Edição 221 | 28 Mai 2007

“Cem anos de solidão já se firmou como clássico da literatura mundial”

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IHU Online

Cem anos de solidão é “uma obra que vai ao encontro de uma busca pela identidade latino-americana, que revela nossa história e decifra nossas origens”, avalia Márcia Hoppe Navarro, professora doutora do curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na área de Literatura Comparada. Especialista em literatura latino-americana, a professora ressalta que a obra de García Márquez teve êxito também por ser um livro “extraordinário, maravilhoso, que exerce uma espécie de encantamento permanente em seus leitores”.

Navarro é autora de O romance do ditador: poder e história na América Latina (São Paulo: Ícone, 1989); O romance na América Latina (Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1988); e do volume da Série Autores Gaúchos sobre João Gilberto Noll (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1989). Organizou também a obra Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina (Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1995), além de produzir diversos artigos para revistas e jornais. Participou, com ensaios, dos livros Figurações do feminino nas manifestações literárias (Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2005), organizado por Tereza Marques de Oliveira LimaMaria Conceição Monteiro, e Refazendo nós: ensaios sobre mulher e literatura (Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz: Edunisc, 2003), organizado por Izabel Brandão e Zahidé Muzart, entre outros.

Confira a seguir a entrevista com ela, concedida por e-mail para a IHU On-Line.

IHU On-Line – Cem anos de solidão teve um enorme êxito: foi traduzido para 35 idiomas e suas vendas são estimadas em 30 milhões de exemplares. A que se deve tamanho sucesso?
Márcia Hoppe Navarro –
Há menos de dois meses (em 26 de março de 2007), na abertura do IV Congreso Internacional de la Lengua, em Cartagena das Índias, momento em que foi lançada uma edição de um milhão de exemplares de Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez  mencionava que são muitos mais: são aproximadamente 50 milhões de leitores, os quais, se pudessem viver juntos em um mesmo pedaço de terra, equivaleriam ao número de habitantes de um dos vinte países mais populosos do mundo. O autor afirmava o número não por vaidade pessoal, mas sim para enfatizar que “no se trata, ni puede tratarse, de un reconocimiento a un escritor. Este milagro es la demostración irrefutable de que hay una cantidad enorme de personas dispuestas a leer historias en lengua castellana, y por lo tanto un millón de ejemplares de Cien Años de Soledad no son un millón de homenajes al escritor que hoy recibe, sonrojado, el primer libro de este tiraje descomunal. Es la demostración de que hay millones de lectores de textos en lengua castellana esperando, hambrientos, de este alimento”. Este dado responde em parte a sua pergunta. Mas, obviamente, o livro não teria o êxito que teve se não fosse extraordinário, maravilhoso, exercendo uma espécie de encantamento permanente em seus leitores. Além disso, é uma obra que vai ao encontro de uma busca pela identidade latino-americana, que revela nossa história e decifra nossas origens. Isso se deve ao fato de que ao completar quarenta anos desde sua publicação, Cem anos de solidão, a obra mais conhecida de García Márquez, que já se firmou como clássico, não apenas da literatura latino-americana, mas também da literatura mundial, pode ser lido de várias maneiras, agradando desde os leitores mais simples, bem jovens às vezes, até os mais sofisticados, críticos literários com muita experiência nas costas e caminho andado. Outro motivo para esse interesse generalizado é que nesse romance de 1967 reaparecem histórias e personagens de obras anteriores do autor colombiano, e por isso o livro já foi definido como o tabuleiro completo de um quebra-cabeça cujas peças foram sendo introduzidas nos seus livros precedentes.

IHU On-Line: García Márquez considera seu livro O outono do patriarca uma espécie de anti-Cem anos de solidão, afirmando que não gostaria de repetir a fórmula. Gárcia Márquez ficou preso ao rótulo de ser o autor de Cem anos de solidão, ou as melhores características de seu trabalho se concentram nessa obra? Por quê?
Márcia Hoppe Navarro -
Não sei por que Gabriel García Márquez afirmou isso sobre O outono do patriarca , que é um romance excepcional sobre o poder e a solidão do poder na América Latina, no sentido político do termo solidão como falta de solidariedade. Neste aspecto, a questão fundamental dos dois romances, não poderia jamais ser um “anti-Cem anos de solidão”, pois através do Patriarca o autor elabora um desenvolvimento hiperbólico do poder que chega a ter o Coronel Aureliano Buendía, o personagem mais importante de Cem anos de solidão. Em O outono do patriarca, o autor apresenta um ditador resignado à solidão, resultado de sua ânsia em busca do poder absoluto, o que leva a bruscamente afastar sentimentos de solidariedade e amor. E, à falta destes, como num círculo vicioso, amplia-se sua solidão.  A narrativa de O outono do patriarca desenvolve-se através dos olhos de um ditador que vive, também exageradamente, entre 107 e 232 anos, descortinando a história do continente latino-americano durante mais de quatro séculos de colonização e a sucessão de várias intervenções de potências estrangeiras no país fictício. As imagens hiperbólicas e extremamente bem-humoradas desenham a história dos povos latino-americanos, desde o descobrimento da América. Um exemplo deste humor é a forma como culmina o despojo continuado que marca a história: com a venda do mar pelo patriarca, inusitada criação literária que concretiza a cena inesquecível do mar sendo levado pelos norte-americanos em peças numeradas, como se fosse um gigantesco quebra-cabeça. O outono do patriarca narra como, desde o começo do século XX, os Estados Unidos se tornara o “pai protetor” do país caribenho, em troca da exploração vitalícia do subsolo. A venda do mar simboliza assim a dependência absoluta, com o último recurso natural sendo entregue na tentativa de saldar a dívida externa, o auge do processo de expropriação que começara naquela “histórica sexta-feira de outubro”, quando o patriarca nota que todos os servidores de seu palácio usam bonés colorados, em alusão à chegada de Colombo na América.

Quem sabe O outono possa ser considerado um anti-Cem anos de solidão apenas porque nesse primeiro romance o povo, representado de certa maneira por várias gerações de uma família, por não ter consciência histórica e não saber amar, entra em decadência e é destruído. O outono do patriarca, por outro lado, embora no seu início mostre um povo temeroso e submisso, alienado por um sistema de repressão política e omissão ideológica de fatos históricos, um povo que receia festejar a morte do patriarca (narrada por cinco vezes, no começo de cada capítulo), por outro lado revela que este mesmo povo vai adquirindo sua autonomia, desenvolvendo uma identidade própria, uma consciência histórica. Assim, nota-se que dois processos contrários ocorrem simultaneamente em O outono do patriarca. O patriarca, devido aos persistentes esforços para reprimir e eliminar o passado, sofre um desgaste progressivo que o leva ao aniquilamento final e à morte física. O outro processo, paralelo, mas em direção oposta, é a gradual recuperação da memória coletiva, ou seja, é o povo que começa a aprender a resgatar o passado, sendo a junção de várias vozes individuais que se sucedem ao longo da obra. Percebe-se, então, que o povo, ao contrário de Cem anos de solidão, aparece como sujeito da história e o patriarca, que sempre lutara para manter o povo subalterno, é destruído.

Talvez García Márquez diga que não havia pretendido repetir a fórmula de O outono do patriarca porque o livro não foi tão bem recebido pelos leitores quanto Cem anos de solidão. O livro do ditador é escrito quase sem pontuação, e tal fato confundiu certos leitores acostumados às leituras mais  fáceis, já mastigadinhas. Eu considero muito adequada a “fórmula” de O outono do patriarca, um livro excepcional, onde a forma está muito de acordo com o conteúdo, ou seja, a narração já exemplifica o narrado, pois já te coloca imediatamente frente a um poder absoluto, intransponível, que  não apresenta brecha, nem mesmo a de pontuação.

IHU On-Line: Qual é a importância de Cem anos de solidão para o que se conheceu como “boom” na literatura hispano-americana na década de 1960, com a publicação de diversos autores, a exemplo de Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Vargas Llosa, Cabrera Infante e Alejo Carpentier?
Márcia Hoppe Navarro –
Cem anos de solidão foi publicado em 1967 e foi o livro mais lido do chamado “boom” (não gosto do termo, que significa explosão e parece que depois da explosão só restam os escombros) da Literatura Latino-americana. Penso que foi a partir de sua publicação e difusão que se começou a ver a literatura latino-americana  realmente como um conjunto. Embora os outros escritores sejam extremamente importantes neste conjunto e a publicação na década de 1960 de O jogo da amarelinha  por Cortázar , A morte de Artemio Cruz  por Fuentes , Batismo de Fogo , Conversa na Catedral  por Vargas Llosa , Três tristes tigres  por Cabrera  Infante, O século das luzes  por Carpentier , entre outros, foi um marco literário sem precedentes, penso que o romance de García Márquez foi a gota d’água que fez transbordar o copo. Ou seja, a partir daí não havia mais como negar o fenômeno chamado de “a nova narrativa latino-americana”.

IHU On-Line: Para o escritor peruano Mário Vargas Llosa, Cem anos de solidão “tem o mérito pouco comum de ser, simultaneamente, tradicional e moderno, americano e universal, volatiza as lúgubres afirmações de que o gênero (“realismo maravilhoso”) está em processo de extinção. Além de escrever um livro admirável, García Márquez – sem se haver proposto isso, talvez até por acaso – conseguiu restaurar uma filiação narrativa interrompida há séculos”. Poderia nos falar sobre essa filiação narrativa que García Márquez conseguiu reestabelecer em seus escritos?
Márcia Hoppe Navarro –
Vargas Llosa deve ter afirmado isso no livro que resultou de sua tese de doutorado na Universidade de Cambridge, García Márquez: História de um deicidio, onde ele estuda a obra de García Márquez. Imagino que seja a filiação narrativa desde os tempos da epopéia, não é? Mas García Márquez vai muito além: ele apresenta o tempo mítico, o tempo histórico e o tempo literário em Cem anos de solidão, cuja narrativa é construída a partir do modelo do ciclo cósmico: criação, desenvolvimento e destruição, centrando-se no povoado de Macondo e na história da família Buendía. No período da criação, o autor revela fatos sobre a fundação de Macondo, uma aldeia utopicamente feliz, onde imperava a absoluta igualdade entre os membros da comunidade. Era um mundo paradisíaco criado por José Arcadio Buendía, onde não havia desigualdade social, mas o tempo era a-histórico e nele coexistiam vários estágios da humanidade. Um acontecimento, no entanto, interrompe o reino da felicidade e do tempo mítico: uma peste de insônia, cuja terrível seqüela - o esquecimento - submergirá as vítimas numa espécie de “idiotice sem passado”. Melquíades, o cigano que escreve a história de Macondo em seus pergaminhos, cura, literal e literariamente, a peste, devolvendo a memória a seus habitantes.

Neste momento, depois da peste de insônia, Macondo entra para a história. Inicia-se aí o tempo histórico, e também os cem anos de solidão que consagram o título do romance, solidão no sentido político, como já mencionei acima, da incapacidade de amar, solidão como a falta de solidariedade que marcou o desenvolvimento da América Latina desde o início de sua história. Mas como a solidariedade social identifica a etapa inicial da história ficcional, aquele período logo após a fundação de Macondo não é contabilizado nos “cem anos”, que começam apenas na segunda parte. Nesta segunda parte, as características míticas do período inicial cedem lugar ao desenvolvimento histórico de uma sociedade latino-americana contemporânea e subdesenvolvida. É a partir de um baile organizado pela matriarca Úrsula que começa a distinção entre as classes sociais, antes inexistente no povoado. Daí para frente, o desenvolvimento histórico passa a se caracterizar por uma série de fatos desastrosos, guerras e massacres, que marcaram a história da Colômbia, de meados do século XIX a meados do século XX. Durante este período, em que a história é re-elaborada e adquire dimensões próprias do irreal e do imaginário, os personagens são incapazes de criar uma consciência histórica. Os Buendía aceitam passivamente o futuro como pré-determinado e tentam esquecer o passado. Vêem o mundo como um mero ciclo de repetições. Mas tal circularidade é ilusória, pois esconde, na realidade, a idéia da desintegração.

O objetivo primordial de García Márquez em Cem anos de solidão é demonstrar que a persistente alienação histórica dos povos submetidos ao subdesenvolvimento acarreta um gradual, mas irrefreável enfraquecimento da base cultural e desenraizamento dos valores populares. O ponto culminante desta rejeição do passado, e que sinaliza o início da destruição de Macondo, é o massacre dos trabalhadores da companhia bananeira. A cena construída cuidadosamente por García Márquez é um relato ficcional do assassinato em massa dos trabalhadores grevistas da United Fruit Company , em Ciénaga, na Colômbia, ocorrido em 6 de dezembro de 1928. Através deste episódio selecionado pelo autor para mostrar as conseqüências da dependência econômica, comprova-se a força da ficção ao isolar e dramatizar problemas fundamentais que representam a história da América Latina em sua totalidade. Depois do massacre, que seria negado e abafado da memória pública, o declínio se estabelece. À falta de consciência histórica se soma um dilúvio que dura quase cinco anos e uma seca de dez anos, calamidades que acabam por destruir Macondo.

Mas o significativo é que o ciclo cosmogônico não termina com a destruição, mas é ressuscitado pela literatura. Em conseqüência, a terceira parte do livro é de suma importância, pois a história se transforma, então, em literatura. É o livro que se narra a si mesmo, dentro de si mesmo. Ou seja, se na passagem da primeira à segunda parte o mito se transforma em história, na passagem da segunda à parte final, a história se transforma em literatura. Assim, mesmo se o último Aureliano e o que ainda resta de Macondo são destruídos por um furacão, um de seus amigos, Gabriel, consegue ir antes para Paris, onde através da escritura poderá reconstruir a história de uma família e de uma aldeia que, por não saberem amar, foram condenados a cem anos de solidão e à destruição final.

IHU On-Line: Pode ser notada uma influência das obras de Virginia Woolf no romance de García Márquez, no sentido da disposição e composição dos personagens, sobretudo femininas, visto que Mrs. Dalloway era uma de suas obras favoritas?
Márcia Hoppe Navarro –
Em uma longa entrevista a Plinio Apuleyo Mendoza ,  que resultou no livro El olor de la guayaba, García Márquez  realmente afirma  que seria um autor muito diferente do que é se, quando tinha vinte anos, não tivesse lido a seguinte frase em  Mrs. Dalloway : “Pero no había duda de que dentro (del coche) se sentaba algo grande: grandeza que pasaba, escondida, al alcance de las manos vulgares que por primera y última vez se encontraban tan cerca de la majestad de Inglaterra, el perdurable símbolo del Estado que los acuciosos arqueólogos habían de identificar en las excavaciones de las ruinas del tiempo, cuando Londres no fuera más que un camino cubierto de hierbas, y cuando las gentes que andaban por sus calles en aquella mañana de miércoles fueran apenas un montón de huesos con algunos anillos matrimoniales, revueltos con su propio polvo y con las emplomaduras de innumerables dientes cariados”. A frase é de Virginia Woolf, mas parece de García Márquez, sem dúvida. O que me parece uma pena, no entanto, é que a autora de Mrs. Dalloway e de Um teto todo seu , que influenciou toda uma geração de feministas, não tenha também influenciado García Márquez em outras dimensões, menos formais e mais políticas. Refiro-me à forma de representar as mulheres no universo narrativo de García Márquez, e principalmente em Cem anos de solidão. Nenhuma mulher participa da busca de conhecimento, nenhuma mulher compartilha as dimensões do imaginário e do intelectual. Elas ficam restritas ao ambiente doméstico, são mesquinhas como Amaranta, mantenedoras da tradição patriarcal como Úrsula, ou repressoras e retrógradas como Fernanda Del Carpio, ou são as amantes, as que providenciam sexo, como Pilar Ternera ou Petra Cotes. Da complexidade do ser humano do gênero feminino García Márquez extrai aspectos limitados e muito tradicionais para apresentar a mulher, sendo neste sentido totalmente diferente de personagens de Wirginia Woolf, como a própria Mrs. Dalloway, que, apesar de ser tão festeira quanto a última Amaranta Úrsula, é uma personagem complexa, densa, profunda. A mulher em Cem anos de solidão é caracterizada por aspectos relacionados ao corpo no seu sentido reprodutor (ser mãe é a “função” feminina por excelência, como tentam ensinar Amaranta e Úrsula à Remédios, a Bela), ou ao corpo como fonte de prazer sexual do homem. São apenas corpo, a busca epistemológica está interditada às personagens femininas criadas por García Márquez.
O escritor chileno Ariel Dorfman  menciona no último capítulo de um excelente livro de ensaios sobre a literatura latino-americana contemporânea, Some write to the future , que García Márquez lhe disse algo mais ou menos assim: que, ao escrever Cem anos de solidão, ele não poderia dar um futuro diferente ao que o povo havia, infelizmente, criado para si mesmo na América Latina, escrevendo sobre algo, inventando o que as próprias pessoas ainda não haviam construído para si mesmas. Explicaria essa afirmação, justificando a forma convencional, às vezes até machista, do autor colombiano apresentar suas personagens femininas? Não sei, talvez não. Para mim esta é uma questão polêmica sobre Cem anos de solidão, um dos seus únicos pontos fracos.

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