Edição 214 | 02 Abril 2007

James R. GAINES. Uma noite no palácio da razão, São Paulo: Record, 2007

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Sob o título “O conflito entre a razão e a fé”, Elias Thomé Saliba,  professor da USP e autor dos livros Raízes do riso e As utopias românticas, publicou no jornal O Estado de S. Paulo, 1-04-2007, o seguinte comentário.

Em 1747, o rei Frederico II , da Prússia - ainda jovem, caprichoso, impulsivo e provocador - e Johann Sebastian Bach - já um velho músico, com os seus 62 anos - se encontraram no palácio real, em Postdam, onde trabalhava o filho de Bach, Carl, então o principal cravista da orquestra real prussiana. Primeiro, Frederico deu a Bach uma figura musical longa e complexa e pediu ao velho mestre para fazer dela uma fuga a três vozes. (Que é o mesmo que dar uma salada de palavras a um poeta e pedir a ele que faça um soneto.) Bach apresentou o Tema Real, mas Frederico, do alto de sua arrogância, desafiou o músico a transformar o mesmo tema numa fuga para seis vozes. Todos reconheciam que, em termos musicais, o desafio era ridículo, não passando de um capricho malicioso de um rei que adorava humilhar filósofos e artistas. Diante dos músicos da corte - entre os quais, o próprio filho -, o velho músico respondeu que teria que trabalhar na partitura e enviá-la para o príncipe alguns dias depois. Voltou para Leipzig, e terminou, em 15 dias, a sua Oferenda Musical - uma das maiores obras de arte da história da música.

É este episódio fascinante, narrado em detalhes em Uma noite no palácio da razão, que serve de pretexto para James R. Gaines realizar uma primorosa reconstrução biográfica e histórica, na qual se entrecruzam dois destinos paralelos: o do músico que traduziu o divino em estruturas sonoras e o monarca que foi um dos maiores representantes do despotismo iluminista no século 18. Gaines realiza uma síntese surpreendente e acessível para uma tarefa bastante ingrata: refazer duas biografias para as quais dispomos de centenas de debates acadêmicos, mas pouquíssimas fontes realmente fidedignas.

Já denominado de 'o Grande', quando mal havia completado 5 anos, Frederico, teve sua personalidade moldada pelo pai - o mais truculento de toda a dinastia, que quase condenou seu filho à morte, quando este, aos 17 anos, foi preso e acusado de traição. Quando assumiu o poder, Frederico demonstrou um amor pelas questões militares e um brutalidade cínica e autoprotetora forjando o perfil de uma personalidade despótica - que através de uma diplomacia fraudulenta e ações militares incríveis, transformou a Prússia num poderoso reino. Proclamado por Voltaire como o 'rei-filósofo', sorveu parte da cultura iluminista diretamente na língua francesa: 'Eu converso em francês com os cavalheiros e em alemão com os cavalos', brincava o déspota prussiano.

Bach já representava a música de igreja e especialmente o 'contraponto erudito' de fuga e cânone - habilidade de séculos que, naquela época, tinha desenvolvido tantas teorias e procedimentos esotéricos que alguns de seus praticantes se viam como guardiães de uma arte quase divina, que os transformava em autênticos tecelões da sua própria tapeçaria cósmica. Já Frederico e os músicos de sua geração - incluindo o filho de Bach, Carl - desprezavam o contraponto como rebarba de uma estética gasta, enaltecendo o elemento prazeroso e fácil da canção, a ornamentação harmônica de uma única linha melódica - resumido no que foi chamado, na época, de 'estilo galante'.

Arnold Schoenberg interpretou o desafio de Frederico como um esquema malicioso para humilhar Bach, derrotando-o em seu próprio jogo. E considera que Bach deve ter acusado o golpe e reconhecido o truque maldoso, pois, o fato de ele chamar sua obra de Musikalisches Opfer é muito peculiar: 'A palavra alemã opfer tanto pode significar 'oferenda', como também 'sacrifício' ou 'vítima'.' Bach apenas fazia eco a um personagem do passado que era o seu modelo: Lutero, um homem cuja carreira inteira foi definida como um ato heróico de desobediência. Gaines explora esta veia interpretativa, complementando-a com inúmeros outros detalhes notáveis, extraídos da musicologia.

De qualquer forma, o desafiador encontro entre Frederico e Bach resumiu o agudo conflito entre o profano e o sagrado, a razão e a fé - que esteve no centro do debate cultural setecentista. E aos olhos de hoje, Frederico parece levar certa vantagem: a idéia de que o mundo não passa de uma máquina auto-suficiente parece confirmar-se na contemporânea cara-de-pau com quaisquer princípios transcendentes - que só aumenta a sensação de nossa época encontrar-se num insolúvel deserto ético. Bach já se aproxima daquela espécie de refugiado do 'tempo de Deus', completamente deslocado num mundo onde a religião pode ser ou inteiramente dispensada ou apenas limitar-se a uma visita semanal a um prédio. Um mundo sem nenhum sentido transcendente, desapegado do misterioso, do impalpável e do sublime. O que talvez explique porque a Oferenda Musical ainda provoque inspirações profundas, enlevos oníricos ou emoções nostálgicas em audiências tão distantes e longínquas do tempo de Bach e de Frederico.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição