Edição 221 | 28 Mai 2007

“Poucos autores conseguiram representar literariamente nossa incapacidade de tomar as rédeas da História”

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IHU Online

Para Wander Miranda, autores como García Márquez podem ser considerados “artistas de primeira grandeza” porque apresentam, segundo ele, uma linguagem que “sempre estará aberta, em razão do seu alto nível de elaboração estética, para novas e diferentes leituras”. Ao sucesso de Cem anos de solidão, Miranda considera que se deve ao fato do escritor colombiano ter mesclado no enredo, o mito e o real.

Wander Melo Miranda é graduado em Letras e mestre em Estudos Literários pela Universidade de Minas Gerais. Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, Miranda é professor titular da Universidade de Minas Gerais (UFMG), editor da Editora UFMG e consultor do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e revisor das revista Margens/Márgenes. É autor de Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago (São Paulo: Edusp, 1992) e organizou Narrativas da modernidade (Belo Horizonte: Autêntica, 1999) e Navegar é preciso, viver: escritos sobre Silviano Santiago (Belo Horizonte: Ed. UFMG; Bahia: EdUFBA; Rio de Janeiro: EdUFF), este em colaboração com Eneida Maria de Souza. Confira a entrevista concedida por e-mail pelo professor à IHU On-Line.

IHU On-Line - Por qual motivo Cem anos de solidão representa um marco na literatura universal?
Wander Miranda -
São vários os motivos, mas o principal deles talvez seja o de trazer à cena literária mundial um continente literário novo, em que a História se mescla ao mito de um modo até então pouco comum, formando um texto literário no qual as especificidades locais atingem um caráter generalizador, que passa a falar de cada um e de todos.
 
IHU On-Line - Muitos autores europeus foram influenciados por Borges, que, talvez, ao lado de Octavio Paz (este mais como crítico do que como poeta), foi um dos poucos autores hispano-americanos a ter mais destaque internacional. García Márquez, que ganhou o Nobel como Paz, também atingiu essa importância? E esta se deve, sobretudo, a Cem anos de solidão?
Wander Miranda -
Não creio que a "influência" de García Márquez seja semelhante à de Borges ou de Paz. Borges conseguiu atingir o leitor e o escritor europeus principalmente por trabalhar na fronteira entre a ficção e o ensaio. Dono de uma vasta erudição,  seus mundos imaginários tomam a  forma de um  texto especulativo bastante original, que desfaz a barreira entre os gêneros literários e amplia o horizonte de expectativa do leitor, "universalizando-o". A atuação de Paz se parece mais com a de um grande pensador-poeta ou poeta-pensador (mais uma vez a descontrução dos gêneros), que busca fazer uma ponte, sobretudo entre a cultura erudita européia e a cultura pré-colombiana (exuberante e riquíssima como a do México, por exemplo), colocando-as em diálogo e tensão. García Márquez como que aproveita  tudo isso, mas sob a forma de uma volta ao enredo, comum nas narrativas populares da América Hispânica e no grande romance europeu do século XIX. Esse novo enredo irá influenciar de maneira especial os escritores pós-modernos norte-americanos, que têm o autor em conta de um de seus precursores, no sentido borgiano do termo.
 
IHU On-Line - É possível considerar a obra de García Márquez experimental, como as obras de outros autores latino-americanos, a exemplo de Borges, Lezama Lima, Guimarães Rosa ou Cortázar, ou ele é um autor que prefere histórias mais lineares, mesmo que apresentando, muitas vezes, o assim chamado “realismo maravilhoso”?
Wander Miranda -
Creio que sim, levando em consideração a resposta anterior. Vale insistir no modo novo como o enredo é retomado, o que permite ao texto ter várias camadas de leitura (procedimento que Umberto Eco  irá utilizar depois em O nome da rosa), sempre em superfície, ou seja, uma não exclui ou impede a outra, além do uso de uma linguagem aparentemente clássica na sua dicção, o que distancia o texto de García Márquez de certo hermetismo próprio a autores como Guimarães Rosa ou Lezama Lima, hermetismo devido em grande parte à experimentanção vanguardista com a língua.
 
IHU On-Line - Harold Bloom considera que há uma influência de Kafka em García Márquez, o que este mesmo admite. Afinal, o livro que fez o escritor colombiano dedicar-se à literatura foi A metamorfose, que lhe recordou das histórias contadas pela avó durante a infância. Pode ser feita uma aproximação do “realismo maravilhoso” do escritor colombiano com o clima onírico de pesadelo, de “irreal”, apresentado por Kafka em seus livros?
Wander Miranda -
A aproximação me parece pertinente apenas em parte. São dois projetos literários muito distintos: as "histórias contadas pela avó durante a infância" a García Márquez fazem toda a diferença. Não concordo também com o “método” de Harold Bloom, que, para legitimar o escritor latino-americano, precisa ancorar sua obra na experiência  de um autor europeu, por mais que seja indiscutível a excelência de Kafka e sua importância para a literatura do século XX.
 
IHU On-Line - Que elementos em comum Gabriel García Márquez e Graciliano Ramos trazem em suas obras Cem anos de Solidão e Vidas Secas para a realidade latino-americana?
Wander Miranda -
São escritores muito diferentes, que têm concepções sobre a literatura que, em última instância, são conflitantes. Graciliano Ramos é fiel ao projeto realista, embora esteja a todo momento desconstruindo-o em seus romances por meio da acirrada reflexão metaficcional, ao contrário de García Márquez, para quem o realismo stricto sensu já não diz mais nada. Mas ambos, por vias opostas, apresentam uma tomada de consciência da realidade latino-americana - mais desconsolada por certo em Graciliano; mais esfuziante em Gárcia Márquez.
 
IHU On-Line - Na obra Cem anos de solidão, García Márquez tenta de certa maneira, retratar a realidade dos povos latino-americanos. No entanto, apresenta um cotidiano mais fantasioso, diferente de Graciliano Ramos, que retrata seus personagens de maneira mais real. Em que medida as duas obras conseguem ser atuais nos dias de hoje?
Wander Miranda -
Porque infelizmente nossos problemas pouco mudaram. Parece que estamos condenados a caminhar em círculos e poucos autores conseguiram representar literariamente como ambos essa nossa incapacidade de tomar as rédeas da História. Além do mais, são artistas de primeira grandeza, autores de obras que apresentam uma linguagem que sempre estará aberta, em razão de seu alto nível de elaboração estética, para novas e diferenciadas leituras.

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