Edição 221 | 28 Mai 2007

Cem anos de solidão: contribuição para a identidade caribenha

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IHU Online

“Eu considero Cem anos de solidão o melhor livro que li na vida”, afirma Dernival Venâncio Ramos Junior, entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, a obra de García Márquez retrata o patrimônio cultural dos caribenhos e dos países periféricos, ao mesmo tem em que relaciona jornalismo e literatura.

Dernival possui graduação e mestrado em História pela Universidade Federal de Goiás, e está concluindo o doutorado em História pela Universidade de Brasília, tendo sua tese o título “Cultura de migração em Gabriel García Márquez”. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando principalmente nos seguintes temas: Gabriel García Márquez, História e Literatura, História e Cultura Caribenhas e Cultura de migração.

Confira, a seguir, a entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

IHU On-Line - A paisagem estabelecida por García Márquez, em sua obra, o que se confirma em Cem anos de solidão, é a da coleção de histórias, lendas, mitos, da América Latina. A obra do escritor colombiano também pode ser vista, mesmo com sua magia, como uma representação simbólica do ambiente político latino-americano em que foi criada?
Dernival Ramos Junior –
Acredito, como historiador, que a obra literária dialoga intensamente com o momento histórico no qual apareceu. Mas não é fácil estabelecer uma relação entre o contexto histórico e o conteúdo das obras literárias. Na maioria das vezes, isso é impossível. A obra não reflete a sociedade, dialoga com ela tensamente, recria, renega, destrói os sentidos socialmente aceitos; não poucas vezes, propõe outros sentidos, outras formas de ler a sociedade a qual pertence. É o que acontece com Cem anos de solidão. Depois da Segunda Guerra Mundial muitos dos sentidos socialmente aceitos em muitos países latino-americanos e caribenhos começaram a ser desconstruídos. A idéia de que deveríamos “copiar” a chamada civilização ocidental foi questionada duramente. No caso da literatura, essa “cópia” se dava na forma da imitação de modelos estéticos do romantismo, realismo, vanguardas etc. O último grande modelo importado havia sido o surrealismo. O primeiro a aproveitá-lo foi Alejo Carpentier, que teorizou o famoso “realismo maravilhoso” como contraponto ao surrealismo. Num nível mais profundo, isso quis dizer: buscar na cultura popular os elementos de sustentação da literatura latino-americana e caribenha.

No caso de García Márquez, que leu Carpentier em 1952, sua obra é uma releitura magistral da relação que a nação colombiana construiu historicamente com o Caribe. A região do Caribe colombiano, ou La Costa, foi construída historicamente como o outro dentro da idéia de nação que as elites andinas, representadas por Bogotá, construíram e com a qual se identificavam. García Márquez constrói sua obra a partir da cultura caribenha, validando retoricamente a experiência cultural daquela região. Sua obra impulsionou todo um movimento de identidade cultural que levou a Costa a se reconhecer como Caribe, e reconhecer a riqueza da experiência cultural da região. Antes de García Márquez, porém, ninguém usava o termo Caribe para se referir à Costa Atlântica da Colômbia. Ele realiza o que eu chamo de “Caribenização da Costa Atlântica”.

IHU On-Line – Qual é a ligação da obra de García Márquez com a cultura popular caribenha? 
Dernival Ramos Junior –
Sua obra é fundamental dentro da criação de uma identidade “Caribe” para a região. Hoje existe, no Caribe colombiano, um forte movimento de identidade cultural caribenha que se deve, em grande medida, a sua obra. Se Cervantes  fundou a Espanha, García Márquez fundou a Colômbia caribenha.

IHU On-Line – O senhor produziu um trabalho, no qual analisou a obra Cem anos de solidão e traçou um panorama histórico do pós-Segunda Guerra Mundial e suas implicações no ambiente social e cultural caribenho. Como foi essa pesquisa? Quais os principais aspectos que você analisou, associando-os à obra Cem anos de solidão.
Dernival Ramos Junior -
Na pesquisa a qual se refere, eu buscava os elementos culturais que ligavam a obra de García Márquez com o Caribe. Analisei o que chamo de retóricas culturais. A primeira delas foi o carnavalesco. A outra o maravilhoso. Na verdade, estava cansado do tal “realismo maravilhoso” como modo exclusivo de analisar García Márquez. Cem anos de solidão é um dos livros que mais me fez rir, e isso me incomodava. O maravilhoso produz algo diferente de riso, em geral, espanto, silenciamento. Queria entender então como García Márquez podia contar aquelas histórias “maravilhosas” de modo que fizesse rir e não silenciar. O que precisava fazer era comparar as tradições culturais caribenhas com a obra de García Márquez. Usei a idéia de retórica cultural. O maravilhoso, que chamei de retórica do encantamento, busquei em alguns contos orais recopilados e publicados. Neles encontrei o mesmo modo narrativo de García Márquez no que diz respeito ao maravilhoso: contar as coisas mais ‘estranhas’, como um fio de sangue que atravessa um povoado, ou uma mulher extremamente linda que é arrebatada ao céu, da maneira mais cotidiana possível. Como se isso ocorresse diariamente.

García Márquez e a cultura carnavalesca

O que descobri foi que o carnavalesco vai além do carnaval, e que o maravilhoso vai além do mágico. São duas faces da narrativa oral caribenha. Dependendo de como e de onde se narre, a mesma história pode ser maravilhosa ou carnavalesca. Ou seja, depende do público e do lugar de narração. Assim, o carnavalesco, que chamei de retórica hiperbólica, estava presente tanto nas histórias de humor como em história mágicas. Tudo depende da performance do narrador. E García Márquez conseguiu transferir esses elementos da narrativa oral para a narrativa escrita; seu narrador é um grande performer, um grande ator.

IHU On-Line – É possível traçar uma relação entre García Maárquez, Guimarães Rosa e Alejo Carpentier, já que de alguma maneira eles tentam, através de suas obras, retratar a cultura popular?
Dernival Ramos Junior –
É possível, embora essa relação seja pouco conhecida no Brasil. A relação mais importante é a que estes três autores estabelecem entre suas obras e a cultura popular. Neles, a cultura popular é o “elemento de legitimidade” de suas narrativas. E chegaram a tal posição a partir do que chamo de “viagens para dentro”. Em fevereiro de 1952, García Márquez faz a sua “mítica viagem” à Aracataca, povoado onde havia nascido e de onde, segundo ele, teria surgido sua vocação de escritor; em junho, três meses depois, Rosa fez uma longa viagem pelo sertão. Nessa viagem ele teria realizado a pesquisa para Grande sertão: veredas e outras obras, como a novela Buriti. Em janeiro de 1953, Alejo Carpentier termina o seu mais importante livro, Los pasos perdidos . Livro que narra uma viagem ao interior de um país sul-americano por um artista frustrado, viagem essa que terá o poder de revitalizar sua força criadora. Em Buriti de Rosa, também Miguel retorna ao sertão em busca de seu passado e encontra o amor em Maria da Glória depois de uma vida vazia na cidade. É importante lembrar que Miguel é Miguilim, personagem que na novela Miguilim é enviado à cidade para estudar. Esses três autores colocam, assim, seja na viagem em busca da cultura popular, ou na viagem de pesquisa, como Carpentier, ou de reencontro com um mundo deixado para trás, García Márquez e Rosa, a razão de ser de suas obras. Isso está ligado a uma busca identitária, que tem como razão de ser a desconstrução dos sentidos socialmente aceitos, que ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial.

IHU On-Line - O senhor, enquanto pesquisador da obra de García Márquez, considera Cem anos de solidão uma das melhores obras hispano-americanas? A que atribui tamanho sucesso?
Dernival Ramos Junior -
Eu considero Cem anos de solidão o melhor livro que li na vida. Mas esse é meu gosto pessoal. E eu não comprei os 30 milhões de exemplares que a obra vendeu; comprei apenas três. Na verdade, García Márquez nem sempre foi unânime como nos parece hoje. Partes de sua obra foram censuradas na antiga União Soviética, a tradução feita nos Estados Unidos passou inicialmente despercebida, e, nos países árabes, como Irã, os capítulos eram vendidos no mercado negro, gravados em fitas K-7 até recentemente. Não havia permissão de publicá-la. Apenas na América Latina e no Caribe o sucesso foi imediato. Depois do Nobel, em 1982, García Márquez alcançou sucesso mundial. Até mesmo na Colômbia, ele inicialmente não foi uma unanimidade. No final dos anos de 1970, ele teve que sair do país protegido diplomaticamente pela embaixada do México depois que foi emitida uma ordem de prisão contra ele, no qual o acusavam de cooperação com a guerrilha. Apenas depois de 1982, ele obteve alguma unanimidade. Contudo, o que foi fundamental para a aceitação da obra, foi uma particular leitura que a relaciona com o pensamento utópico de esquerda, que depois da Revolução cubana, tinha grande acolhida em todos os países latino-americanos e caribenhos.

IHU On-Line – As obras de García Márquez são interpretadas das maneiras mais diversas. Em Cem anos de solidão, quais são as possíveis interpretações?
Dernival Ramos Junior –
Antes do Nobel, já haviam surgido muitas leituras. A mais importante delas, que é o melhor estudo escrito até hoje sobre Cem anos de solidão, é o livro Gabriel García Márquez: historia de un deicidio, de Mario Vargas Llosa. Assim, me parece que essa leitura de “esquerda da obra” e depois o Nobel foram responsáveis em grande medida pela sua fama. Contudo, hoje, a leitura que prevalece é a que se relaciona com o “realismo maravilhoso”. Com o fim da legitimidade do pensamento de esquerda, surgem cada dia outras e outras leituras. Na Colômbia, em 1997, se realizou um congresso sobre García Márquez; neste encontro surgiram leituras muito interessantes: uma que relaciona o pensamento de García Márquez com a cultura judia, e uma outra que mostra a relação entre García Márquez e mitos bíblicos , entre muitas outros. Acredito que com a crítica às leituras anteriores surgirão outras leituras e enriquecerão o nosso conhecimento sobre a obra e a própria obra.

IHU On-Line - García Márquez sempre foi um homem de esquerda; defende Fidel Castro, por exemplo. De que maneira essa posição se reflete na obra Cem anos de solidão?
Dernival Ramos Junior -
A amizade entre os dois é um fato muito interessante. Mas é importante lembrar que García Márquez é amigo de Fidel Castro e de Bill Clinton . Mas não acredito que esta amizade tenha influenciado na obra do autor. Ele sempre se manteve independente das decisões políticas de Fidel Castro, assim como o fato de ser amigo de Clinton não levou-o a colocar-se do “lado” dos Estados Unidos. A ligação de García Márquez com o pensamento de esquerda é anterior à revolução cubana e a sua amizade com Fidel Castro. Ela vem do ambiente intelectual colombiano dos anos de 1950, quando o Partido Comunista Colombiano estava se organizando. É bom dizer também que sua ligação como o mundo do pensamento de esquerda nunca foi dogmático e que em alguns casos esse não dogmatismo e sua ligação com Fidel Castro lhe causaram muitos problemas. Seu “desencanto” com o bloco comunista ocorreu já nos anos de 1950, quando visitou a URSS e escreveu uma série de reportagens sobre a vida “atrás da cortina de ferro”. No final dos anos de 1970, ele foi acusado de ser um intermediário entre as FARC  e Cuba, e foi emitida uma ordem de prisão contra ele. García Márquez e sua mulher Mercedes foram obrigados a deixar o país sob proteção diplomática mexicana. A acusação era um disparate, mas teve conseqüências graves. O país se voltou contra ele, e ele foi taxado de traidor. Contradição: menos de três anos depois ele ganha o Nobel, e a Colômbia inteira o proclama uma espécie de herói nacional. Há alguns meses, quando completou oitenta anos, visitou Fidel Castro, que como sabemos está muito doente; dias depois, no Congresso da Língua Espanhola realizado em Cartagena, onde foi homenageado, se encontrou com Bill Clinton, e conversaram amigavelmente. Maravilhoso? Carnavalesco? Talvez, com certeza alguém que tem uma capacidade (muito caribenha) de se relacionar com pólos opostos sem ter que se aferrar dogmaticamente a um deles.

IHU On-Line - As obras de García Márquez têm o que podemos chamar de um lado mágico, fantasioso, que remete ao conhecido “realismo maravilhoso”. No entanto, ele afirma que toda obra tem um fundo de verdade. Podemos dizer que Cem anos de solidão tenta demonstrar que na América Latina tudo tem um pouco de fantasia, até mesmo devido à mistura de povos?
Dernival Ramos Junior -
O fato de García Márquez afirmar que tudo em sua obra tem base real é parte de sua performance da diferença caribenha em relação ao mundo ocidental. Em algumas entrevistas ele deixa os jornalistas irritados porque eles querem que ele “prove” que sua obra tem base real. Creio que isso está mais ligado a um discurso literário que reivindica – e reinventa – uma identidade para o Caribe baseado na contraposição com a cultura ocidental. García Márquez dá a entender que para ele não existe muita diferença entre “real” e “imaginário”. A obra de García Márquez é uma interpretação intelectual, de grande erudição, do mundo da oralidade, e não uma obra popular. Ela interfere, na verdade, muito pouco na cultura popular; seu público é a classe média e alta e não camponeses ou operários – mesmo que tenha chegado a alguns deles.

IHU On-Line - García Márquez tem como marca, pressionada pela profissão de jornalista, exercida durante muitos anos, a narrativa e o documentário. É correto afirmar que ele por esse motivo tenta, em suas obras narrar exemplos de seu estilo e racionalidade contrastados com as histórias incríveis de suas ficções?
Dernival Ramos Junior -
A relação entre a obra jornalística de García Márquez e suas obras ficcionais é íntima. Foi como jornalista que García Márquez testou muitas de suas técnicas narrativas. Exemplo disso são suas longas reportagens escritas em forma de romance, Relato de um náufrago, de 1955. Ele escreveu outras reportagens em forma romanceada como Notícias de um seqüestro e A aventura de Miguel Littín clandestino en Chile. São textos híbridos, formados pela mistura de romance e reportagem; contudo, não se pode esquecer que García Márquez se formou na escola jornalística norte-americana da qual sairam também nomes como Capote. Ou seja, partem da idéia de que a reportagem é uma construção lingüística, que pretende ter como referencial a “realidade”. Mas como construção lingüística, está sujeita mais à própria linguagem que aos imperativos do fato.

O jornalismo de García Márquez

Na verdade, hoje, a reportagem é um dos gêneros mais autorizados socialmente, assim como a Crônica e a Relação foram no século XVI e XVII. Assim o que seria a racionalidade do texto jornalístico é ideologia, não há transparência possível quando se trabalha com símbolos. García Márquez começa escrevendo notas, observações poéticas da “realidade” de cidades como Barranquilla e Cartagena; depois, quando foi trabalhar em Bogotá, no El Espectador, o jornal mais importante da Colômbia, hoje e então, é iniciado na reportagem. Suas reportagens, porém, são textos pouco transparentes. Ele dá a notícia com recursos de romancista. Depois de Cem anos de solidão, suas reportagens se tornam cada vez mais redondas: são textos estruturalmente perfeitos como seus romances. Praticamente todos os textos do livro Notas de prensa são, do ponto de vista poético, tão densos quanto Crônica de uma morte anunciada. De qualquer modo, um dos pilares de sua insistência na “verdade de seus livros” se baseia no fato de ter sido jornalista; ele disse muitas vezes (e está no site de sua fundação Nuevo periodismo) que ser repórter é a melhor profissão do mundo. Justifica isso a partir da idéia de que o repórter escuta as histórias alheias e tem por obrigação contá-las a outros. Se sua obra se baseia na realidade, é isso também que ela faz, não?

IHU On-Line - Qual é a importância da literatura enquanto meio para contar a história e o dia-a-dia de um povo?
Dernival Ramos Junior -
A literatura é uma construção social de sentido. Essa frase que parece um slogan é, na verdade, a idéia mestra que guia minhas pesquisas. No caso de autores como García Márquez isso, como já disse acima, é patente. A literatura como parte da cultura de uma sociedade é parte de seu patrimônio. No caso do Caribe colombiano, com toda a história de negatividade projetada sobre ela desde os Andes, uma obra como a de García Márquez, e o reconhecimento internacional que ela conseguiu, influiu de modo decisivo na forma como os caribenhos se percebem, e o modo como se representam. Uma coisa que percebi na Colômbia e no Caribe colombiano, em 2005 quando no doutorado tive a oportunidade de ir á Colômbia, foi que praticamente todos os textos escritos depois de García Márquez, começam com uma citação de uma de suas obras. Começam mais ou menos assim: “como disse García Márquez....”. Isso é válido também para grande parte dos intelectuais andinos. Hoje, García Márquez é um patrimônio dos caribenhos e dos países periféricos.

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