Edição 214 | 02 Abril 2007

A propósito da “Notificação” sobre as obras de Jon Sobrino

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José González Faus, teólogo jesuíta espanhol, nos enviou e publicamos a seguir a nota do centro Cristianisme i Justicia de Barcelona. Eis a nota:

Conhecedores dos juízos da Congregação para a Doutrina da Fé sobre os livros do Pe. Jon Sobrino, sj.: Jesucristo liberador. Lectura histórico-religiosa de Jesús de Nazaret (Madri, 1991) e La fé em Jesucristo. Ensayo desde las victimas (San Salvador, 1999), queremos compartilhar com nossos amigos algumas primeiras reflexões, já que Jon Sobrino colaborou, desde sempre, estreitamente com nosso Centro de Estúdios Cristianisme i Justícia, e que uma dezena de membros de Cristianisme i Justícia foram ou são professores habituais de teologia no “Centro Monseñor Romero” da Universidade Centro-americana de El Salvador, que Jon Sobrino dirige.

1. Um documento da Congregação da fé não significa a desautorização total de um autor.

 Em tempos anteriores ao Vaticano II tiveram problemas com dita Congregação homens como H. de Lubac (mais tarde cardeal da santa Igreja e que respondeu à sua condenação com uma célebre Meditação sobre a Igreja), ou como Karl Rahner (o maior teólogo católico do século XX), ou Yves Congar , também nomeado cardeal, do qual João Paulo II proclamou que havia sido “um autêntico presente de Deus para a Igreja” (e que contou seus sofrimentos no livro Diário de um teólogo).

E, se remontarmos a períodos anteriores, poderíamos dizer o mesmo de grandes homens como Teilhard de Chardin , pioneiro no diálogo entre ciência e fé, ou o dominicano Lagrange, pioneiro da crítica bíblica no campo católico, que viu retiradas suas obras dos seminários e cujos posicionamentos foram logo assumidos (e superados) na Dei Verbum do Vaticano II, ou num documento da Comissão bíblica.

A lista seria interminável e poderíamos chegar até santa Teresa de Ávila que, por problemas com a Inquisição, morreu sem ver publicada a maioria de suas obras, denunciadas mais tarde repetidas vezes como próximas aos “iluminados” ou aos luteranos, e que, sem embargo, é hoje doutora da Igreja, declarada por Paulo VI.

Tudo isto são, no campo do pensamento e da linguagem, episódios mais normais do que parece. Inclusive no Novo Testamento há um aviso, da segunda carta de Pedro, sobre o apóstolo Paulo, em cujos escritos se diz: “há algumas coisas difíceis de entender, que pessoas ignorantes e superficiais deturpam para sua própria perdição” (2 Pe 3, 16).

Tudo isso nos faz ver que quando a Congregação da fé publica um documento, ela não pretende condenar uma pessoa, senão apenas avisar que naquele caminho há algum perigo, ou que não se pode girar para um lado, ou para o outro, quando se vai naquela direção. De fato, o Documento da Congregação da Fé não estabelece nenhuma proibição de ensinar para o Pe. Jon Sobrino, porém se apresenta somente como uma “Notificação” sobre algumas inexatidões de seus escritos. Nada mais.

2. Não é agora o momento para entrar em todo o conteúdo do extenso documento romano.

Pode, não obstante, chamar a atenção de muitos de nossos leitores a afirmação do número 2 de que, para o teólogo, não podem ser os pobres, nem a Igreja dos pobres o lugar da cristologia, mas que o teólogo “há de ter constantemente presente que a teologia é ciência da fé”. Talvez a Congregação tenha querido sublinhar a palavra “ciência”, porém isso não autoriza a pensar que ela quis minimizar a palavra “fé”, e sim propor que toda ciência (também a da fé) sirva para a vida. O sábio conselho inaciano de que “todo bom cristão há de ser mais pronto a salvar a proposição do próximo, do que a condená-la” (EE 22), nos impede de assim proceder.

Não se pretende, pois, desautorizar o Evangelho que proclama os pobres como “proprietários” desse Reino de Deus que constituía o anúncio de Jesus (Lc 6, 20) e que se convertem, portanto em “proprietários de Cristo”, para os que aceitem a opinião de alguns Padres que qualificavam Jesus como “o reino em pessoa” (a autobasileia em palavras de Orígenes), à qual alude o documento (n. 7).

A Congregação não pretende desautorizar a fonte da fé que é o Evangelho, e que proclama a ajuda ao irmão necessitado como lugar privilegiado do encontro com Deus, no que se decide a sorte definitiva do cristão (Mt 25, 31 ss.). A Congregação da fé não pretende negar isso, senão somente, como conclui o documento: “fazer notar aos fiéis a fecundidade de uma reflexão teológica que não teme desenvolver-se dentro do fluxo vital da tradição eclesial”. Este conselho deve ser atendido e acolhido.

E, precisamente neste fluxo vital da tradição encontramos afirmações como a de Inácio de Antioquia (já no século II), que desautoriza taxativamente todos aqueles que, por exaltar Cristo, se atrevem a negar sua “carne” (palavra que, no contexto antigo, não significa meramente a materialidade do corpo do Senhor, porém tem um sentido pejorativo, aludindo aos aspectos mais negativos e mais desprezíveis de nosso sermos homens). E o santo os condena porque, com este modo de pensar, “são contrários ao sentir do próprio Deus e não se preocupam com a solidariedade em favor dos débeis, nem com o fato, se um está aprisionado ou livre, faminto ou sedento”... (Carta à igreja de Esmirna, 6, 2).

Os Padres da Igreja, depois de proclamar que, através de Jesus Cristo, é como se nos revela Deus, acrescentam que, para conhecer Jesus Cristo, não podemos prescindir dos pobres, pois “eles nos representam a pessoa do Salvador, porque o Senhor, por sua bondade, lhes cedeu sua própria pessoa” (Gregório de Niça, Homilia sobre o amor aos pobres, PG 46, 460). Santo Inácio de Loyola nos dirá que “a amizade com os pobres nos faz amigos do Rei Eterno”. E santo Agostinho ainda acrescenta que o amor aos pobres não se reduz à mera esmola, pois esta nos pode levar a nos sentirmos superiores, enquanto o que busca o amor é “ser igual” (Comentário à 1ª Carta de João, VII, 5).

Efetivamente, a tradição cristã é um fluxo vital que jamais levará à infecundidade, salvo aos que a entendam num sentido imediatista, ou a utilizem, como denunciava Jesus de Nazaré, “como excusa para desrespeitar a vontade de Deus” (Mt 15, 3). Mas seria absurdo pressupor essas intenções num documento em que se pretende mostrar é que não tenhamos temor da Tradição.

3. Em circunstâncias que podem ser, para muitos, fonte de sofrimento e até de escândalo, move-nos a fazer estas reflexões o mandato do profeta bíblico: “Consolai o meu povo, diz o Senhor”.

João Paulo II reclamou muitas vezes audácia para a teologia e nos exortou a considerar como normais esse tipo de conflitos, dada a limitação da linguagem humana. Cremos, pois, que nada do aqui dito está em contradição com o documento da Congregação da fé.

Se nos pode ser permitida uma palavra crítica, teríamos que falar, não do texto, senão de seu contexto. Pois há um dado que nos parece suficientemente garantido, dados seus informadores, a expressão de um cardeal da Cúria faz poucos meses: “antes de Aparecida (conferência do CELAM nesta cidade do Brasil) já não sobrará nenhum teólogo da libertação”.

Sentiríamos muito se o documento que comentamos o convertessem alguns em argumento para dar, à reunião do CELAM em Aparecida, uma orientação contrária à tradição dessas assembléias, em Medellín e Puebla. E desejaríamos que alguns componentes da cúria romana sejam mais respeitosos com a discrição que impõe sua responsabilidade. Somente isto.

4. Agradecemos que o documento da Congregação da fé, tal como aparece hoje, não contenha, além dessas precisões, nenhuma sanção ou proibição de escrever para o Pe. Sobrino.

Por isso, nos sentimos autorizados a também declarar publicamente que, se essas sanções se produzissem mais tarde, com a excusa deste documento, parece-nos que seriam injustas e antievangélicas. Pois ao magistério da Igreja (como a todo magistério, porém em grau superior) compete ensinar positivamente, mais do que o mero proibir.

E porque, como é sabido, Jon Sobrino tem sido um impressionante testemunho da fé para muita gente simples que será gratuitamente escandalizada por esse tipo de violência. E é também (de fato e porque teve a sorte de estar fora de El Salvador quando lhe houvesse tocado morrer), testemunha de milhares de vítimas da violência estabelecida na América Latina, muitos deles merecedores do título de mártires, porque morreram pelo ódio que sua fé suscitava, e que sua caridade heróica punha em evidência.

Apelando à Tradição, pode ser bom recordar como a igreja primitiva venerava os chamados “confessores” (ou pessoas que haviam sofrido o martírio sem chegar a morrer nele). Embora alguns daqueles “confessores” haviam formulado, por vezes, a fé de maneira um tanto desfocada. Porém neles se fez verdade que o Espírito pode dar vida àquilo que, como mera letra, poderia não o ter.

5. Sentir-se hoje Igreja.

Um documento como este é um fato que nós cristãos temos que receber como uma realidade dolorosa que faz parte de nossa vida na Igreja. Portanto, como ele afeta a muitos de nós, é uma ocasião para reflexionar sobre o que significa “sentir-se igreja”.

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