Edição 536 | 13 Mai 2019

Uma ideia de duplicidade

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João Ladeira

Vidas Duplas importa não por duas ou três discussões supostamente inteligentes, mas graças a algo que existe no que se vê, e não naquilo que é dito.

“Novamente, Assayas reflete sobre certos problemas enquanto observamos a sua elaboração cinematográfica, transformando uma proposição e a sua visualização num ato simultâneo. Afinal, ao se falar sobre dualidades, vemos essa duplicação na própria imagem”, escreve João Ladeira.

 

Vidas duplas (sinopse): Alain é um bem-sucedido editor parisiense com dificuldade em se adaptar à revolução digital. Ele tem grandes dúvidas sobre o novo manuscrito de Léonard, um de seus autores de longa data, que lançará um trabalho de autoficção, reciclando seu caso de amor com uma celebridade. Selena, a esposa de Alain, famosa atriz de teatro, é de opinião contrária e elogia a publicação.

João Ladeira é professor na Universidade Federal do Paraná – UFPR.

Eis a crítica.

Não foi assim tão explícito, mas a crítica pareceu tentada a considerar um tanto frívolos os dilemas de Vidas Duplas (Doubles vies, 2018, de Olivier Assayas). Alguns quase o acusaram de mais parecer uma palestra do TED, nas suas infinitas digressões sobre o futuro do digital, as tendências do contemporâneo, o destino das mídias ou coisa que o valha.

São problemas dignos das estantes sobre “economia criativa”. Porém, se fosse apenas isso, não se trataria de um trabalho de Assayas, mas de algo com melhor espaço em algum canto da Netflix. Aqui, importa uma ideia que perpassa a obra, exatamente essa evocação sobre a “duplicidade” da qual o título nos fala.

Sim, pois os personagens parecem viver em mais de um mundo. Novamente, Assayas reflete sobre certos problemas enquanto observamos a sua elaboração cinematográfica, transformando uma proposição e a sua visualização num ato simultâneo. Afinal, ao se falar sobre dualidades, vemos essa duplicação na própria imagem.

Baseado em Fatos Reais?

A todo momento, cada personagem se mostra mais de uma coisa. Tudo depende do contexto no qual se insere. Alguém se comporta como o marido de outrem apenas para, depois, revelar-se o amante de outro. É o caso do triângulo entre Selena (Juliette Binoche), Léonard (Vincent Macaigne) e Alain (Guillaume Canet), ele que tem um caso com Laure (Christa Théret).

Todavia, se fosse apenas isso, estaríamos frente a uma história de adultérios, tema bem insosso. Aqui, importam as múltiplas posições que cada um encarna. Frente a Léonard, Alain se revela um tanto cínico em relação à editora, ao livro e ao seu próprio ofício. Mas, quando discute com Laure, adquire um ar lacônico, zeloso por um mundo letrado prestes a ruir.

O mesmo ocorre na autoficção de Léonard, apropriando-se de seu affair para transformá-lo em livro. Ele já havia duplicado a própria trajetória no romance que Alain decide não publicar, caminho que insiste em seguir também no seu material ainda em preparação. Foi perspicaz o título de Vidas Duplas no mercado norte-americano: Non-Fiction.

O novo livro vai custar o afeto de Selena, que ele arrisca a despeito dos alertas. A falsa narrativa verdadeira parece tão sem motivação quanto o próprio ato que a torna possível. Parece difícil entender essa traição de Léonard dentro do próprio adultério, e o mesmo se repete com praticamente todos os outros atos em curso.

Afinal, não existe qualquer indício de que falte afeto no casamento entre o editor e sua esposa e nem no vínculo entre tal mulher e o escritor. As razões em pauta residem apenas na chance aberta para se experimentar essas outras vidas. São fatos que ocorrem em universos distintos, a fim de explorar uma ideia sem grande pretensão de verossimilhança.

Apenas um espelho

É curiosa essa exploração da duplicidade através do próprio cinema. Assayas iniciou essa experiência em Irma Vep (1996), seu filme sobre um filme, e seu exercício mais recente foi Acima das Nuvens (Clouds of Sils Maria, 2014). Vidas Duplas é um belo filme sobre "como é possível escrever" do mesmo modo que Acima das Nuvens perguntava "como se pode atuar".

Pois, em 2014, Binoche encarnava uma atriz em meio ao trabalho de construir uma personagem, e isso tornava tudo o que víamos apenas um pretexto para acompanhar a própria encenação. Curiosamente, algo semelhante ocorreu em seus trabalhos nos quais menos se esperava um efeito como esse.

Afinal, Carlos (2010), epopeia da ascensão e queda de um terrorista pop-star, não se referiria a um evento com a mesma estrutura de thriller que estamos assistindo? E como encarar Depois de Maio (Après mai, 2012), essa pretensa autobiografia sobre a formação de um cineasta – o próprio Assayas – que, na verdade, versa sobre a política de um tempo menosprezado?

Em ambos, um espelho. Mas voltemos a 2018. Cada uma dessas vidas bem poderia implicar uma escolha cedo ou tarde indispensável. Contudo, tudo vem sem grandes dificuldades nessa comédia. Sim, porque tal filme é uma comédia, uma na qual os amantes esgotam seus laços uns com os outros, entrando sem maiores danos em novos giros.

Dilemas cômicos
Parece difícil crer que o diretor de Água Fria (L'eau froide, 1994), leitor de Orwell e discípulo de Debord se interesse muito por Woody Allen. Mas uma comédia sobre casais e suas traições conduz imediatamente a uma comparação desse tipo. Assayas é um tipo de camaleão, e tal elo não parece absurdo para um diretor que já adotou tantos estilos.

Mas há uma diferença fundamental. Para Woody, uma escolha nunca é uma questão menor. Cada decisão convive com a possibilidade de abrir dois mundos distintos, de rachar o equilíbrio que até então se encontrava mais ou menos instituído. Seus desdobramentos levam os personagens para lugares muito distantes, longe de onde então se encontravam.

Dessa viagem, eles jamais retornarão. Woody nos fez rir e também chorar com essa sensação, mas, aqui, o efeito parece menos dramático e mais intelectual. Há uma questão nesse filme que é conceitual, como já ocorreu em boa parte da obra de Assayas: essa revelação que o cinema oferece, em sua delicada alusão a um mundo reformulado pela imagem.

 

Ficha Técnica
Título original: Doubles vies
Ano: 2019 (1h 47min)
Direção: Olivier Assayas
Elenco: Guillaume Canet, Juliette Binoche, Vincent Macaigne mais
Gêneros: Comédia, Romance
Nacionalidade: França

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