Edição 528 | 17 Setembro 2018

Uma nova configuração geopolítica que supera a divisão Oriente X Ocidente

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João Vitor Santos | Tradução: Ramiro Mincato

Para Andrea Fumagalli, divisões do momento da Guerra Fria já podem estar superadas. Agora, capitaneado pela China, o mundo pode se dividir na disputa entre Norte e Sul

São muitos os pesquisadores que questionam a divisão do mundo entre Oriente e Ocidente. Entretanto, do ponto de vista da economia, essa ainda era uma chave que vinha sendo importante para se compreender as lógicas que orientam perspectivas econômicas de um e de outro lado do globo. Mas a ascensão chinesa no cenário geopolítico e seu “capitalismo de Estado” tem tensionado um redesenho dessas lógicas. Para o professor de Economia, o italiano Andrea Fumagalli, é bem possível que o mundo possa ser visto desde a lógica de países do Norte versus as perspectivas de nações ao Sul. “As adulações entre a nova administração dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e a Rússia de Putin podem formar um eixo geoeconômico ao longo do hemisfério Norte”, explica. Para ele, esse novo alinhamento não significaria mais “um Norte desenvolvido e um subdesenvolvimento do Sul, mas entre áreas totalmente desenvolvidas com interesses conflitantes”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Fumagalli ainda explica que a saída dos Estados Unidos do Tratado Transpacífico também é mais um fator que facilitaria o estabelecimento de um outro eixo geopolítico. Este contemplaria “o fortalecimento de acordos comerciais entre a própria China, a Austrália e o Japão (agora órfão dos EUA), ao longo de um eixo austral do Trópico de Capricórnio, que vê como protagonistas, além da China, África do Sul, parte do continente sul-africano e os países da América do Sul (Brasil principalmente)”. Além disso, combalida por crises econômicas e uma nova onda de nacionalismos que fragiliza sua unificação, a Europa tende a ficar à deriva entre os dois novos polos. “A Europa arrisca encontrar-se como o clássico pote de barro no meio de panelas de ferro. A principal razão é que a construção de uma Federação dos Estados Europeus ainda está completamente inacabada e longe de acontecer”, analisa.

Andrea Fumagalli é doutor em Economia Política pela Università Bocconi e Università Cattolica di Milano, Milão, graduado em Economia e Ciências Sociais pela mesma instituição e posteriormente desenvolveu atividades de pesquisa em parceria com a École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e a New School for Social Research (Nova York). Professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Entre suas publicações, destacamos o artigo O conceito de subsunção do trabalho ao capital: rumo à subsunção da vida no capitalismo biocognitivo, publicado no Cadernos IHU ideias número 246, disponível em http://bit.ly/2L13Ucs . Em 2017, publicou Economia politica del Comune. Sfruttamento e sussunzione nel capitalismo bio-cognitivo [Economia política do Comum. Exploração e subsunção no capitalismo biocognitivo] (Roma: Derive Approdi, dezembro de 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a China enfrentou a grande crise econômica de 2007-2008? De que modo sua posição foi diferente da tomada pelo Ocidente diante do problema?
Andrea Fumagalli – A China sofreu a crise financeira global de 2007-8 em menor escala devido à menor internacionalização de seus mercados financeiros e devido à disponibilidade de grandes reservas cambiais e monetárias, graças a seu superávit comercial com o resto do mundo. Além disso ela pode contar com o apoio de uma política monetária complacente e intimamente ligada às políticas de investimento ditadas em nível de Estado pela programação econômica.

O risco China, se há, é de natureza oposta à dos países ocidentais, dos EUA e da Europa em particular, ou seja, excesso de liquidez que permite fácil acesso ao crédito e a criação de bolhas especulativas sobre os investimentos de médio prazo, como o dos imóveis. De fato, a China sofreu grave crise financeira com o colapso dos índices de ações de Xangai e Hong Kong, no verão de 2010, após o estouro da bolha imobiliária especulativa em Hong Kong e nas Filipinas. Isso ocorreu depois de um crescimento recorde das bolsas de valores chinesas, nos três anos anteriores, quando, em vez disso, os países do Ocidente viviam em plena tempestade financeira.

IHU On-Line – Em detrimento dos Estados Unidos e da Europa, a China procura sua supremacia econômica, tecnológica e logística. Que mundo se pode esperar deste cenário?
Andrea Fumagalli – Difícil de responder. Ter supremacia econômica, tecnológica e logística não é suficiente para definir as trajetórias globais de maneira unilateral. O capitalismo contemporâneo é um capitalismo em que a financeirização desempenha papel estratégico e os mercados financeiros, pelo menos por enquanto, são controlados por um punhado de multinacionais financeiras localizadas no Ocidente. Também nos setores estratégicos da coleta, manipulação e distribuição de big data, le corporations principais são ainda made in USA. Não é coincidência que os big five (Apple, Amazon, Alphabet-Google, Facebook, Microsoft) tenham atingido uma capitalização de mercado que excede 3 trilhões de dólares. Mas o jogo ainda não terminou, e a China tem potencialidades acima dos EUA e da Europa, seja pela maior estabilidade cambial, seja pela maior bacia demográfica (elemento essencial para a coleta de dados).

IHU On-Line – Outra área em que a China pretende ultrapassar os Estados Unidos é a exploração dos big data. Em um mundo cada vez mais digitalizado, controlado e supervisionado, qual é o efeito dessa pretensão chinesa?
Andrea Fumagalli – Como mencionado na resposta anterior, hoje, o setor de big data permanece solidamente nas mãos dos EUA. Mas a tecnologia contemporânea é caracterizada por um alto grau de cumulatividade, que permite a intercalação das corporações que estão na fronteira tecnológica. Se alguém é hoje, não significa que será amanhã.

Além disso, estamos assistindo a uma possível difusão de um novo paradigma tecnológico, que tem a ver não apenas com dados, mas, cada vez mais, com a vida humana. Isso pode significar que corpo e mente, e não apenas o comportamento, tornam-se cada vez mais a base para extração de dados. O desenvolvimento da biotecnologia, novas técnicas de procriação e manipulação artificial do genoma são cada vez mais capazes de subverter a própria indústria dos big data, e, nesta nova frente, a China poderia jogar papel importante.

IHU On-Line – Há alguns anos, a aproximação política entre Estados Unidos e Rússia seria impensável. No entanto, os dois países, além da Grã-Bretanha, estão cada vez mais alinhados. Isto seria uma resposta à China que se mobiliza em vista da construção de um eixo capitaneado por ela? E o que se pode esperar dessa tensão de forças?
Andrea Fumagalli – Creio que nunca antes EUA e Rússia foram tão semelhantes e potenciais aliados, como após a eleição de Trump nos EUA. Do ponto de vista ideológico, nacionalismo e protecionismo econômico (isto é, políticas soberanas) são dois elementos centrais para ambos definirem suas políticas econômicas. Apesar das escaramuças no plano geopolítico internacional, e pela velha questão do controle de energia, os dois países têm interesses comuns, a saber, lutar contra o crescimento econômico, tecnológico e, no futuro, talvez, financeiro da China.

Se a globalização econômica atingiu seus limites, mesmo em termos de redistribuição de renda, tanto intranacional como entre países, a globalização política passa por profunda redefinição. É somente neste nível que se pode, talvez, falar de um processo de desglobalização política em curso, que não deve ser confundida com a econômica. Dizemos "talvez", não só porque é cedo demais para definir com certeza as tendências dominantes em progresso, mas também, e sobretudo, porque o que parece delinear-se no horizonte, mais do que um retorno tradicional à soberania nacional (não mais possível, devido ao alto nível de interdependência em nível econômico e financeiro), é uma redefinição das configurações geopolíticas em nível internacional. A decisão de Trump de retirar-se do tratado do Transpacífico Livre (TTP, que não incluía a China entre seus membros), pode facilitar o estabelecimento de um novo eixo geopolítico, que contempla o fortalecimento de acordos comerciais entre a própria China, a Austrália e o Japão (agora órfão dos EUA), ao longo de um eixo austral do Trópico de Capricórnio, que vê como protagonistas, além da China, África do Sul, parte do continente sul-africano e os países da América do Sul (Brasil principalmente).

Por outro lado, as adulações entre a nova administração dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e a Rússia de Putin podem formar um eixo geoeconômico ao longo do hemisfério norte. Desta forma, a configuração geopolítica poderia assumir aparência completamente nova. Não mais a clássica divisão entre Oriente e Ocidente, legado da Guerra Fria e do século passado, mas entre Norte e Sul do mundo, de maneira completamente nova: não mais entre um Norte desenvolvido e um subdesenvolvimento do Sul, mas entre áreas totalmente desenvolvidas com interesses conflitantes.

O ingrediente instabilidade econômica

À consequente instabilidade política, juntamente com os teatros de guerra em curso, acrescenta-se a instabilidade estrutural no plano econômico. Trata-se de uma instabilidade econômica que, longe de ter efeitos negativos na valorização capitalista, permite sua perpetuação. Tal instabilidade política é também exacerbada pelo pedido, levado adiante pelo governo chinês, de poder pagar o petróleo (de acordo com a Arábia Saudita) em Yuan em vez de dólar. Consequentemente a primazia do dólar como moeda de referência internacional pode ser questionada.

No entanto, é prematuro pensar (embora não impossível) que os petrodólares podem transformar-se progressivamente em petroyuan . É um sinal, no entanto, de que as novas economias capitalistas do Sul, a reboque da China, depois de conquistar autonomia econômica e tecnológica, estejam minando a supremacia financeira das bolsas norte-americanas e ocidentais.

IHU On-Line – A ideia de uma Europa próspera e estratégica enfraqueceu ante a reconfiguração política e econômica em curso? Por quê?
Andrea Fumagalli – A Europa arrisca encontrar-se como o clássico pote de barro no meio de panelas de ferro. A principal razão é que a construção de uma Federação dos Estados Europeus ainda está completamente inacabada e longe de acontecer. A união monetária não é suficiente, ao contrário. A história nos ensinou que o processo de unificação de territórios historicamente diferentes requer, antes de tudo, um processo de convergência para um modelo único de governança, de políticas sociais, fiscais, ocupacionais, tecnológicas e industriais. E só depois, a homogeneização das políticas monetária e cambiais.

Na Europa, decidiu-se fazer o contrário, usando a moeda única e a política monetária como chave para impor a ordem econômica neoliberal, sabendo muito bem que a União Monetária Europeia sozinha não seria capaz de promover um equânime crescimento econômico. A estabilidade da moeda, e assim da inflação, redefiniu uma hierarquia econômica capitalista que, no eixo Paris-Berlim, implementou aquela reestruturação social que consentiu no desmantelamento dos sistemas de proteção social e dos direitos trabalhistas, no agravamento da distribuição de renda, na pilhagem da natureza e dos bens comuns. Nesse contexto, a Europa não possui uma autonomia geopolítica em escala global. Não possui uma política tecnológica senão aquela imposta pelas Cadeias Globais de Valor, não possui uma política social enquanto subordinada às restrições do pacto de estabilidade, e não tem uma política monetária em nome da ideologia do livre comércio global.

Efeitos da crise econômica

No período pós-crise de 2007-8, tal carência de autonomia política aumentou, com efeitos negativos sobre o papel da Europa na gestão de uma política externa unitária e de uma política econômica credível. De fato, as escolhas estratégicas no tabuleiro de xadrez global ainda são decididas em nível de Estado-nação. A gestão dos fluxos migratórios é emblemática nesse sentido. Neste contexto, para além de algumas exceções, a Europa corre o risco de se tornar uma terra de colonização da China (por exemplo, o setor de logística e controle dos principais portos do Pireu a Rotterdam) e dos EUA (biotecnologia e big data).

IHU On-Line – O crescente poder econômico chinês acarreta riscos ou benefícios para o resto do mundo? De que natureza?
Andrea Fumagalli – Do ponto de vista capitalista, acredito, o poder econômico da China tem perspectiva de médio a longo prazo mais eficaz do que a dos EUA. E, consequentemente, é necessário analisar a evolução da economia chinesa, não com um olhar sobre a tradição capitalista ocidental, mas com olhos completamente novos e desencantados, tentando entender o espírito chinês. Deste ponto de vista, acredito, a análise de Martin Jacques , no livro When China Rules the World , está correta. Em particular, além das possíveis divergências, é interessante lembrar que o sistema capitalista funciona melhor sem democracia ou quando há apenas uma democracia formal.

A acumulação capitalista, de fato, requer ordem, disciplina e hierarquia, ao invés de livre comércio e igualdade de oportunidades. E, desse ponto de vista, a China representa uma boa mistura de autoritarismo, livre iniciativa privada e programação das grandes empresas, combinada com a capacidade do modelo chinês de gerar hegemonia cultural, ou a capacidade de criar consenso, também através de manipulação dos meios de comunicação de massa. É um modelo que só recentemente os EUA e a Europa estão começando a seguir, mas com atraso.

Em nível mais micro, o crescimento econômico chinês ainda é força motriz para o crescimento econômico mundial, conveniente também para as outras economias. Além disso, o alto superávit comercial permite que a China tenha grandes somas de liquidez, que também podem ser usadas para financiar dívidas públicas e/ou estrangeiras de outros países, reforçando assim o papel da moeda chinesa (Renmimbi ou Yuan).

Itália

Um caso interessante, ainda que pequeno, diz respeito à Itália. Nestes dias, o ministro da Economia italiano, Tria , foi a Pequim e assinou acordos não apenas comerciais, mas sobretudo da gestão da dívida pública italiana. O Banco Central da China está disposto a comprar títulos do governo italiano e, portanto, a sustentar a dívida pública, em troca da inclusão, nas reservas cambiais italianas, de uma determinada parcela de Renmimbi.■

Leia mais

- A potência da concepção de uma economia para além dos números. Entrevista com Andrea Fumagalli, publicada na revista IHU On-Line número 525, de 30-7-2018.

- O biopoder e os mercados financeiros. Entrevista especial com Andrea Fumagalli, publicada nas Notícias do dia de 13-5-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- Os impactos da financeirização sobre o sujeito. Entrevista especial com Andrea Fumagalli, publicada nas Notícias do dia de 10-9-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- A morte da democracia e a farsa neoliberal da neutralidade da moeda. Entrevista especial com Andrea Fumagalli, publicada nas Notícias do dia de 20-9-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- O comando bioeconômico do trabalho vivo. Entrevista especial com Andrea Fumagalli, publicada nas Notícias do dia de 30-4-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- A esquerda e a “política dos dois tempos” na era da financeirização. Entrevista especial com Andrea Fumagalli, publicada nas Notícias do dia de 13-9-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- "Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo". Entrevista especial com Andrea Fumagalli, publicada nas Notícias do dia de 2-8-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- Do Welfare State para o Workfare e a necessidade de novos sistemas financeiros autônomos. Entrevista especial com Andrea Fumagalli, publicada nas Notícias do dia de 2-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

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