Edição 523 | 04 Junho 2018

A lógica de extermínio perde o véu, está em praça pública

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Vitor Necchi

Flávia Cêra afirma que há uma crise da política representativa que pegou a esquerda de jeito, enquanto a direita suprime a compreensão e o diálogo

A psicanalista Flávia Cêra identifica uma crise da política representativa que “pegou a esquerda de jeito”. Quanto à direita, observa que eles “suprimem, justamente, a compreensão e o diálogo”. Até oferecem respostas às demandas da sociedade, mas abolindo “um tempo decisivo em que qualquer posicionamento pode ser questionado, colocado em perspectiva”. Pegam, por exemplo, temas que “apareçam como bola da vez (corrupção, privatização e por aí vai) para imediatamente dar uma resposta”. Para Cêra, “onde aparece uma brecha, lá estão eles para dar uma direção”, mas de uma forma que “nos empurra para cada vez mais longe da política”, pois, “suprimindo esse tempo de compreender, suprime-se o aparecimento da alteridade e da complexidade das relações”.

Neste cenário de polaridades, “qualquer senão é tomado como a identificação de um inimigo a ser eliminado”. E o resultado é péssimo. “Fica clara a impossibilidade dos caminhos que seguem essa lógica de se inscreverem como discurso político para além do ódio. Isso se nota, por exemplo, na solução final em que se tem chegado para tudo: o clamor pela intervenção militar.” Furar essa lógica é o que está em jogo para a esquerda, avalia. “Muitas coisas interessantes pipocam por aí, uma série de movimentos que passam por questões que, historicamente, foram tomadas como desimportantes pela esquerda”, diz em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Um inevitável pessimismo aflora da percepção de Cêra acerca da realidade. “A atmosfera de fim do mundo nos ronda há muito tempo”, garante, ao citar a execução da vereadora Marielle Franco, a gravíssima crise ambiental, a tentativa de transformar índio em pobre para que possa ser controlado, o desmonte institucional, a miragem que se tornou a igualdade social, o aumento da mortalidade infantil, o retorno da miséria e da fome, o genocídio dos jovens negros – “isso tudo francamente apoiado pelo governo”. Com uma frase impactante, resume: “A lógica de extermínio, que nos é conhecida desde que o Brasil é Brasil, perde o véu, está em praça pública”.

Flávia Cêra é psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Psicanálise e Cultura na EBP-PR.

Confira a entrevista.

IHU On-line – As estruturas tradicionais de representação da esquerda (sindicatos, união de estudantes, movimentos, partidos etc.) perderam a capacidade de entender e dialogar com a sociedade? E a direita, vem sabendo compreender e dialogar com a sociedade?
Flávia Cêra – A crise da política representativa é um fato. E ela pegou a esquerda de jeito. Mas não chamaria de diálogo e compreensão os meios que certa parte da direita tem usado para chegar à sociedade. Que ela esteja lançando mais propostas não quer dizer que seja por esse caminho. O que consigo ver é que eles, da direita, suprimem, justamente, a compreensão e o diálogo. São respostas às demandas da sociedade, sem dúvida (leia-se “sem dúvida” em todos os sentidos possíveis), mas que abolem um tempo decisivo em que qualquer posicionamento pode ser questionado, colocado em perspectiva. É muito mais parecido com uma leitura de mercado servindo-se de todos os significantes que se inscrevem no imaginário político ou que apareçam como bola da vez (corrupção, privatização e por aí vai) para imediatamente dar uma resposta. É uma lógica de consumo que funciona muito bem. Onde aparece uma brecha, lá estão eles para dar uma direção. No entanto, tem muita adesão, muito barulho e nos empurra para cada vez mais longe da política. Porque suprimindo esse tempo de compreender, suprime-se o aparecimento da alteridade e da complexidade das relações. Qualquer senão é tomado como a identificação de um inimigo a ser eliminado. Fica clara a impossibilidade dos caminhos que seguem essa lógica de se inscreverem como discurso político para além do ódio. Isso se nota, por exemplo, na solução final em que se tem chegado para tudo: o clamor pela intervenção militar.

Como a esquerda pode furar essa lógica é o que está em jogo. Muitas coisas interessantes pipocam por aí, uma série de movimentos que passam por questões que, historicamente, foram tomadas como desimportantes pela esquerda. É preciso que ela tenha ouvidos para esses “acordes dissonantes” a fim de não cair na caricatura de um saber total que é onde perde sua força. A esquerda poderia se configurar cada vez mais como uma bricolagem, porque engenheiros, para retomar a célebre distinção de Lévi-Strauss , temos muitos. Que tenham partidos e organizações políticas que possam potencializar as vozes desses interesses institucionalmente, tanto melhor, mas a prerrogativa não pode mais ser a contrária.

IHU On-line – Ao se analisar o momento atual brasileiro, percebe-se um esgotamento de possibilidades. Por que se chegou a essa situação?
Flávia Cêra – A atmosfera de fim do mundo nos ronda há muito tempo. Na política institucional, a execução da vereadora Marielle Franco mostra o horror a que se pode chegar. A gravíssima crise ambiental nos mostra a urgência de repensar nossos modos de estar no mundo. A virulência progressista fez, e continua fazendo, estragos incontornáveis. Lembro de Lacan dizendo que “nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” e de Eduardo Viveiros de Castro dizendo que existe uma tentativa incessante de transformar índio em pobre, de modo que se possa administrar sua vida, retirar suas terras, retirar seu corpo, que passa a ser mais uma mercadoria. Penso em Achille Mbembe e seu livro imprescindível Crítica da razão negra , e na sua retomada do biopoder e da biopolítica mostrando suas mutações para além da inscrição da disciplina e do controle sobre os corpos com a necropolítica, isto é, com uma política de extermínio. Penso no desmonte institucional, na miragem que se tornou a igualdade social, no aumento da mortalidade infantil, no retorno da miséria e da fome, no genocídio dos jovens negros, isso tudo francamente apoiado pelo governo. A lógica de extermínio, que nos é conhecida desde que o Brasil é Brasil, perde o véu, está em praça pública. Essas questões condensam o esgotamento cada vez mais galopante e presente das possibilidades. Estamos à beira do abismo. Mas isso não é tudo.

IHU On-line – Quais as possibilidades de reinvenção dos espaços políticos e suas formas de construção no Brasil e quais os limites dessa reinvenção?
Flávia Cêra – Estamos à beira do abismo... E diante dele, já ensinava Wislawa Szymborska , podemos ver que ele não apenas nos divide, mas nos cerca. É uma imagem muito bonita, que está no fim do seu poema Autotomia, porque não se trata de eliminar o vazio, o furo do abismo, senão de dar contornos e bordas por onde possamos circular; não o suturar com convenções e o enquadrar em discursos de dominação. É claro que aqui estou muito distante da esquerda como um bloco homogêneo, até mesmo como algo que exista de antemão. Estou pensando bem mais nas causas reconhecidas como de esquerda, não sei se para pensar uma reinvenção dos espaços políticos haveria outra forma.

Como disse acima, há muitos movimentos acontecendo, muitos coletivos, intervenções, ocupações, gente pensando e propondo novas práticas e saberes. São inúmeros os modos de colocar os corpos em cena nas cidades, no cotidiano. La beauté est dans la rue, já dizia uma linda inscrição de Maio de 68. É preciso aprender com as artes, por exemplo, a ver as coisas de novas perspectivas, a não tomar os corpos e a vida como dados e determinados. Poder ouvir os pontos que traçam novos possíveis, que nos colocam diante de impossíveis, poder questioná-los, montá-los, desmontá-los, são exercícios necessários para qualquer invenção. Tem um fragmento de um texto de Jean-Luc Nancy de que gosto muito, em que ele diz: “Pensar fora do possível é pensar o inédito, o inaudito – o que toda existência carrega com ela e que, entretanto, jamais é dado, depositado, seja para ser conservado ou para ser reformado. O mundo não é para ser mudado: ele está por ser criado”.

IHU On-line – Em tempos de profunda polarização e de estigmatização da esquerda, que caminhos devem ser adotados para a concretização de temas notoriamente defendidos por este campo, como direitos humanos e combate à exclusão e à miséria?
Flávia Cêra – Distribuição de renda e educação, seria o mínimo. Sempre lembro da conhecidíssima frase de Darcy Ribeiro : “A crise na educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. E virou mesmo projeto de lei com a “Escola sem partido”. Seria preciso pensar no que está em jogo na escola sem partido: é mais do que a educação formal, aliás, se formos pensar nesses termos, não é nisso que se mexe. Toca-se justamente no que há de mais vivo dentro do que chamamos de “educação”, que é poder ver o mundo com os olhos livres, ou, pelo menos, um pouco mais livres, que é poder sonhar um futuro em amplos sentidos, que é se apropriar de um saber que não está nos livros e nas apostilas, enfim, é ter experiências que despertam interesses outros, que ultrapassam as disciplinas, que movimentam o desejo.

É claro que não há “Escola sem partido” que deterá de todo essas experiências, mas fica evidente que não se medirão esforços para “empobrecê-las”. Além do mais, é um projeto que não esconde suas filiações partidárias e religiosas, chegando a proposições como proibir a palavra “gênero” e “orientação sexual” no país onde a cada 48 horas uma pessoa trans é assassinada.

Por outro lado, acrescentaria que é preciso também pensar em formas de viver junto para além da incorporação ou da inclusão que pressupõe um modo de vida com vestes libertárias – como se vê no neoliberalismo –, mas que tem em seu cerne a concepção de uma monocultura. De uma parte, temos o princípio da diferenciação fazendo o corte entre o que deve viver e o que deve morrer, de outra, o seu avesso, um princípio de igualitarismo que coloca todos sob um mesmo modo de vida. Isso, dizia Lacan, é o que concentra o princípio do racismo: tomar o outro como um subdesenvolvido. Como conjugar igualdades sociais e diferenças, que são de outra ordem, de um lugar que não o da inclusão e da exclusão é um desafio e implica um fazer coletivo que mobilize também outros discursos.

IHU On-line – Os acontecimentos de 2013 são um divisor de água para a esquerda brasileira? Por quê?
Flávia Cêra – Sem dúvida. Junho de 2013 foi um acontecimento e, como tal, recolheremos seus efeitos por muito tempo. É interessante pensar que, para a esquerda, o divisor de águas foi múltiplo. Para um setor da esquerda, Junho culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff . Para outra parte, foi um momento em que a esquerda vacilou em fazer uma autocrítica, aliás, absolutamente necessária. Por outro lado, tivemos uma notória ascensão de movimentos chamados identitários favorecidos, em sua face menos interessante, pelas redes sociais e que dividem opiniões, já que suas causas são abertamente de esquerda, mas, por vezes, tropeçam em métodos segregativos. Chamo atenção para essas, mas têm muitas peças soltas por aí. As Jornadas de Junho de 2013 mostraram a fragmentação e a diversidade da esquerda – que sempre existiu e é muito bom que exista (e não é demais lembrar que o ponto vibrante das Jornadas foi iniciado pelo Movimento Passe Livre). Só a multiplicidade é capaz de manter vivos os devires e os desejos. No âmbito político-partidário, as querelas de unificação da esquerda continuam. O que é compreensível, dada a grave crise institucional em que estamos, mas não seria irrelevante essa unificação passar por uma conversa em torno do seu sentido.

IHU On-line – A direita brasileira soube encampar para si o espólio de junho de 2013?
Flávia Cêra – Sim, quando as manifestações se transformaram no discurso contra a corrupção que se aliou a uma correção moral vigorosamente apoiada pela promessa de uma redenção jurídica. Ou seja, uma despolitização geral e perigosa.

IHU On-line – A Lei Antiterrorismo (Lei Nº 13.260/2016), sancionada no governo Dilma, trata da tipificação, do julgamento e da punição para crimes de natureza terrorista no território nacional. Ela foi usada para perseguir e punir pessoas que participaram de manifestações populares, e as polícias militares não pouparam violência para coibir os movimentos. O Estado contribuiu para desqualificar demandas provenientes das ruas?
Flávia Cêra – Eu não tenho acompanhado as aplicações da lei. Não sei se ela serviu para desqualificar as demandas, porque elas continuam aí, mas abriu essa brecha inequívoca para a criminalização das manifestações e movimentos sociais. Nesse sentido, é sempre bom retornar ao texto de Walter Benjamin Crítica da violência/Crítica do poder e ao texto de Freud Por que a guerra. Com eles, é possível pensar as nuances que enredam Direito, violência e política.

IHU On-line – Com tanta exclusão e violência na história brasileira, com tanta anomalia no funcionamento de sucessivos mandatários do poder, o que houve com as ruas, que seguem silenciosas?
Flávia Cêra – Estamos em plena paralisação e bloqueio das estradas por caminhoneiros. Vou ter que deixar essa resposta para depois.

IHU On-line – O Brasil está sem utopia, sem capacidade de sonhar e ousar?
Flávia Cêra – Vou levar sua pergunta para outro lugar: “o” Brasil não existe. Ou, como dizia Drummond , “Nenhum Brasil existe”. Pensar assim me ajuda a ver a heterogeneidade das causas e dos modos de vida. Ajuda-me a ler os discursos que segregam, as campanhas de ódio que se disseminam, os extermínios empenhados nas malhas da ordem e do progresso, todos velados pela proposta de construir “o” Brasil. E, por outro lado, me permite ver sonhos e ousadias em muitos lugares: as ocupações das escolas pelos secundaristas em diversos cantos do Brasil me parece o melhor exemplo disso. Lembro de um discurso comovente de uma estudante, Ana Júlia, de Curitiba, na Assembleia Legislativa. Ela dizia que nas ocupações eles conseguiam ter a presença da felicidade. Isso me marcou profundamente. A política não é só a tristeza e a imobilidade de muitos gabinetes do poder. Ela é também alegria, movimento dos corpos, invenções que desenham novos horizontes. São esses pequenos pontos de luz que são capazes de reavivá-la, que são capazes de tornar a política um lugar onde a vida pulsa. ■

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