Edição 522 | 21 Mai 2018

Misericórdia: caminho para compreender os dilemas da Igreja no mundo

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João Vitor Santos | Tradução: Ramiro Mincato

Para Daniele Menozzi, o pontificado de Francisco é centrado no Evangelho, que tem no seu núcleo o conceito de misericórdia, funcionando como um elo entre os dramas de hoje da humanidade e da cristandade

Durante muito tempo, a Igreja apostava numa ideia de unidade que era incrustada a partir de sua doutrina, que serviria para uma orientação absoluta das formas de vida. Isso valeu até a Modernidade, que realinhou as formas de saber e ler o mundo para muito além da tutela religiosa. Como reação à avalanche que a ameaça, a Igreja ensaia movimentos de modernização – vide o Concílio Vaticano II –, mas que parecem não ser assimilados. Para o historiador italiano Daniele Menozzi, o papa Francisco parece compreender melhor do que seus antecessores esses movimentos. “O núcleo fundamental da posição de Francisco em relação à sociedade contemporânea consiste na percepção de que a relação entre a Igreja e os homens não pode ser deduzida a partir de uma doutrina estabelecida a priori e considerada válida para todos os tempos e em todos os lugares”, analisa. O que não significa levar a relativismos. Pelo contrário, para o professor, é ter clareza de que a Igreja tem no Evangelho uma referência absoluta. “E Bergoglio entendeu que o Evangelho só pode ser compreendido e comunicado unicamente nos acontecimentos da história. A pretensão de estar fora e acima da história, como a Igreja fazia nos últimos dois séculos, significou a renúncia de estar em sintonia com o mundo contemporâneo”, completa.

Assim, Menozzi enfatiza que “o papa Francisco entendeu que nas condições da sociedade de hoje, a misericórdia constitui o núcleo profundo do Evangelho, que encontra sua ressonância na vida coletiva marcada pela difusão de problemas dramáticos em nível planetário”. Segundo professor, é uma nova chave de leitura a própria doutrina que se apresenta. “Representa a maneira pela qual o Evangelho da misericórdia é variamente colocado em prática em contextos históricos e culturais concretos e específicos onde operam os cristãos”, destaca na entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

O professor ainda pontua que, para Francisco, a tarefa essencial não é proclamar os princípios da lei natural, mas fazer do Evangelho algo compreensível a todos. “Bergoglio, em síntese, não questiona a tradicional assunção da razão moderna pela Igreja, mas privilegia a dimensão histórica em relação à dimensão doutrinal. Parece-me uma grande conquista para o catolicismo”, analisa.

Daniele Menozzi é professor catedrático de História Contemporânea, titular de História Contemporânea na Scuola Normale Superiore de Pisa, na Itália. Entre seus livros publicados, destacamos Chiesa e diritti umani: Legge naturale e modernità politica dalla Rivoluzione francese ai nostri giorni (Società editrice il Mulino, 2012); Chiesa, pace e guerra nel Novecento: Verso una delegittimazione religiosa dei conflitti (Società editrice il Mulino, 2012); e I papi e il moderno. Una lettura del cattolicesimo contemporâneo (Morcelliana, 2016).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais foram as maiores transformações no catolicismo entre os séculos XIX e XX?
Daniele Menozzi – O catolicismo dos séculos XIX e XX defrontou-se com o problema colocado pelo advento do mundo moderno. Ao contrário do que acontecia na sociedade oficialmente cristã dos séculos precedentes, os homens agora queriam afirmar sua autonomia em relação à autoridade eclesiástica no que tange à organização da vida coletiva. Durante muito tempo, até o Concílio Vaticano II (1962-1965) , a Igreja respondia a esse problema contrastando um modelo ideal da sociedade cristã às aspirações do homem moderno. Assim, afirmava que somente o retorno a um regime da cristandade, isto é, a uma sociedade obediente a diretivas eclesiásticas, poderia resolver o problema da coexistência civil.

No entanto, durante o século XX, ficou claro que essa orientação, enquanto fortalecia as instituições eclesiásticas ao redor da liderança romana, acabava afastando cada vez mais os fiéis da prática católica. Por isso, a maioria dos padres convocados ao Vaticano II, para discutir as dificuldades da Igreja no mundo contemporâneo, decidiu mudar de rumo. Para poder comunicar a mensagem do Evangelho às pessoas modernas, a Igreja deveria abrir um diálogo com elas, baseado no reconhecimento dos aspectos positivos da modernidade.

O programa de atualização eclesial que João XXIII confiou à assembleia ecumênica consistia essencialmente nisso. Tal programa geral deveria ser traduzido em prática. Não foi uma tarefa fácil. Havia, de fato, um problema fundamental: até que ponto a Igreja poderia aceitar a modernidade que tinha combatido até alguns anos antes? À pergunta foram dadas respostas muito diferentes, já durante o Concílio e, especialmente, no pós-concílio. As diferentes posições estão na origem dos confrontos que dividiram o catolicismo a partir do pontificado de Paulo VI .

IHU On-Line – Que desafios são impostos à Igreja no século XXI? Como o atual pontificado está respondendo a esses desafios?
Daniele Menozzi – Os desafios que o papa Francisco teve que enfrentar podem ser colocados em dois níveis diferentes.

Em um nível mais imediato está a pesada herança recebida do antecessor (que não por acaso se demitiu). Por um lado, as atitudes de Bento XVI geralmente suscitaram nos órgãos de comunicação de massa reações severamente críticas (naturalmente prescindindo daqueles programaticamente alinhados às posições apologéticas vaticanas). Isso provocava uma consequência bem precisa: a Igreja era geralmente percebida em termos fortemente negativos. Por outro lado, a crise era evidente tanto na cúria romana, atravessada por escândalos contínuos de fundo financeiro e sexual, quanto na comunidade eclesial, desorientada pelas atitudes do papa Ratzinger, que por um lado reiterava fidelidade ao Concílio Vaticano II, mas, por outro, dava abertura aos tradicionalistas anticonciliares, uma das principais linhas de seu governo.

Sobre estas questões imediatas, relacionadas ao legado de seu predecessor, o papa Francisco tentou algumas respostas incisivas: recuperar uma relação positiva com todos os profissionais de mídia através de uma grande reestruturação do sistema de informação do Vaticano; iniciou medidas, embora cautelosas, em vista de uma reforma da cúria romana; afirmou decisivamente a irreversibilidade da atualização eclesial promovida pelo Concílio.

O desafio mais importante que o papa Francisco terá que enfrentar, no entanto, se coloca em um nível mais amplo. As dificuldades da aplicação do aggiornamento eclesial tornaram-se, no século XXI, ainda mais complicadas. O pontífice governa agora a Igreja na era denominada, por conveniência, de pós-moderna. Como anunciar o Evangelho a um homem que afirma sua própria autonomia, não só a respeito da organização da vida coletiva, mas também em todos os aspectos da vida individual, mesmo daqueles relacionados a estruturas profundamente antropológicas, como o do nascimento, identidade sexual, morte? Frente à dilatação das reivindicações de autodeterminação do sujeito, Bergoglio, consciente de que os métodos de diálogo com os homens contemporâneos até agora utilizados pela Igreja revelaram-se pouco eficazes, decidiu por um caminho novo.

IHU On-Line – De que forma Francisco compreende a relação entre a Igreja e a sociedade? E como manifesta isso em seu pontificado?
Daniele Menozzi – Parece-me que o núcleo fundamental da posição de Francisco em relação à sociedade contemporânea consiste na percepção de que a relação entre a Igreja e os homens não pode ser deduzida a partir de uma doutrina estabelecida a priori e considerada válida para todos os tempos e em todos os lugares. Isso não significa que a Igreja caia no relativismo, como pensam os tradicionalistas que se opõem veementemente ao pontífice. A Igreja tem o Evangelho como ponto de referência iniludível e absoluto. E Bergoglio entendeu que o Evangelho só pode ser compreendido e comunicado unicamente nos acontecimentos da história. A pretensão de estar fora e acima da história, como a Igreja fazia nos últimos dois séculos, significou a renúncia de estar em sintonia com o mundo contemporâneo.

São, afinal, os sinais dos tempos que nos permitem compreender os traços da mensagem evangélica que interceptam, em determinada situação histórica, as profundas questões humanas. O papa Francisco entendeu que nas condições da sociedade de hoje, a misericórdia constitui o núcleo profundo do Evangelho, que encontra sua ressonância na vida coletiva marcada pela difusão de problemas dramáticos em nível planetário: a crescente pobreza material; as iminentes ameaças de guerra, até mesmo nucleares; as mesquinhas respostas nacionalistas às grandes ondas migratórias; a organização econômica marcada pela idolatria do lucro; a degradação ambiental aparentemente irreversível.

IHU On-Line – Como compreender a concepção de Francisco acerca da Doutrina Social da Igreja ? Quais as novidades e continuidades da Doutrina Social em Francisco?
Daniele Menozzi – A Doutrina Social historicamente representava uma ideologia, inevitavelmente marcada pela subordinação da vida social às diretrizes da autoridade eclesiástica, com a qual a Igreja contrapunha um projeto de organização social cristã às propostas que vinham seja da ideologia liberal, seja da ideologia socialista. O programa de uma contrassociedade católica, portanto, parece difícil de conciliar com uma visão pastoral da Igreja, que Bergoglio propõe ao homem de hoje: um hospital de campo, onde os cristãos procuram tratar com a medicina da misericórdia as tantas feridas infligidas aos homens pela organização contemporânea da vida coletiva.

Parece-me que o papa Francisco procura, a este respeito, operar uma transição prudente do passado ao futuro: pretende manter o conceito de Doutrina Social, ainda seguida por grande parte do mundo católico, mas, ao mesmo tempo, se esforça para dar um impulso à sua transformação. Trata-se de certificar-se de que a Doutrina Social da Igreja não seja mais percebida como um sistema aplicável em todos os lugares, mas que representa a maneira pela qual o Evangelho da misericórdia é variamente colocado em prática em contextos históricos e culturais concretos e específicos onde operam os cristãos. Em síntese, acrescento à questão uma expressão do Papa: deve-se assegurar que os crentes não se sirvam da Doutrina Social para ocupar espaços, mesmo de poder, como ocorria no passado, mas para iniciar processos de mudança em diálogo com todos os homens de boa vontade.

IHU On-Line – No que consiste a crítica do papa Francisco à razão moderna? E como o senhor observa essa crítica?
Daniele Menozzi – A razão moderna tinha a pretensão ser absoluta: a apresentação da lei natural como norma universalmente válida é o resultado mais evidente dessa afirmação. A Igreja, há muito, tomou essa postura, reivindicando ser a autêntica depositária da verdade absoluta a que chegava a razão moderna. Por exemplo, o papado dos séculos XVIII e XIX autoproclamava-se guardião e intérprete da lei natural.

O papa Francisco não abandonou essa perspectiva sustentada pelos seus antecessores, mas a redimensionou. Mudou a ordem das prioridades. Aos seus olhos, a principal tarefa da Igreja não é proclamar os princípios da lei natural, mas tornar a mensagem da salvação contida no Evangelho compreensível aos homens. Agora, para comunicar esta mensagem corretamente, precisamos conhecer os homens. Como a vida dos homens acontece ao longo do tempo, a história vem antes da razão abstrata. Bergoglio, em síntese, não questiona a tradicional assunção da razão moderna pela Igreja, mas privilegia a dimensão histórica em relação à dimensão doutrinal. Parece-me uma grande conquista para o catolicismo. Durante muito tempo a Igreja mostrou substancial desinteresse pela história, mas, por isso, pagou um preço bem salgado: a forte diminuição da sua capacidade apostólica e de sua eficácia pastoral.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a recepção dos documentos apostólicos desse pontificado para além da comunidade eclesial?
Daniele Menozzi – Parece-me que o papa Francisco goza de amplo consenso fora do perímetro definido pela pertença católica. Não só pela sua forte capacidade de comunicação, não apenas verbal, mas pelos seus gestos e estilos comportamentais, que suscitam grande e simpática atenção geral. Nem é apenas pelo fato de o mundo contemporâneo carecer de líderes mundiais capazes de destacar os grandes problemas do planeta, aos quais todo mundo hoje é sensível.

Certamente Bergoglio atrai atenção planetária, porque é um dos poucos homens de governo capaz de lidar com questões de interesse comum: globalização impulsionada pelo lucro, ecologia, migrações em massa, terceira guerra mundial em pedaços etc. Mas ele não é ouvido apenas por esse motivo. É ouvido fora da Igreja por outra razão: ele dirige-se aos não crentes sem a pretensão de convertê-los ao catolicismo, mas respeitando plenamente as convicções de cada um, pede para que se estabeleça um diálogo para juntos estudarem como resolver os grandes problemas que afetam a vida de todos. Desta forma, toca em uma profunda necessidade do mundo atual.

IHU On-Line – Em cinco anos de seu pontificado, Francisco realizou três encontros com movimentos sociais — em 2014 e 2016 em Roma e em 2015 na Bolívia . O que podemos inferir destes movimentos do Papa?
Daniele Menozzi – Parece-me que esses encontros manifestam uma das maneiras pelas quais se articula a nova relação entre Igreja e sociedade moderna que o papa Francisco pretende promover. Não se trata de movimentos de caráter confessional, ao contrário, dentro deles operam também não crentes. Mas isso não impede que o Papa encoraje suas atividades. Francisco reconhece que esses movimentos partem de duas atitudes que podem ser plenamente compartilhadas pela ética cristã: por um lado, a observação de que a organização atual da vida coletiva não corresponde às exigências da justiça; por outro, o compromisso de identificar as formas mais adequadas para transformar essa situação desigual por meio de processos que estimulem a participação e a democracia.

Bergoglio, portanto, apoia as diretrizes básicas desses movimentos, mas ao mesmo tempo lhes deixa plena autonomia para determinar concretamente os objetivos e as formas de ação. Em suma, o Papa não intervém para limitar, à luz da doutrina da Igreja, a autodeterminação dos sujeitos sociais produzidos na história. Acompanha-os e os apoia, enquanto buscam a mudança de uma estrutura social julgada iníqua, deixando para sua dinâmica interna a tarefa de escolher os caminhos apropriados para esse fim.

IHU On-Line – Entre os três encontros com movimentos sociais, o mais significativo foi o de La Paz, na Bolívia? Como o senhor interpreta o discurso feito nesta ocasião?
Daniele Menozzi – Nesta ocasião, o papa Francisco esclareceu muito bem quais são os problemas da atual organização da vida coletiva em nível planetário: falta de teto, terra e trabalho (os três "t" dos movimentos populares), que impedem a conquista da dignidade plena para muitos homens, é atribuída a um único fator: a idolatria do lucro. Mas Bergoglio não se limitou ao diagnóstico da situação atual, também insistiu que a mudança é possível, e que essa mudança está relacionada com o desenvolvimento de uma cultura do diálogo fraterno entre os homens, principalmente entre os pobres, os excluídos, os desempregados, os trabalhadores explorados, enfim, entre todos os afetados pela globalização econômica. Os movimentos populares oferecem um exemplo desse encontro fraterno.

Nesta ocasião, o pontífice também lembrou que a unidade entre todos os povos é uma condição para a obtenção de uma estrutura que substitua a dominação do dinheiro pela justiça e a paz. Ele disse que no passado a Igreja nem sempre foi capaz de promover esse objetivo, por exemplo, apoiando iniciativas coloniais; mas acrescentou que hoje ela consegue entender que a unidade não significa uniformidade. Ele, assim, projetou no plano social a imagem do "poliedro", que tinham usado em outra ocasião para o âmbito eclesiológico: trata-se de realizar uma forma de convivência entre os povos, que garanta uma unidade embasada na pluralidade, de modo que cada um deles possa manter sua identidade cultural.

IHU On-Line – Quais são as maiores fragilidades e desafios deste pontificado?
Daniele Menozzi – Naturalmente, é difícil julgar um pontificado em andamento. Faltam, inevitavelmente, muitos elementos para formular um julgamento bem fundamentado. No entanto, muito esquematicamente, colocaria dois problemas. Em primeiro lugar, o Papa, como eu disse a propósito da Doutrina Social, iniciou uma transição do tradicional projeto de reconstrução da sociedade sob a guia eclesiástica para uma presença dos crentes na história baseada na misericórdia evangélica. Nesta trajetória, obviamente, permanecem elementos ligados ao passado. A persistência de incrustações e resíduos da tradição oitocentista e novecentista constituem uma dificuldade que enfraquece o caminho do pontificado.

A segunda questão é talvez ainda mais relevante: Francisco propõe um novo modelo de relação entre Igreja e história dos homens, mas o faz dentro das estruturas e instituições de uma igreja ligada ao modelo anterior, estabelecidas no século XVI, seguindo o Concílio de Trento . É claro que o Papa se concentra na transformação dos corações, e não na mudança institucional, acreditando que a segunda seguirá a primeira. Permanece o problema, contudo, de realizar uma novidade com os instrumentos herdados da era da Contrarreforma .

IHU On-Line – Que leitura é possível fazer a partir das críticas a Francisco dentro e fora da Igreja?
Daniele Menozzi – As resistências às mudanças propostas por Francisco são de vários tipos. Obviamente, toda mudança provoca resistência daqueles que querem preservar as condições atuais. Mas, além dos círculos católicos conservadores, parece-me que a resistência mais relevante pode ser encontrada em duas áreas, frequentemente entrelaçadas. Há alguns (e entre eles até mesmo alguns cardeais idosos) que acusam o Papa de heterodoxia, aproximando-se das posições dos tradicionalistas anticonciliares. Trata-se de uma posição que projeta na grande Tradição católica concepções amadurecidas na Igreja nos últimos séculos: são católicos desprovidos de senso histórico, porque, ao invés de tomarem o caminho de dois mil anos de cristianismo, elevam a valor eterno e imutável o rosto da Igreja de Roma do Concílio de Trento em diante.

A segunda resistência vem daqueles que acusam o Papa de ter sucumbido ao comunismo: são os que querem preservar privilégios e interesses e, por isso, não podem aceitar uma igreja que, ao invés de defender as situações vantajosas em que vivem, assim como ocorria no passado, pretende promover processos de mudança em favor de uma autêntica justiça nas relações entre os homens. Deve-se notar aqui que, apesar de repetidos pedidos, Bento XVI, até agora, rejeitou a tentativa dos círculos que visavam torná-lo o ponto de referência das acusações dirigidas a Francisco.

IHU On-Line – O senhor trabalha com o tema do totalitarismo, especialmente no livro Cattolicesimo e totalitarismo. Chiese e culture religiose tra le due guerre mondiali (Morcelliana, 2004). Hoje, em todo o mundo, estamos vendo um aumento de perspectivas mais totalitárias. Como o senhor avalia a posição da Igreja de hoje diante desse cenário?
Daniele Menozzi – Mais do que o reaparecimento de perspectivas totalitárias – que não faltam, basta pensar ao serpentear, em diversos países, incluindo os europeus, de convocações ao racismo e ao antissemitismo – penso que estamos testemunhando a volta, no Velho Continente, mas também fora dele, dos exclusivismos de base nacionalista. A Igreja não tem, a respeito disso, um passado exemplar: na primeira metade do século XX, de fato, pensou poder controlar as regurgitações nacionalistas distinguindo entre um nacionalismo moralmente lícito e outro moralmente ilícito, sem se dar conta de que, desta forma, fornecia, ainda que indiretamente, legitimação aos impulsos nacionalistas, afrouxando nos fiéis a capacidade de reconhecer a radical incompatibilidade entre cristianismo e nacionalismos.

Parece que Bergoglio seja estranho a essa tradição eclesiástica. Seu ensino fundamenta-se na proclamação da dignidade de cada pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus. Dessa premissa faz depender tanto a igualdade de todos os homens – que têm, portanto, idênticos direitos inalienáveis e imprescritíveis, independentemente da pertença religiosa, étnica, cultural etc. – como a inextinguível irmandade entre eles. Parece-me que este seja um antídoto importante à exumação de respostas nacionalistas e autoritárias nos momentos de crise econômica e social dramática, como ocorreram após a Grande Guerra (fascismo), ou depois da Grande Depressão de 1929 (Nazismo).

Naturalmente, não se sabe se o antídoto será eficaz, porque o real conhecimento da história foi a última coisa com que se preocuparam os governos das décadas recentes, caracterizados por escasso nível político e cultural. Mas, pelo menos, pode-se pensar que as políticas nacionalistas não mais possuem o apoio da Igreja de Roma.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Daniele Menozzi – Somente os auspícios para que a linha de renovação eclesial, perseguida pelo papa Francisco, possa superar as diversas formas de resistência que encontra, nos vários níveis, e descubra caminhos para uma completa realização.■

Leia mais

- Com Francisco, atualização ou declínio da doutrina social da Igreja? Artigo de Daniele Menozzi, reproduzido nas Notícias do Dia de 12-12-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- Depois de qual história da Igreja. Artigo de Daniele Menozzi, reproduzido nas Notícias do Dia de 20-12-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

- Como nasceu a categoria interpretativa da Grande Guerra. Artigo de Daniele Menozzi, reproduzido nas Notícias do Dia de 5-12-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

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