos que congregam positividade. Então, para o bem e para o mal, Cem anos de solidão representa uma chave de leitura para García Márquez, como uma porta hermeticamente fechada, mas cujos furos permitem entrever o que se passa no ambiente.

IHU On-Line - García Márquez produziu obras muito espelhadas na sua própria vivência. Especialistas dizem que o autor esclarece a América Latina. Qual a visão que ele tem da América Latina?
Márcia Duarte -
Ele mostra a América Latina como um espaço em que tudo é possível, desde as maiores atrocidades, como o assassinato em massa durante a greve da companhia bananeira e seu posterior apagamento da memória de toda a população local, até os momentos mais sublimes, como a subida de Remédios, a bela, ao céu. Dentro de todas essas possibilidades, a América Latina é um lugar que ainda não cumpriu seu papel, que ainda não disse “a que veio”, e que, portanto, congrega um futuro impressionante, que pode tanto ser positivo como negativo.

 

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