Edição 212 | 19 Março 2007

“O rock identifica o século XX, assim como o Minueto identificou o século XVIII e a Valsa o XIX”

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Nem tudo são rosas em relação ao rock.

Graduada em Música pela Universidade Federal de Uberlândia, a professora Cristina Capparelli faz, na entrevista que segue, algumas críticas ao estilo que buscamos debater na edição desta semana.  “O que é replicado à exaustão, sem elaboração, tende a tornar-se banalizado ainda que facilmente absorvido pela comunidade”, afirma a Profa. Cristina Capparelli Gerling. Segundo ela, “o que reconhecemos genericamente como rock constitui-se em uma série de padrões quase que imutáveis do ponto de vista de ritmo e seqüências de acordes (que me perdoem os roqueiros de plantão), e o núcleo da estrutura se mantém inalterado nas últimas décadas”. “O rock identifica o século XX assim como o Minueto identificou o século XVIII e a Valsa o XIX”, constata a professora.
Capparelli recebeu o grau de Master of Music da New England Conservatory e de Doctor of Musical Arts da Boston University. Atualmente, ela é professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde orienta trabalhos de mestrado e doutorado. Pianista com CDs gravados e intensa atividade artística, desenvolve um trabalho com o repertório latino-americano que reúne os seguintes temas: análise musical, compositores brasileiros e latino-americanos e execução instrumental. Como coordenadora de grupo de pesquisa, os resultados parciais podem ser obtidos no site www.ufrgs.br/gppi. Confira, a seguir, a entrevista que a professora concedeu, por e-mail, para a IHU On-Line.

IHU On-Line - Qual a principal crítica que você faria ao rock enquanto estilo musical?
Cristina Capparelli
- Em qualquer estilo musical, existe um nível de elaboração mais elevado e sofisticado ou mais nivelado em direção ao banal, ou mesmo vulgar. O que permite que um estilo seja reconhecido é aquilo que é identificado e replicado. Do ponto de vista da musicologia, especificamente da análise musical, o que é replicado à exaustão, sem elaboração, tende a tornar-se banalizado ainda que facilmente absorvido pela comunidade. O que reconhecemos genericamente como rock constitui-se em uma série de padrões quase que imutáveis do ponto de vista de ritmo e seqüências de acordes (que me perdoem os roqueiros de plantão), e o núcleo da estrutura se mantém inalterado nas últimas décadas. Daí dois aspectos a serem ressaltados. O primeiro é que uma banda se diferencia da outra por ornamentações e variações desse padrão (algumas conseguem ser bem sofisticadas). O segundo é que se mudar demais deixa de ser rock. E não queremos isso. O rock identifica o século XX assim como o Minueto identificou o século XVIII e a Valsa o XIX.

IHU On-Line - Quais as deficiências do rock, musicalmente falando?
Cristina Capparelli
- Não vejo deficiência alguma no rock porque ele, nas suas inúmeras vertentes, não existe fora das comunidades que o praticam. Então a pergunta é: “que tipo de formação, de educação de gosto musical, propicia que certas vertentes de rock façam sucesso com certos grupos e não com outros?” Por exemplo, na minha infância vi o surgimento de Elvis Presley  e na adolescência vibrei com cada disco do Beatles e Rolling Stones . Era muito requisitada para "tocar de ouvido" para meus amigos, certamente porque tinha acesso ao idioma inglês e "curtia" a linguagem dessa época. Devo dizer que mesmo sendo "vidrada" nesse rock "clássico", só o cultivo em mínimas doses, porque o nível de saturação é atingido rapidamente. Resumindo, o rock é baseado em um sistema de repetições e isso o define como gênero, o que não pode ser entendido como deficiência, pois é característica essencial dele. Cada banda manipula esse conceito de forma a adquirir identidade própria, apesar da base comum.

IHU On-Line - O que o rock traz que os outros estilos deixam a desejar?
Cristina Capparelli
- Dando continuidade, mais adiante o rock foi ficando "da pesada" e fui me distanciando. Deixei até mesmo de identificar as bandas que surgiam em profusão. O problema é o distanciamento pessoal, uma reconfiguração do gosto e a venda maciça de bandas dos anos 1960 e 1970 mostram que para uma imensa faixa da população não havia nada a desejar, ou seja, cada grupo novo preenchia os desejos de uma nova fatia do mercado. Para mim, o excesso de repetição dos padrões foi produzindo um cansaço. Ao ouvir o início, já poderia prever o encaminhamento e isso mata a expectativa. Enfatizo que a questão relaciona-se ao meu gosto musical pessoal, gosto este que não pode ser imposto a ninguém mais. Por exemplo, minha filhas sempre cultivaram um gosto totalmente eclético, que passava por todas as bandas de rock do momento, pelas antigas, e abrangiam ainda bossa nova, MPB, funk, Zeca Pagodinho  e Beethoven . Então, para elas, nada a desejar, a variedade de escolha sempre foi o atrativo.
 
IHU On-Line - Qual o papel do rock na sociedade contemporânea? Ele ainda tem lugar? Ainda é atual?
Cristina Capparelli
- A revolução do rock teve início por volta de 1956 e, de súbito, o mundo foi inundado por adolescentes que cantavam de uma maneira completamente diferente. Eu estava lá, mesmo sem TV, tomei conhecimento, meu tio comprava todos os discos (78, 45 e 33) e a gente passava tardes dançando ao som de Jerry Lee Lewis  e outros famosos da época. Depois vieram os roqueiros brasileiros... Creio que os adolescentes de hoje fazem o mesmo, espero que com os ídolos de agora. A diferença é que o surgimento do rock foi algo espetacular. Hoje não tem o mesmo sabor, é requentado. Por mais que se queira, essa roda foi inventada na década de 1950 e trouxe uma incrível liberação e mudança de costumes. O positivo é que as letras de música no Brasil têm um certo charme.

IHU On-Line - Os adolescentes de hoje gostam de rock?
Cristina Capparelli
– Sim, gostam, mas como tudo que está vivo envolve, as influências são inúmeras e variadíssimas. Não saberia identificar quantos tipos de rock existem hoje e quantas tribos acolhem essa diversidade. Creio que o cultivo de diferentes estilos é muito positivo, mostra vitalidade.

IHU On-Line - O rock sofreu alterações ao longo dos anos? 
Cristina Capparelli
- Claro, né? Todos os tipos de rock estão vivos e alguns sofrem mutações. No entanto, como o estudo de música no Brasil é muito restrito e a educação musical não é acessível nas escolas, fica parecendo que o que está acontecendo agora é uma grande novidade. Curiosamente, há mais de trinta anos, fiz uma classe de música popular, e já naquela época o fenômeno rock não só era tratado de forma séria, mas já se tinha ótima idéia da complexidade de sua propagação e da diversidade gerada na sua absorção em diferentes partes do planeta.

IHU On-Line - E como se dá essa mudança em relação ao perfil do roqueiro?
Cristina Capparelli
- De maneira geral, qualquer artista de qualquer tipo de música sempre buscou sucesso, reconhecimento, fama e situação financeira privilegiada. Da mesma forma no rock, existem grupos que querem o reconhecimento do público e a venda de números incríveis de discos, shows etc.

IHU On-Line - O rock ainda é instrumento de contestação em relação ao sistema vigente?
Cristina Capparelli
- Existem grupos que iniciaram como contestadores e caíram no conformismo (acho tragicômico ver roqueiros sessentões e barrigudos, ainda tentando passar por guris descolados). A questão da droga complica bastante, o que está sendo contestado... Por outro lado, acho muito positiva a atitude de artistas famosos, cuja origem foi o pop e o rock, hoje se dedicarem a causas humanitárias.

IHU On-Line - Concorda com Humberto Gessinger, quando ele diz que "agora rock ‘n’ roll é sinônimo de propaganda de refrigerantes"?
Cristina Capparelli
- A música é uma atividade absolutamente inseparável da sociedade que a cria. Em uma sociedade de consumo, a música vira acessório indispensável para vender seja lá o que for, inclusive refrigerante, porque não? Espero que paguem muito bem o roqueiro de plantão que faz o jingle, ou o videoclipe...

IHU On-Line - É possível estabelecer alguma relação entre o rock e a música clássica/ erudita?
Cristina Capparelli
- Como disse no início, trata-se de processos de elaboração. O rock baseia-se em padrões que por sua natureza intrínseca precisam ser imediatamente reconhecidos, absorvidos e replicados. Já na música clássica ou erudita, compositores buscam processos de elaboração menos óbvios, mais variados, menos perceptíveis ao ouvido inocente. Por outro lado, o gosto musical é resultado da convivência, do hábito, da familiaridade. Não existe impedimento para o gosto musical, seja qual for. O que existe são tabus estúpidos a respeito deste ou daquele gênero. A educação musical, no sentido amplo, busca a compreensão e a apreciação de todas as músicas praticadas pelo ser humano sem barreira nem preconceito. A música é o produto mais deslumbrante, complexo e atrativo que nós, humanos, produzimos. Viva a diferença!

 

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