Edição 527 | 27 Agosto 2018

Para remar no rio do tempo presente

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Ricardo Machado e Leno Danner

Álvaro Tukano aborda os desafios contemporâneos dos povos indígenas e defende a profunda relação com os saberes ancestrais

Para não se perder na correnteza do rio da vida, é preciso saber qual o melhor remo para cada tempo. Álvaro Tukano é uma das mais tradicionais lideranças indígenas do Brasil e tem a profunda capacidade de olhar o presente, sem deixar de lado uma memória que é rica em saberes e experiências. “Acredito e defendo as tradições milenares. Tive embate com o Estado e a Igreja e, por isso, fui perseguido e caluniado. Até os meus parentes próximos ficaram contra a minha pessoa quando criticava os neocolonizadores”, diz Álvaro Tukano, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “ Quando chegaram os brancos começou a confusão, porque os nossos territórios foram saqueados em todos os sentidos – violência sexual contra as nossas filhas e mortes de nossos filhos; roubaram madeira, riquezas minerais e outras especiarias. Os colonizadores impuseram as regras do Estado e da Igreja. Hoje, continua desse jeito, isto é, o índio não é respeitado”, complementa.

Tornou-se lugar comum chamar os indígenas de preguiçosos e sujos, quando, no fundo, o que há mais sistematicamente é a contínua reprodução de violências não só simbólicas contra esses povos. “Existem alguns que adoram ver índios e índias peladas e que ficam com água na boca. Assim, nascem os filhos de antropólogos, de missionários e de outros aventureiros que roubam as nossas filhas”, critica. Há, por outro lado, pessoas da civilização branca que cada vez mais têm procurado os saberes e os povos da floresta. “[Há] os brancos rebeldes, inteligentes, porque eles não acreditam muito nessa civilização que está aí, confusa”, pondera. Por fim, complementa: “Assim, o índio pode ser o professor nas universidades, pode ser pajé, pode ser lenhador e tudo mais. O importante é ser índio feliz e respeitado”.

Álvaro Tukano nasceu no Alto Rio Negro em 1953, a partir do final da década de 1970, tornou-se um dos principais articuladores da resistência indígena. É autor do livro Álvaro Tukano (Rio de Janeiro: Editora Azougue, 2017). Além disso, foi um dos coordenadores da União das Nações Indígenas - UNI, e ajudou na criação e na consolidação de importantes instituições, como a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN. Mantém parceria com líderes indígenas de outros países que compõem a Amazônia, como Equador, Peru e Venezuela. Atualmente, coordena o Memorial dos Povos Indígenas de Brasília.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Movimentos, lideranças e intelectuais indígenas têm se manifestado desde longa data e de modo contundente na esfera pública acerca dos problemas enfrentados pelos povos indígenas. Como o senhor avalia essa atuação?
Álvaro Tukano – Os movimentos de nossos antigos foram as festas culturais para ensinar as novas gerações sobre as histórias da humanidade. Por exemplo, sempre existe o princípio da criação de nossos primeiros homens e suas gerações. As melhores reuniões familiares foram os pequenos e grandes encontros de músicos, de dançarinos, de curandeiros e chefes tribais. Assim, os nossos viveram numa época quando não tinha colonização e sempre dominaram e/ou ocuparam grandes territórios tradicionais. Quando chegaram os brancos começou a confusão, porque os nossos territórios foram saqueados em todos os sentidos – violência sexual contra as nossas filhas e mortes de nossos filhos; roubaram madeira, riquezas minerais e outras especiarias. Os colonizadores impuseram as regras do Estado e da Igreja. Hoje, continua desse jeito, isto é, o índio não é respeitado. Os jovens indígenas de hoje sabem como foi a grande colonização em nossos continentes. O que queremos? Demarcação das Terras Indígenas para que os nossos filhos tenham uma vida digna para manter essas tradições.

IHU On-Line – Investigadores têm mostrado que as grandes vítimas do nosso processo de modernização conservadora são os povos indígenas e negros. Como o senhor avalia a constituição da sociedade brasileira?
Álvaro Tukano – A história da colonização nunca é de vitórias e conquistas para o lado indígena. Hoje, temos a Lei número 6.001/Funai e os Artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988. Temos terras demarcadas e homologadas. E, mesmo assim, muitas terras são invadidas. Os garimpeiros e madeireiros, os políticos do agronegócio fazem o papel dos bandeirantes. Temos procurado os governantes para demarcar as nossas terras. É bom vocês verificarem quais foram os governantes e como foram as demarcações das terras nos últimos 52 anos.

IHU On-Line –Como o senhor, enquanto cidadão indígena, percebe a influência das matrizes de pensamento eurocentradas no processo de aculturação dos povos indígenas?
Álvaro Tukano – Infelizmente ainda existem muitos índios bestas que acreditam e praticam o eurocentrismo. Por um lado, deve ser maravilhoso ver os missionários indígenas católicos, evangélicos e de outras seitas que invadem dia e noite as comunidades indígenas. Também, deve ser interessante ver o pastor índio cacique combater as tradições indígenas. Pelo que conheço em alguns casos, os missionários indígenas não defendem e praticam as pajelanças, porque não sabem mesmo. As aldeias indígenas onde existem capelas/igrejas não têm tradições indígenas. Rezam muito. É bom que rezem mesmo. Nas capelas onde existem os santos padroeiros os pobres índios não conhecem mais as histórias tradicionais. Fazem festas de aniversários, tomam coca-cola misturada com a pinga, dançam forró e, muitas vezes, esses tipos de festas duram uma semana, no caso do Rio Negro. Vocês deveriam ver a aldeia São Joaquim, que fica na boca do Rio Uaupés. É muito triste ver os nossos jovens doentes de tanto beber a pinga, acontecem muitos suicídios de homens e mulheres jovens. O missionário índio não vê essas tristezas e nem vai visitar as cadeias lotadas de índios. Essas coisas acontecem em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Hoje, temos outros líderes que defendem e praticam as tradições. Esses são bons músicos, bons líderes e nessas comunidades não tem confusões. Esses não precisam dos costumes eurocêntricos.

IHU On-Line – Como os povos indígenas reagem a essa situação de colonização simbólica? Como eles podem contribuir com uma crítica da modernidade?
Álvaro Tukano – Cada povo tem seus heróis, homens mitológicos que vivem em nossas mentes e que nos abençoam espiritualmente. Eu fiz a minha parte. Acredito e defendo as tradições milenares. Tive embate com o Estado e a Igreja e, por isso, fui perseguido e caluniado. Até os meus parentes próximos ficaram contra a minha pessoa quando criticava os neocolonizadores. O Mário Juruna foi o companheiro de luta. Muitos já morreram, sendo a maioria assassinados e que deixaram muitos órfãos que, hoje, são grandes lideranças do movimento indígena. Outros amigos estão vivos: Marcos Terena , Ailton Krenak , Paulinho Payakan , Davi Kopenawa , Biracy Brasil, Nailton Pataxó , Nelson Saracura, Lázaro Kiriri, Terêncio Macuxi e outros. Entendo que os brancos não têm problemas. Quem tem problemas e, muitos, são os povos indígenas que precisam de terras demarcadas e homologadas, tradicionalmente. Os jovens líderes têm que ter orgulho de seus antepassados, ser nativos dessas terras tradicionais. Quem manda na vida e defende o índio é índio. É claro que temos que tecer alianças políticas entre todos os povos, dizer que somos os filhos dessas terras e por aqui ficaremos para sempre. É esse o sentido real da luta do movimento indígena.

IHU On-Line – Como, apesar do sistemático processo de marginalização e segregação dos povos tradicionais, o pensamento ameríndio conseguiu resistir até os dias de hoje?
Álvaro Tukano – Primeiro, os nossos antepassados nunca foram incapazes. Estes foram sábios chefes, curandeiros, pajés, videntes, ervateiros, caçadores, pescadores, agricultores e tudo mais. As nossas avós, as mães nos ensinaram o amor. Foram grandes lideranças femininas, e assim continuam hoje. São lindas mães que nos educam dia e noite. São as mulheres que sustentam a nossa luta e, por isso, temos que estar ao lado delas. Assim, nascerão muitos filhos e filhas; teremos netos e netas, bisnetos e bisnetas, e sempre fortes como os nossos antepassados.

IHU On-Line – Como o pensamento e as práticas culturais indígenas podem contribuir para a desconstrução da imagem caricata do sujeito indígena construída ao longo de cinco séculos?
Álvaro Tukano – Está é uma bagunça da modernidade, porque as escolas, jornais, televisões não tratam de nossos costumes como eles são de fato. A educação, de modo geral, coloca-nos sempre no negativo, que índio é preguiçoso e sujo e tudo mais... Existem alguns que adoram ver índios e índias peladas e que ficam com água na boca. Assim, nascem os filhos de antropólogos, de missionários e de outros aventureiros que roubam as nossas filhas. Em outros momentos os especialistas de índios adoram mostrar seus índios e seus trabalhos sobre eles. Fantástico. Os mais curiosos vão atrás de essências medicinais, são os maconheiros, rapézeiros, ayauasqueiros e não querem ser mais brancos de apartamentos. Esses são os brancos rebeldes, inteligentes, porque eles não acreditam muito nessa civilização que está aí, confusa. Alguns índios, também, não querem ser mais índios. Andam de paletó e com a bíblia nas mãos em busca de ovelhas perdidas. Será que mudamos? Sim. Chegou a educação cristã europeia. Os missionários nos ensinaram os fonemas das letras, assim, construímos as frases que nos interessam. Hoje, fico feliz quando vejo jovens, homens e mulheres nas universidades. São os nossos filhos e filhas para falar de nossas histórias, de nossas tradições. Assim, temos um longo caminho de transformação dos povos brasileiros pela frente. Maravilha.

IHU On-Line – Como o pensamento e as práticas culturais indígenas poderiam contribuir para a desconstrução da imagem de que os povos indígenas possuem uma perspectiva contrária ao desenvolvimento econômico e social?
Álvaro Tukano – Na minha região, hoje, infelizmente está difícil. Temos bons líderes que construíram as casas tradicionais para educar os filhos e filhas, organizar as famílias. Eles têm as línguas e histórias próprias. É um modo de gozar a liberdade em expressões, valorizar as culturas milenares e assistir os casamentos de novas gerações. Isso é bom. Alguns índios fazem canoas e remos para viajar. Outros compram os motores de popa e outros viajam de aviões a jato pelo mundo em busca de aliados para fazer as apresentações culturais e, se necessário, fazem denúncias nos tribunais internacionais. Em alguns casos vemos muita gente que não quer ver o índio nesse meio. Por que será? Deixa o índio falar.

IHU On-Line – Conte-nos um pouco dos processos culturais e educativos do povo Tukano...
Álvaro Tukano – Nós, Ye’pa Masa, Tukano, não somos melhores que outros povos irmãos. Hoje, como já disse, temos homens e mulheres nas universidades. Estão preparados para defender a vida de nossos povos, buscam e dominam a tecnologia de comunicação para não depender de tantos intermediários. A vida prossegue. Vamos lá.

IHU On-Line – Como a educação escolar indígena transita da formação cultural do povo Tukano para a educação formal?
Álvaro Tukano – Existem leis tribais. Por exemplo, o casamento exogâmico. O homem Tukano não pode casar com a mulher Tukano. Tem que casar com a mulher de outro povo. Assim, somos povos cunhados para defender os nossos territórios e costumes. Respeitamos e amamos os velhos e são os velhos que nos ensinaram muitas coisas. Os professores e professoras indígenas têm que ser de nossa gente. Estes são pais e mães e, por isso, a educação ministrada hoje é bem dinâmica. Assim é bom, porque os missionários que me ensinaram foram os alemães, italianos, franceses e brasileiros. Apanhei que só. Aliás, apanhamos. É assim que funciona a vida de índio nesse Brasil.

IHU On-Line – De que forma, ao longo do processo de colonização, a civilização branca se apropriou da história material e imaterial dos povos tradicionais?
Álvaro Tukano – Os pesquisadores europeus contribuíram muito para informações que temos nas universidades. Eles aprenderam muitas coisas com os nossos antepassados, realizaram os estudos comparativos em épocas de massacres, de genocídio. Os pesquisadores dos Estados fizeram a mesma coisa. Essa gente levou muitos instrumentos sagrados de nossos povos que hoje se encontram nos museus, e se tornaram como patrimônio deles. Hoje, muitos brasileiros pesquisadores procuram os nossos povos para pesquisar e atualizar as informações para essas universidades. Os pesquisadores brasileiros são pagos pelas universidades internacionais e pouco ou nada fica para nossas comunidades. O que é mais complicado: tudo que é do índio pertence ao Estado. O Estado controla o índio. Isso não é bom para o meu lado e nem dos outros que são críticos. Naturalmente, índios e negros deveriam estar mais atentos, unidos.

IHU On-Line – Quais têm sido os resultados da luta pela preservação e pela promoção de territórios físicos e simbólicos dos povos indígenas?
Álvaro Tukano – O Brasil tem na Constituição Federal o Capítulo dos índios. O Brasil é signatário de leis internacionais que protegem os povos tradicionais. Enfim, os índios têm a proteção, os instrumentos jurídicos. O problema, aqui, são as riquezas imensuráveis. Por exemplo, disse alguém: “A Amazônia tem ouro, nióbio, petróleo, as maiores jazidas de manganês e ferro do mundo, diamante, esmeraldas, rubis, cobre, zinco, prata, a maior biodiversidade do planeta (o que poderia gerar grandes lucros aos lavatórios estrangeiros), madeira nobre e outras inúmeras riquezas que somam 14 trilhões de dólares”. Esse é um dos brasileiros. Esse não enxerga os índios e animais que dependem das florestas, dos rios e lagos. Só quer roubar. O que você acha disso?

IHU On-Line – Como a crescente influência de indígenas nas universidades, a profícua produção científica e cultural dessas pessoas têm contribuído para o debate sobre as lutas dos povos indígenas? Como as mídias digitais têm contribuído nisso?
Álvaro Tukano – Vejo e defendo com bons olhos a tecnologia de comunicação. Antigamente, era difícil conseguir a tinta, a pena e o papel para escrever as nossas histórias. Quem tinha esses materiais eram os missionários e pesquisadores. Quem tinha as máquinas fotográficas eram os gringos e gringas. Depois veio o toca-disco para dançar forró. Chegou rádio para ouvir noticiários e a televisão. Hoje, muitos índios têm celulares em lugares mais distantes do Brasil. Dá, inclusive, para falar em línguas próprias. Os alunos e alunas indígenas falam línguas próprias. Aumentou o número de pesquisadores, de professores e de comunicadores. Na minha época não existia advogado indígena e nem coronel do exército. O índio não tinha Bolsa de Estudo para estudar em Cuba e nem qualquer bolsa e, muito menos, a cota. De fato, vejo grande revolução na comunicação, porque os textos trabalhados com carinho é que se tornam temas acadêmicos. Assim, o índio pode ser o professor nas universidades, pode ser pajé, pode ser lenhador e tudo mais. O importante é ser índio feliz e respeitado.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Álvaro Tukano – Quero a paz para todos os povos indígenas do Brasil e do mundo. ■

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