Edição 535 | 29 Abril 2019

China impulsiona o continente asiático na “maratona” pela hegemonia

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Wagner Fernandes de Azevedo

Para Marcos Pires, a China pode se tornar o “epicentro da região de maior dinamismo econômico no mundo”, mas para uma hegemonia mundial existem etapas a percorrer

Em apenas 20 anos, a China desenvolveu uma política econômica que alavancou o Estado para disputar a liderança dos mercados no mundo. A região do sudeste asiático é estratégica para consolidar e espalhar a relevância dos projetos chineses pelo mundo. Para Marcos Cordeiro Pires, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o principal projeto chinês, a Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Iniciative), pode “colocar a China como o epicentro da região de maior dinamismo econômico no mundo”.

Esse crescimento acende aos olhos do Ocidente uma luz de alerta, embora para a China a estabilidade das relações internacionais seja “condição essencial para o seu projeto de desenvolvimento econômico”. Pires destaca que os EUA, ao travarem uma guerra comercial, pretendiam “conter o crescimento chinês”, mas a atual conjuntura pode resultar em dois cenários extremos: “A Armadilha de Tucídides, desembocando em uma guerra; ou um ‘Mundo Harmonioso’, como definem os chineses, de cooperação para enfrentar os desafios globais”.

Enquanto a disputa global depende de várias etapas – “é uma maratona e não uma corrida de tiro” –, a Ásia, que já “foi o centro da economia mundial até o começo do século XIX”, faz a sua retomada depois de ser levada “a uma situação catastrófica” devido a “um século de imperialismo europeu”. Hoje, sete das 15 maiores economias do mundo estão no continente. Para Pires, a China se consolida hoje como “o motor da economia da região”.

Marcos Cordeiro Pires possui graduação em História, mestrado em História Econômica, doutorado em História Econômica, todos pela Universidade de São Paulo - USP, e livre docência em Economia Política Internacional pela Universidade Estadual Paulista - Unesp. É professor na Unesp – Faculdade de Filosofia e Ciências – Campus de Marília, nos cursos de graduação em Relações Internacionais e pós-graduação em Ciências Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais "San Tiago Dantas" – Unesp, PUC-SP e Unicamp.

Marcos Cordeiro Pires proferirá a palestra Século XXI. O século da China e da Ásia, atividade que compõe o Ciclo de Estudos A China e o mundo – A (re)configuração geopolítica global, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos, que ocorre no dia 07-05-2019, das 8h30min às 17h30min na Unisinos Campus Porto Alegre, e encerra às 19h30min às 22h na Unisinos Campus São Leopoldo, com a palestra Do BRICS ao RIC. Desafios ao Brasil e ao mundo frente a uma nova geopolítica global, com o Prof. Dr. José Eustáquio Diniz Alves.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Quais semelhanças e diferenças nos processos de urbanização da China e do Brasil são cruciais para entender o crescimento e o desenvolvimento econômico de cada país?

Marcos Cordeiro Pires — Creio que para compreender os rumos discrepantes entre Brasil e China seja necessário observar a atuação de cada Estado na conformação de seus processos de crescimento econômico. Nesse sentido, reforma agrária é uma variável que deve ser observada com atenção. Ao distribuir terras para os camponeses, o governo chinês criou um colchão de estabilidade social que garantiu condições básicas para a sobrevivência de 80% da população e criou os meios para o seu processo de industrialização.

Quando se iniciou o processo de Reforma e Abertura , em 1978, o deslocamento campo-cidade ocorreu de forma organizada, em grande parte devido ao sistema de registro domiciliar, o Hukou , que limitava a migração desenfreada. Esta ocorreu de forma paulatina na medida em que a indústria demandava novos trabalhadores e possibilitou que as cidades se organizassem para oferecer condições sociais adequadas aos novos habitantes.

No Brasil, assim como na maior parte da América Latina, os processos de industrialização ocorreram sem planejamento e tampouco com a adoção de políticas de reforma agrária, deixando a população rural à míngua. Na medida em que os salários e a oferta de serviços públicos aumentavam nas áreas urbanas, os trabalhadores avulsos, meieiros e pequenos sitiantes, sem conseguir sobreviver adequadamente no campo, migraram sem controle para as grandes cidades. Isso explica a ocorrência de cinturões de miséria em todas as grandes cidades brasileiras. É justamente nessas áreas onde prolifera a pobreza, a violência, inadequada oferta de transporte e os piores indicadores de saúde e escolaridade.

Ao confrontar a estrutura de cidades como Pequim, Wuhan ou Xangai e São Paulo, Rio de Janeiro ou o Distrito Federal, vemos estampados nas suas ruas a organização e o progresso nas primeiras e o fracasso e a desorganização urbana das segundas.

IHU On-Line — É correto afirmar que o crescimento chinês impulsiona o crescimento do continente asiático?

Marcos Cordeiro Pires — A resposta é afirmativa, mas antes é preciso considerar que a própria China ingressou no processo de globalização ao se ajustar às cadeias de valor estruturadas pelos Estados Unidos, Europa Ocidental e pelo Japão no começo da década de 1980.

Nesse período, a China escalou os diversos degraus da agregação de valor, começando com atividades de baixa produtividade e intensivas em mão de obra, como têxteis, confecções, calçados e brinquedos, passando pela subcontratação de diversos componentes e bens de consumo, até atingir o atual estágio de criador de novas tecnologias e de marcas próprias.

Hoje a China se estabeleceu como o motor da economia da Ásia. As estatísticas de comércio mostram que a China é o maior parceiro comercial para a maior parte dos países da Asean assim como para Japão, Índia, Coreia do Sul e Taiwan. Para além das questões comerciais, é importante observar o papel desempenhado pela Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Iniciative), que vem construindo grandes projetos de infraestrutura na Ásia Central (Cinturão) e no Oceano Índico (Rota marítima) até a costa oriental da África. O sucesso dessa iniciativa irá colocar a China como o epicentro da região de maior dinamismo econômico no mundo.

IHU On-Line — Qual é o limite a que a economia chinesa pode chegar, dadas as suas contradições internas?

Marcos Cordeiro Pires — É difícil responder a esta questão, pois as variáveis a se considerar são inúmeras. Mas uma questão é evidente: o sistema político chinês confere um maior grau de autonomia ao Estado para manejar as principais variáveis socioeconômicas do que em países onde vigora sistema de competição eleitoral.

Adicionalmente, é preciso considerar o grau de coesão que se verifica na própria sociedade chinesa, que confere grande legitimidade política ao Partido Comunista, cujo principal mérito está sendo o de retirar um país da desorganização social herdada do colonialismo e colocá-lo como a segunda maior economia do mundo (ou a primeira, se considerarmos a paridade de poder de compra).

IHU On-Line — Qual é o limite que as relações internacionais, isto é, conflitos e/ou cooperação com outros países, apresentam ao crescimento chinês?

Marcos Cordeiro Pires — O governo da China considera a estabilidade das relações internacionais como condição essencial para o seu projeto de desenvolvimento econômico.

O país não é desafiante da ordem liderada pelos Estados Unidos, mas busca a sua democratização focando o tema da multipolaridade e, ao mesmo tempo, busca um papel internacional condizente com as suas capacidades materiais. Não interessa aos chineses uma disputa hegemônica e nem iniciar uma corrida armamentista como ocorreu durante a Guerra Fria. Porém esta não é uma variável que os chineses controlam, pois muito dessa estabilidade depende de como a elite dos Estados Unidos irá lidar com a ascensão de uma nova potência que poderá lhe fazer sombra.

Nesse sentido, a guerra comercial iniciada pelo governo de Donald Trump parece ser parte de uma estratégia maior de contenção da China, não apenas em termos econômicos, mas também em termos tecnológicos e, por consequência, militares. No entanto, há variáveis novas a serem consideradas, pois a China também é uma potência nuclear, também está pareando com os Estados Unidos em termos tecnológicos e, diferentemente da antiga União Soviética, está umbilicalmente ligada à economia mundial.

Concluindo, para a China, ao invés da confrontação, é mais importante uma acomodação nos termos de um Novo Modelo de Relacionamento entre as Grandes Potências, que preze mais pela cooperação, algo que envolve não apenas os Estados Unidos, mas a Rússia, a União Europeia, o Japão e a Índia.

IHU On-Line — Diante do enfrentamento comercial de China e EUA, quais os cenários possíveis nas relações entre os dois países? Seria possível um reordenamento da economia internacional em uma disputa por zonas de influências entre esses países, ou como alguns analistas sugerem, uma Nova Guerra Fria?

Marcos Cordeiro Pires — Tal como mencionei na resposta anterior, há muitas indefinições sobre o futuro das relações internacionais, em geral, e das relações China-Estados Unidos. Há dois cenários extremos nas quais a nova ordem pode se conformar:

O primeiro seria o da “Armadilha de Tucídides ”, tal como o define Graham Allisson , em que Estados Unidos, a potência estabelecida, iriam confrontar a potência em ascensão, a China, desembocando numa guerra, não apenas “fria”.

Do outro, o “Mundo Harmonioso”, como definem os chineses, em que a confrontação seria substituída pela cooperação para enfrentar os inúmeros desafios globais, como a crise ambiental, a pobreza, o terrorismo e outras ameaças.

Em meio a isso, se colocam os inúmeros interesses econômicos e políticos que podem amenizar as diferenças entre as percepções de cada ator nesse complexo cenário.

IHU On-Line — Qual a projeção de crescimento do continente asiático? Quais são os principais motores da economia asiática?

Marcos Cordeiro Pires — Se olharmos em perspectiva histórica, tal como indicam as estimativas de Angus Maddison , a Ásia foi o centro da economia mundial até o começo do século XIX. Então, China e Índia concentravam mais de 50% da economia mundial. Um século de imperialismo europeu na região levou o continente asiático a uma situação catastrófica.

A China, por exemplo, viu seu PIB se reduzir de 30%, em 1820, para menos de 5%, em 1950. Naquela década, a maior parte dos países da região ainda ressentia dos traumas dos processos de descolonização e arduamente iniciaram políticas para a reconstrução nacional. Isso sem mencionar a destruição e a ocupação dos Estados Unidos no Japão.

Em 2018, das 15 maiores economias do mundo, em paridade de poder de compra, sete são asiáticas: China, Índia, Japão, Rússia, Indonésia, Turquia e Coreia do Sul. A título de exemplo, a Indonésia superou o PIB brasileiro e o Vietnã já exporta mais do que nós. A região conta com amplos recursos naturais, um imenso mercado interno, crescente capacitação tecnológica, maior integração e ainda, para a maior parte dos países, estratégias nacionais de desenvolvimento.

Outro indicador interessante é o “Financial Times Top 100 Global Brands, 2018”, que lista 21 marcas asiáticas entre as 100 marcas mais valiosas do mundo, das quais 14 são chinesas. Isso é um feito importante, já que 20 anos atrás a China não constava dessa relação.

IHU On-Line — Uma obra de grande relevância para compreender o crescimento chinês é “Adam Smith em Pequim”, de Giovanni Arrighi . Nela, Arrighi busca explicar a transição do Ciclo de Acumulação para o Leste Asiático, tendo a China como um centro gravitacional. Uma década depois da publicação do livro, que evidências podemos compreender dessa transição da hegemonia norte-americana para a chinesa?

Marcos Cordeiro Pires — Como se sabe, o capitalismo busca mercantilizar todos os aspectos da vida material e também busca ocupar o maior espaço possível. O capital sempre se movimenta em busca de oportunidades de lucro. Assim, tanto a China em 1978, como a ex-União Soviética, a Índia ou o Vietnã, em 1991, se constituíram novos espaços para a expansão do capital.

Em princípio, a China foi incorporada apenas como espaço para a obtenção de vantagens comparativas. Posteriormente, na medida em que avançava em seus processos de industrialização e agregação de valor, passou também a ser um polo de acumulação de capitais e um grande mercado consumidor para as empresas multinacionais. Mantidas as tendências atuais, em que o país asiático cresce duas vezes mais rápido que os Estados Unidos, é uma questão de tempo para que se torne a maior economia do mundo. Entretanto, ser grande economicamente é muito importante, é uma condição necessária mas não suficiente para garantir a hegemonia mundial.

Os EUA ainda possuem o maior arsenal militar, a liderança tecnológica e científica em diversos campos, a base do sistema financeiro internacional e, não menos importante, a hegemonia cultural do mundo. Assim, para que a China assuma a liderança há ainda muitas etapas para percorrer. É uma maratona, não uma corrida de tiro.

IHU On-Line — Alguns autores projetam o século XXI como o século asiático. O senhor concorda com essas projeções? Elas se expressam em números absolutos, isto é, pelo crescimento constante da economia da região, ou relativos, devido ao enfraquecimento das economias ocidentais?

Marcos Cordeiro Pires — Creio que já respondi essa questão anteriormente, mas gostaria de acrescentar duas informações.

Em primeiro lugar, a opção das empresas multinacionais do Ocidente de buscar baixos salários e outras vantagens comparativas nas economias asiáticas se baseava em premissas estanques, como a de que se cristalizaria uma divisão internacional do trabalho em que o Ocidente criava tecnologia, design e marcas e a China, por exemplo, se conformaria com as externalidades de ser a ‘fábrica do mundo’, sendo essas sociais e ambientais.

No entanto, ao fazer uma leitura correta do processo de globalização, a China soube tirar vantagem de uma posição originalmente subalterna, como já frisamos. A sua renda per capita está se elevando e também está emergindo uma classe de consumidores similar aos dos países mais ricos.

Em segundo lugar, houve um erro de percepção sobre as implicações de longo prazo acerca da globalização por parte dos países ocidentais avançados. Ao deslocar ou terceirizar suas empresas e empregos, as elites desses países imaginavam que sua população trabalhadora se ajustaria em empregos de baixa produtividade no setor de serviços, já que os empregos criativos e de alta qualificação seriam poucos frente à grande massa de deslocados. Isto não aconteceu, gerando um forte descontentamento social com a perda de poder aquisitivo e status social. Tal situação tem piorado nos últimos anos com os impactos disruptivos da Quarta Revolução Industrial, que está precarizando ainda mais um mercado de trabalho já saturado e concentrando a renda a níveis similares ao feudalismo (ou talvez piores, já que o camponês dispunha ao menos de um pedaço de terra para lavrar).

Este mal-estar acabou se refletindo no cenário político, com a emergência de políticos xenófobos, nacionalistas e, por consequência, protecionistas, colocando em xeque este processo de globalização em que os países ricos estão perdendo as rédeas.

IHU On-Line — Qual a relevância da economia brasileira diante desse cenário? A retórica ofensiva à China, pronunciada pelo atual governo, é prejudicial para a ascensão do país no Sistema Internacional?

Marcos Cordeiro Pires — Infelizmente, para nós brasileiros, o lugar da economia brasileira no cenário internacional continuará a ser periférico por muitos anos, baseando nossa inserção na exportação de bens intensivos em terra, água e irradiação solar. Além disso, estamos longe das cadeias industriais de agregação de valor, não investimos suficientemente em Ciência, Tecnologia & Inovação, não possuímos marcas com prestígio mundial e, o que é pior: não temos uma estratégia nacional e tampouco elites que compreendam as potencialidades de nosso país.

A primarização da pauta exportadora e a diminuição da participação da indústria de transformação no PIB são notícias desalentadoras. Adicionalmente, as opções políticas e as estratégias econômicas anunciadas pelas novas autoridades brasileiras não indicam a reversão dessas tendências. Pelo contrário, ao considerar a política externa vocalizada pelo Ernesto Araújo , atual chanceler. É preciso lembrar que países não possuem amigos, mas interesses. Por conta disso, dado o perfil de nossa inserção internacional, é do interesse do Brasil se posicionar de forma pragmática e não dogmática, tal como fizeram no passado outros presidentes de forte matiz ideológica, como Getúlio Vargas e Ernesto Geisel , para não contaminar nosso raciocínio com as paixões do momento.

Quando se observa a participação do Brasil em instituições internacionais nos últimos 20 anos, podemos verificar que quadros brasileiros passaram a liderar importantes instituições multilaterais, como a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento - UNCTAD , a Organização Mundial do Comércio - OMC e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO . Só conseguimos isso por conta de uma grande articulação com outros países em desenvolvimento, como recentemente com o G-77 , o BRICS e o IBAS . Porém, isso ocorreu sem que o Brasil deixasse de ter um relacionamento de alto nível com os EUA e a União Europeia, com o qual compartilhamos muitos valores. Internamente, quem mais se beneficiou dessa postura pragmática foram os exportadores brasileiros de bens e serviços. Hoje em dia, a inclusão do dogmatismo e do alinhamento automático na política externa tende a provocar mais danos do que frutos, uma vez que pode atrair para o Brasil problemas políticos internacionais que não lhe afetam e dificultar o acesso a mercados consumidores até aqui consolidados. Aparentemente, ao menos até aqui, os interesses econômicos têm se sobressaído frente às questões dogmáticas.

IHU On-Line — Qual a sua avaliação sobre um alinhamento do governo brasileiro aos EUA nesse cenário?

Marcos Cordeiro Pires — O pragmatismo seria um melhor negócio, em todas as acepções da palavra “negócio”.■

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