Edição 520 | 23 Abril 2018

Investir na apuração para enfrentar as fake news é como remendar um cano furado

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Ricardo Machado e João Vitor Santos

Para Antônio Fausto Neto, é preciso repensar e ressignificar todo o sistema que gera as notícias falsas e não apenas ficar pontualmente tentando desmentir o que está em circulação

A sociedade de hoje é atravessada pelas lógicas dos processos comunicacionais. É o que o jornalista e professor Antônio Fausto Neto compreende como sociedade em vias de midiatização. Em linhas gerais, é a mudança no tecido social imposta por processos comunicacionais e catapultados por dispositivos tecnológicos, como a internet e as redes sociais. Não há mais um emissor e um receptor. Somos todos emissor e receptor o tempo inteiro e para todo o lado. Não é difícil deduzir que desse cenário podem surgir informações falsas ou mesmo opiniões impostas como verdade. Como enfrentar?

Fausto, na entrevista concedida presencialmente à equipe da IHU On-Line, destaca que não há uma forma definitiva de enfrentamento. Ele prefere ir pelo caminho que consiste em compreender o processo de midiatização como um todo e a forma que se estabelecem as fake news. É algo mais complexo do que um processo de checagem, como alguns propõem. “Isso é uma ação, mas não uma ação sobre o sistema. Precisamos pensar e agir sobre o sistema”, pontua. Para o professor, “fazer só a checagem seria como detectar vazamentos num cano de fluxos de água e colocar um rebite. Não se está agindo sobre o sistema como um todo. Precisamos pensar de forma reflexiva sobre esses processos”.

E é dessa reflexão que imagina que pode surgir um “processo de letramento, educar a sociedade para compreender o protocolo de comunicação no qual ela vive, desautomatizar a comunicação”. Consiste numa forma de pensar que coloca o sujeito como alguém realmente ativo e interacional no processo, e não um simples reprodutor de informações que circulam pela rede. “Se nós estamos no processo, há um convite desse nível pedagógico e acadêmico no sentido de desenvolver uma autorreflexão sobre o processo no qual estamos engajados”, sintetiza. “O problema não é mais do dispositivo, pois somos nós os atores do dispositivo”.

Antônio Fausto Neto é graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e doutor em Sciences de La Comunication Et de L'information - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, da França. Atua como pesquisador e professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e também como presidente do Centro Internacional de Semiótica e Comunicação - Ciseco. Entre seus livros publicados, destacamos O impeachment da televisão (1995); Ensinando à TV Escola (2001); Lula Presidente - Televisão e política na campanha eleitoral (2003); e O mundo das mídias (2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como as sociedades em vias de midiatização produzem um novo modo de ser/estar no mundo?
Antônio Fausto Neto – Durante muitos séculos, a expressão da sociedade, de sua organização social, se fundou em estruturas, as quais podemos chamar de estruturas e seus respectivos campos operadores, no sentido de que passava pelos campos a expressão de saberes, de disciplinas, de éticas, de conhecimentos. Dentro dessa configuração organizacional, a comunicação se constituía um elemento co-cooperador. É a ideia da comunicação como uma atividade simbólica, mas, fundamentalmente, que ganha um nível exponencial quando os meios aprecem como lugares que seriam organizadores de interações, seriam instâncias de tematização do que se passava nos outros campos e também num certo âmbito de regulação/gestão da atividade na sociedade. É nesse contexto que aparece essa expressão dos meios como o quarto poder, um poder fiscalizatório, um poder de auxiliar das atividades dos outros três poderes.

Entretanto, dentro disso, há uma proeminência desse campo cuja gestão técnico-simbólica apontava para uma problemática pelo fato de ser ele um elo de contato com os demais campos. Isso está na consagrada literatura que trata da sociedade dos meios. Tal perspectiva vale por muitos anos, porque é uma transição de um momento em que a sociedade estava configurada por disciplinas, campos, cujas interfaces se passavam em respeito às fronteiras respectivas desses lugares, desses campos.

O que acontece num ciclo que é muito rápido – afinal, 50 anos não são nada em termos históricos – é uma transformação dessa organização formada em campos, ou numa atividade interacional de campos — como os campos jurídico, econômico, científico etc. — para uma atividade interacional que passa a ter como seu protagonismo não mais os meios como lugares organizadores, mas a expressão de lógicas e operações midiáticas como uma espécie de referência constituinte de um novo modelo de sociedade. Por outras palavras: as práticas sociais de outros campos continuam a funcionar, mas, agora, altamente permeadas por lógicas e operações midiáticas que atravessam todas as práticas sociais, ainda que de forma diversa.

Então, a comunicação que era um elo, um elemento, passa a ser uma referência constituinte da organização social. Isso ganha uma expressão forte na medida em que temos no seu bojo o aparecimento do fenômeno internet, que não é uma revolução tecnológica abstrata, mas uma revolução técnica, porque incide sobre as relações sociais, apontando para um novo tipo de relações sócio-técnicas, com elos e vínculos sociais fortemente vigidos por elas. E não é só isso: a própria condição do acesso à rede internet e seu consequente funcionamento é uma revolução.

Revolução e transformações decorrentes dela

E é uma revolução e uma evolução na medida em que reformula o nosso contato com o conhecimento, o nosso contato com as instituições e o nosso contato com o outro. O fato de todos podermos ascender a níveis num processo de interação com muito maior velocidade e menos obstáculos produz uma reformulação na arquitetura comunicacional ou na arquitetura dos processos interacionais. E isso se dá porque é aí que ganha corpo uma ação intensa de comunicação exponenciada pela internet, o que nós vamos chamar de desenvolvimento dos processos de midiatização.

Qual o efeito disso mais imediato? Transformação de grandes polos geradores da atividade interacional, polos industriais tecnológicos, mídias, e o polo societário, a recepção, a transformação disso de uma relação ‘um para todos’ de ‘todos para todos’. E isso tem muitas consequências. A mais imediata significa a quebra dessa bipolaridade, dessa atividade irradiadora e, com isso, o esmaecimento do trabalho institucional da comunicação. É a possibilidade de fazer em companhia que se configura e isso é a possibilidade de transferência do fazer de instituições midiáticas para a sociedade.

Havia um conhecimento sólido de que os meios eram os geradores de conhecimentos, segundo suas lógicas próprias, para uma situação em que isso tudo se fratura. Dessa fratura, todos se tornam geradores e receptores de informação, de conhecimento etc. Ou seja, se instaura um novo circuito, uma nova condição de circulação, não mais fundada em dois, no polar, mas fundada numa atividade em que as características de emissão e recepção são frágeis e essas passam quase a ser características mutantes.

IHU On-Line – E todo esse contexto, inevitavelmente, altera as relações sociais entre as pessoas, instituindo uma nova concepção de sociedade. Correto?
Antônio Fausto Neto – Sim. É por isso que dizemos que a midiatização afeta todo os circuitos, criando uma nova sociedade, uma nova ambiência. Estamos todos nisso. Não se trata de uma revolução que afetou apenas a instância comunicacional no nível profissional e industrial, é uma mutação que se produz no tecido e na própria organização social. Esse fazer em companhia, fundado em elos, é atravessado por essa lógica e a cultura do capitalismo contemporâneo, do que chamamos do capitalismo líquido. E isso tem uma consequência em nossa vida quando somos convidados a fazer menos pelos elos organizacionais, pelos elos da burocracia, pelos elos das lealdades comunitárias e fazer por si mesmo. É a lógica da cultura autoinstrucional, faça por si mesmo, crie por si mesmo. Isso é uma consequência sobre o que depois você vai acabar chamando de fake news.

Assim, a midiatização gera muitos efeitos e impactos e, talvez, o mais importante e que damos pouca atenção, porque foi pouco estudado, é a transformação da circulação, ou as transformações das condições de circulações de mensagem e de sentidos. Há um novo cenário que gera muitas consequências do ponto de vista técnico, ético, jurídico, social e simbólico. Esse cenário se caracteriza pela transformação das instituições, pois todas passam a ser atravessadas com preocupações e injunções de cultura midiática, e dos próprios meios de uma atividade clássica para uma atividade ultraespecífica ou bastante singular, que são as chamadas instituições industriais que se valem de técnicas digitais. É o Facebook, por exemplo.

E aí se cria um novo cenário comunicacional e informacional que se complexifica no sentido de seu desenvolvimento, mas, também, de seu funcionamento. As ideologias que fundamentam essa mutação contavam como se estivéssemos criando a rede das redes e apontando que estávamos criando mais uma noção de transparência. Mas essas ideologias são de engenheiros, de lógicas lineares que supunham que todo o processo de mutação de sociedade se dava de um modo linear, que as redes gerariam isso e aquilo como consequência. Mas o que vemos? Quanto mais rede, mais nebulosidade, mais obscurantismo. Quanto mais expansão, mais encolhimento, quanto mais funcionamento de ações de mídia, mais a sociedade gera contrapontos e pontos e estratégias de fuga a esses processos. Quanto mais oferta da modernização, da expansão, das condições de interação, mais crise. Olhe para a crise do Facebook que está aí. Isso é uma crise gigantesca, não é uma crise de instituiçãozinha. É a crise de um paradigma sobre o qual nós fizemos repousar muitas crenças de transparência, circulação e interação achando que as redes operariam por si mesmas sem que as mesmas fossem atravessadas por injunções de interesses de projetos, de estratégias empresariais, políticas e de vigilância.

Assim, o que apontávamos como a noção de um novo mundo, resultam em novas problemáticas. O ciclo da comunicação, da midiatização, se torna muito importante porque gera muitos feedbacks complexos, e não lineares, onde de fato a sociedade tira proveito disso. Mas também gera impasses e inflexões que merecem ser trabalhadas. Talvez aí é que se coloque o fenômeno das fake news.

IHU On-Line – Então, podemos pensar as fake news como uma espécie de efeito ou consequência dessa sociedade em vias de midiatização?
Antônio Fausto Neto – Sim, pois os modelos de comunicação eram fundados na noção de autoralidade. Quando se pensar num modelo de comunicação, sobretudo comunicação massiva, ela é fundada nas referências de um circuito técnico industrial pesado, nessa noção de autoralidade – o sistema de produção era repousado numa estrutura complexa, eram os jornalistas que faziam –, repousava na ideia de mediação e de certas mediações dos experts, o jornalista, e havia ainda dispositivos regulatórios de retroação.

As práticas jornalísticas eram fundadas sobretudo nas verdades, suas ideologias, instrumentais, mas perpassadas também por referências cujo horizonte apontava que se poderia ir só até certo ponto. Isso porque havia um pacto chamado contrato social. As nossas gramáticas são verdadeiras do ponto de vista da criação da noticiabilidade, mas elas lidam em oposição com constrangimentos regulatórios. Essa é a filosofia, a ideologia do modelo comunicacional industrial que perpassou nossa vida por 30, 40, 100, 200 anos. Por isso que os meios eram meios, meios de uma atividade. Sendo meios, não significa dizer que trabalhavam também com suas aporias e com suas falácias – ou seja, na noção de notícia repousa por trás a afirmação de que sempre é uma formação substitutiva.

A essência do jornalismo foi sempre trabalhar com a reprodução de alguma coisa que se passou em outro momento e circunstância, cujo processo de reprodução passa por leis internas, a cultura de um modo geral, mas, fundamentalmente, as ideologias do jornalismo. E como formações substitutivas compreendemos aquilo que trata de representar alguma coisa que está ausente. E sobre esse processo há muitas discussões, onde o jornalismo deforma, enviesa, onde mente, mas nunca essa noção de falsidade se colocou. Nunca se tratou como notícia falsa no sentido formal, porque de fato o sistema todo de produção de crenças e sentidos repousava sobre uma noção regulatória, verificacionista. Mas havia uma condição adversativa sobre esse fazer, essa oferta comunicativa. Havia leis que ainda resultavam remanescentes desse processo contratual societário.

IHU On-Line – O que passa de uma coisa para outra? O que provoca essa mudança?
Antônio Fausto Neto – Na medida em que desaparece a autoralidade, na medida em que essa autoria, a fonte, ela se embevece dos instrumentos e insumos midiáticos e passa a fazer o trabalho que o jornalista fazia. Na medida em que a mediação não só jornalística, mas todas as estruturas mediadoras esmaecem a vida social, a tarefa do jornalista, do médico, é cada vez mais atravessada pelo autodiagnóstico, todos os processos de diagnóstico são atravessados pela emergência de dados, ficam em função dos algoritmos. Assim, na medida que essa atividade mediadora é fragilizada – justamente por essa ideologia do ‘faça você mesmo’ –, significa que também desaparecem os mecanismos regulatórios dessa atividade, que passa a funcionar na mão de todos. Assim, todos são criadores de notícias, todos são criadores de sentido, todos somos veiculadores de leitura e de interpretação.

E desaparece uma noção central no tecido social, que é a noção de referência. Então, essa noção referencial política, ética etc. desaparece no funcionamento da ambiência e do funcionamento da midiatização pelo fato de todos fazermos tudo ao mesmo tempo, operando os sentidos. Aquilo que era um trânsito de sentidos construído em mediações e negociações, em noções de verdades e gramáticas específicas, achata-se, isso se diminui e passa a dar lugar a um circuito, numa atividade circulatória em que desaparecem esses parâmetros de mediação, verificação, regulação e referenciação.

IHU On-Line – Dentro dessa lógica de que todos são capazes de gerar conteúdos, não importando o que, há o imenso volume de informação que se põe em circulação. E, dessa lógica, aparecem as fake news. Mas por que eu devo ter mais “medo” das informações postas em circulação por qualquer um, e não tanto “medo” com o que é posto pelo jornalista, já que esse também trabalha com uma construção, uma representação que não necessariamente pode ser real?
Antônio Fausto Neto – Não estou tomando posição de uma coisa ou de outra, estou propondo um exercício de comparação. Quero, com isso, destacar que funcionávamos num modelo de produção de sentido calcado em referências fornecedoras dos elementos que nos possibilitavam, entender, descrever ou enunciar. Não é que esses fenômenos desapareçam no sentido, não é que os sujeitos nem as instituições deixam de criar sentidos. Estou dizendo que se transforma a atividade de produção de sentido ou de enunciação na sociedade na forma ‘de uma para outra’. Fazendo-se esses processos com muito menos constrangimentos e intermediários significa que desaparecem cuidados, deliberações que repercutem sobre o processo de nomeação das coisas na medida em que nós apelamos cada vez menos às mediações referenciais que nos ajudam a afirmar, a nomear, desmentir etc.

Tens razão ao observar que passamos de um estado de mediação, de referenciação – e não há nenhuma sociedade humana sem referenciação – para um estágio que é caracterizado informacionalmente por dois tipos de fenômenos: ou os condomínios de opinião – os quais se dão como uma forma de resistência dos meios clássicos de comunicação, pois ainda se aquartelam em unidades, achando que eles podem construir esse front de defesa da informação e da opinião –, ou pelas bolhas que se constituem segundo as mais diferentes estratégias no interior das redes sociais. É um fenômeno que está borbulhando por aí, é uma turbulência altíssima na qual estamos vivendo.

Não estou falando que a inexistência de fake news resolveria uma questão que é cara à Teoria da Comunicação, que é o fato de que quando nós operamos em produção de mensagem e recepção, ou operávamos nos modos clássicos, nós nos baseávamos em gramáticas, em produção e em recepção. As notícias seguiam certas pautas que tinham essas gramáticas de produção e circulação como referência. Acontece que as gramáticas que orientavam os processos de recepção de mensagens parecem desaparecer nesse processo de construção de notícia hoje, na medida em que cada um pode dizer isso recorrendo a pautas e referências genéricas, empíricas, não profissionais, fundadas em bases diversas ou fundadas num opinionismo e significando que se as gramáticas perdem o sentido, perdem a função, significa que você deixa de ter os instrumentos com os quais vai gerar o processo de informatividade na sociedade que vivemos.

A era do ‘tudo vale’

Nesse contexto, tudo vale. E se toda a enunciação vale, no sentido de que não há lógicas de constrangimento, significa que esse conceito de fake news é um conceito equivocado. Isso porque parte do pressuposto de que tudo que era fake news não era verdade. Só que o processo de produção da notícia sempre foi permeado por injunções fortíssimas, mas havia mecanismos verificadores e reguladores na organização social. Com a circulação operando em todos os níveis hoje, diminuem parcialmente essas restrições de verificações, de avaliação, de julgamento, de deliberação e isso cria uma espécie de plataforma de um correio imenso de opiniões fundadas em impressões, onde, se tudo vale, cabe também a exacerbação de pontos de vista dos mais estúpidos e esdrúxulos e que nós estamos chamando de fake news.

Evidentemente que isso passa não só na cabeça das pessoas individualmente, mas também passa pelas atividades das organizações sociais. Como as instituições estão também permeadas por essas injunções não lógicas e não mais gramáticas, há instituições especializadas em produzir ações exasperadas sobre não importa ‘o que’ ou ‘quem’ no mundo em que vivemos. Observe o paradoxo: falamos muito em regulação hoje, mas por muito tempo nós fizemos atividade intensa de desregulação do contrato social, das regras do jogo, dos serviços à sociedade. Desregulamos economia, energia, telecomunicações, aviações e criamos o nível terciário, um “pseudonível regulatório” de avaliações. E isso não funcionou. Passamos desse estágio da desregulação para um estágio ‘faça por você mesmo’, e agora se fala novamente de regulação.

Uma outra regulação

O que estão fazendo os países europeus diante dessa crise do Facebook? Estão instituindo dispositivos regulatórios que possam corrigir o funcionamento de um avanço do capitalismo no que diz respeito ao funcionamento e produção da informação. É essa criação de leis que vão aparecer logo, logo na Alemanha, França, Itália etc. Volta-se à ideia de que é preciso frenar, administrar, porque de fato há expansão numa forma para além daquilo que as culturas poderiam suportar e projetar. A questão das fake news é um conceito que merece ser debatido porque, senão, vai se automatizar a sua compreensão, quando, na verdade, precisa ser estudado, pois abandonamos um conceito rico na compreensão da sociedade humana que foi o conceito de boato.

IHU On-Line – Como o senhor concebe o conceito de fake news? E no que esse fenômeno se difere das falsas notícias de antes, do boato e até fofoca caluniosa que existe quase desde a primeira organização social na terra?
Antônio Fausto Neto – Observe que, se você nomeia isso como falsas notícias, já está revelando um julgamento de valor cujo funcionamento do fenômeno trata de dissipar e apontar uma outra compreensão. Ou seja, toda a sociedade que nos precedeu foi fundada em narrativas, ideologias, crenças, leis cuja explicação se fundava mais com normas espirituais, com lógicas de uma racionalidade de outra ordem. Nessa sociedade, havia também outros tipos de gatekeepers que não os modernos. Eram as pitonisas antigas, os narradores antigos de quem Benjamin fala. Era uma sociedade que estabelecia uma crença direta com um poder divino, um poder superior na medida em que suas lógicas passavam por uma racionalidade mais “cabeça a cabeça”. Não havia intermediações, aquilo que fugia à explicação e inteligibilidade ganhava um circuito novo de interpretação que poderia ser chamado de falsa notícia ou boato etc. É um estágio da imaginação humana, é um estágio do modo de funcionamento dos imaginários.

Esse imaginar em voz alta, ou expressar esse ato de imaginar, ganharia circuitos, mas não tinha essa exasperação de um deslizamento de uma intensidade promovida e animada, dinamizada pela lógica industrial-capitalista-midiatizante. É outra problemática. Pena que tenhamos abandonado isso e naturalizado essa transferência automática de uma notícia para outra. É preciso estudar isso porque muitos autores se preocuparam com isso, mas foi um capítulo da sociologia dos coletivos, quando nós estávamos ainda preocupados com a opinião pública, e quando fundamos a ideia de opinião pública, a Sociologia, a Psicologia Social, nós racionalizamos o conceito da fabricação de crenças. Quando estudávamos o processo das ideologias, das crenças do modo clássico, como assim pensou a Psicologia Social, Freud e os grandes autores pensaram a massa com categorias muito mais refinadas do que aquilo que a estatística moderna racionalizou grandes fenômenos coletivos em mensurações estatísticas.

A estatística foi uma espécie de representação muito curta de fenômenos complexos. E, lá atrás, podemos ver o conceito de boato na literatura da Psicologia Social. E emana de lá com muito mais força, com uma virulência explicativa muito mais rica do que hoje até então fez a estatística social. Quando fundamos a noção de opinião pública, nós naturalizamos um conceito forte através de uma noção automatizante. A tal ponto que a ideia de opinião pública é uma noção reideologizada modernamente, nessa perspectiva racional.

Um exemplo disso é o juiz Sérgio Moro . Quando ele fala que quer prestar conta do que faz a opinião pública, de que opinião pública está falando? Está falando de uma opinião pública que é recalcada no texto dele como os editores de jornais, que são os formadores de opinião, que são os que tomam as decisões no mercado econômico, mas não a opinião pública como um tecido muito mais complexo. Porque sobre isso não há acordo. Opinião pública não é um conceito automatizante e uniforme, é composto de muitas leis e inquietudes. O máximo que foi tentado explicar sobre isso, pela psicologia, foi por veios muito mais sofisticados como o conceito de homem ordinário em Freud. É um homem dotado de uma potência, mas ele singularizou essa potência, a explicação da significação, na condição do humano, do indivíduo. Toda obra de Freud é atravessada por esse conceito do homem ordinário.

Fake news

Do ponto de vista da Teoria da Comunicação, fake news é um estágio que simboliza o resultado da exasperação desse circuito, onde saímos do contexto comunicacional de fazer em companhia, dos campos, dos contatos, das relações, das negociações, para um ‘faça por ti mesmo’. Foi um convite dirigido ao indivíduo a tal ponto que não foi algo abstrato. A sociedade se organizou individualmente para produzir, por conta própria, por meio dos atos dos indivíduos, sentidos. A tal ponto que você pode dizer qualquer coisa, não importa o que você diga hoje, pois você pode refazer amanhã, pois isso não tem mais uma força de expressão de verdade, de julgamento, de valoração pública, porque os próprios atores políticos de hoje são portadores desse tipo de comportamento. Observe Trump . É um típico operador de fake news nesse sentido que estamos dando aqui. Perdeu-se valor ao que se diz, dá-se valor ao poder dizer.

É tão verdade isso que os curadores dizem que a sociedade precisa resolver, precisamos controlar, criar mecanismos de checagem. Mas é a checagem de um circuito que é incontrolável. Saímos dos campos, fomos para os circuitos, os circuitos bifurcam-se e aí ganham níveis de indeterminação sobre o que não se pode pensar suas retroações. É um ir adiante infinito.

IHU On-Line – E qual a solução para esse estado?
Antônio Fausto Neto – Não existe uma solução normativa para isso. Países europeus estão à beira de criar normas regulatórias, mas a regulação cabe a escapes e pontos de desvio, porque é um fenômeno enraizado, é a expressão do efeito do modelo de comunicação. Existem alternativas em processo de formulação. Um deles é o processo de letramento, educar a sociedade para compreender o protocolo de comunicação no qual ela vive, desautomatizar a comunicação ou desautomatizar a posição de receptor. Nós éramos agentes que esperávamos a leitura, esperávamos chegar o jornal, o horário do noticiário do rádio e da TV, mas agora abandonamos esse estágio de espera, estamos no processo. Se nós estamos no processo, há um convite desse nível pedagógico e acadêmico no sentido de desenvolver uma autorreflexão sobre o processo no qual estamos engajados.

É como compreender essa ação comunicacional que foi proposta num nível muito abstrato por Habermas . Quando ele pensou ação comunicacional fundada no diálogo, estava pensando numa sociedade com altos níveis de simetria. O diálogo é possível quando há uma simetria de posições e de intercambialidades sócio-linguísticas e políticas. Ora, passamos desse estágio do espaço público habermasiano e estamos num estágio muito mais complexo de relação de forças onde cada um diz e o valor do que se diz não está no que se diz, mas no modo de dizer.

IHU On-Line – Uma forma de enfrentar as fake news sem cair na censura pode se dar por essa via do letramento que o senhor cita? Isso é ensinar a ler e observar a informação nesse novo ambiente?
Antônio Fausto Neto – Sim, mas esse ensinar a ler a informação no novo ambiente é muito mais do que isso. É desenvolver processos longos que passem pelas instituições que têm sua força ainda, como a universidade, a família, e os atores dessas instituições em que vivemos se concernirem compreensivamente e reflexivamente dessa condição na qual nos encontramos todos. É desenvolver um concernimento reflexivo sobre isso, é nos desautomatizar. É complicado, pois temos como desafio a posição de uma geração que já nasce nessa cognição. As crianças já nascem sendo convidadas a dar um salto nisso, que nelas é uma potencialidade que é a habilidade do movimento, do contato, do tátil.

Falava-se muito que é preciso educar para os meios, desenvolver a leitura crítica quando se dizia que éramos reféns da comunicação, dos meios, da televisão, diziam que eles nos alienam. Não é essa a problemática, é de outra ordem, até porque nós passamos por isso. E passamos pelo fato de reconhecermos que a midiatização é irreversível, que a midiatização afeta as práticas sociais, todas, mas de modo diverso, que a midiatização realiza sua atividade através de feedbacks complexos, entre lógicas diferentes, e é da tentativa de esses feedbacks serem desenvolvidos de forma crítica e analítica que avança nosso processo de compreensão de nossa vida comunicacional.

Há uma defasagem estrutural na atividade da comunicação. Ainda que estejamos desenvolvendo uma comunicação face a face, ela está fundada numa atividade em que não se sabe o que um vai dizer e vice-versa. Passamos por isso nas interações dos meios quando lógicas de produção e recepção fundavam o contato humano, contatos sociais entre mídias e sociedade – por isso que a mídia não tem a capacidade de fazer a cabeça do indivíduo – e hoje ingressamos no terceiro nível, que é a interpenetração dessas lógicas.

Emergência de reflexão

Há uma interpenetração que precisa ser estudada, pois estamos em contato muito profundo entre nossas práticas com essa oferta comunicacional ou digital, porque também somos autores. O problema é que não vivemos compreensivamente o que significa essa interpenetração e já passamos para outro estágio, que é do deslizamento. Há mais ditos, mais opinião e não concatenamos isso por inexistência de um protocolo reflexivo. E isso é muito difícil, porque a sociedade vai para frente, é o ir adiante. E esse ir adiante sem obstáculos e constrangimentos é o que produz essa exasperação de pontos de vista. O que se produz quando alguém pensa isso reflexivamente? É a reação da sociedade à frase de Umberto Eco , que disse algo como “todos os internautas são imbecis”.

Ele não disse que as pessoas são moralmente imbecis. Disse que eram imbecis porque não sabiam o que significavam certas operações que estavam realizando no interior das redes. Todos nós temos maneiras de fazer mundo, mas as maneiras de fazer mundos eram pautadas por referências e hoje há um deslizamento. É como se não houvesse esses limites interpretativos fundados em certos argumentos de verdade para um e ideologias para outros, mas tudo passa a ser a impressão como opinião. E nesse bojo todo é que se situa o fenômeno fake news. O que se está chamando de notícia falsa é aquilo que se oporia ao que normativamente é dito como verdade, mas que também está impregnado de construções e de incertezas. E nós não nos interrogamos sobre isso, porque temos a compreensão disso automatizada.

IHU On-Line – Quais os desafios para lidar diária e objetivamente com as fake news? Por exemplo, recentemente, circulou a notícia em redes de WhatsApp dizendo que a vacina aplicada pela rede pública como prevenção à gripe não será eficiente em função de um novo supervírus que surgiu. Como lidar com esses processos?
Antônio Fausto Neto – Uma coisa é ter a clareza de que você não controla o circuito. Outrora se dizia que recebeu como um sujeito que recebia de algum lugar, que ela tinha procedência — um circuito fechado. Hoje, você recebeu concomitantemente a muitos. Por isso, controlar o circuito é impossível do ponto de vista da dinâmica. Agora, é possível lutar pela ressignificação do circuito. Seria fazer com que certos elos responsáveis por eles tivessem outra atividade e não atividade de se passivizar diante do funcionamento do circuito, deixando-o seguir adiante sem nenhuma intervenção interpretativa e que dê a ele uma outra valoração.

Nesse seu exemplo, ouvimos isso inclusive atribuído a uma fonte médica, mas não ouvimos circular nenhuma intervenção de segmentos de experts médicos dizendo que isso é fake news e esclarecendo a questão. É como se as coisas pudessem ser naturalizadas e vai se deixando ir adiante. Qual é o problema? Indo adiante essas informações são atraídas pelos indivíduos pelos seus vieses de interpretação, concernimento e intenção. Aí se constitui a bolha. Ou seja, quem fabrica a crença da coisa não é a oferta só, é o nó, enlace que se faz nisso. Os mediadores parecem ter abandonado essa posição de ressignificação.

Caso Marisa Letícia

Em outro exemplo: o episódio da doença de Marisa Letícia , esposa do Lula , em que médicos fizeram circular via WhatsApp informações sobre o estado de saúde e inferindo desejos de que ela morresse, como uma forma de castigo. Veja como isso vai passando pelas redes médicas e vai sendo dinamizado, até com as inferências de que deveriam ter feito isso ou aquilo para mata-la dentro do hospital. É um exemplo típico de como operam hoje as mediações, no circuito dos experts. Eles não só cruzam os braços diante da circulação desses enunciados, como também são autores dos enunciados. Abandonam a posição de informadores e intérpretes, ocupando outro lugar nessa cadeia que é o lugar de pôr adiante aquilo que é codinamizado por seus pares e de uma maneira irresponsável.

Mas, ao mesmo tempo, é preciso que se destaque que há a quebra da mediação. Quando o especialista médico coloca uma informação específica em circulação, ele o faz sem a ação de um mediador jornalista, assessor de imprensa ou até o chefe da equipe médica. Estamos entregues aos circuitos e como eles são momentâneos, perdem a autoralidade ou a responsabilidade da autoralidade. Qualquer um pode dizer, e até dizer que aquilo que foi dito por qualquer um, e a cadeia de significantes continua em construção. O problema não é mais do dispositivo, pois somos nós os atores do dispositivo. Esquecemos que a rede se constitui hoje como campo de batalha, mas operado por agentes e entidades sociais. Somos nós que estamos batalhando lá dentro.

IHU On-Line – É mais do que simplesmente fazer a checagem das informações?
Antônio Fausto Neto – Isso é uma ação, mas não uma ação sobre o sistema. Precisamos pensar e agir sobre o sistema. Fazer só a checagem seria como detectar um vazamento num cano de fluxos de água e colocar um rebite, fazer um remendo onde há vazamento. Não se está agindo sobre o sistema como um todo. Precisamos pensar de forma reflexiva sobre esses processos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Antônio Fausto Neto – Um livro que ajuda a pensar um pouco mais nessa minha perspectiva é Polegarzinha: Uma Nova Forma de Viver Em Harmonia, de Pensar as Instituições, de Ser e de Saber, de Michel Serres (São Paulo: Bertrand Brasil, 2013). E muito do que falamos por aqui está nas obras Homo Deus , de Yuval Noah Harari (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), A Cultura do Novo Capitalismo (Rio do Janeiro: Record, 2006) e Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação (Rio de Janeiro: Record, 2012), os dois de Richard Sennett .■

Leia mais

Um olhar estrangeiro sobre si mesmo. Perfil de Antônio Fausto Neto, publicado na revista IHU On-Line nº 512, de 2-10-2017.

“O processo de construção do voto religioso é perverso”. Entrevista especial com Antônio Fausto Neto, publicada na revista IHU On-Line nº 347, de 18-10-2010.

O Mutirão e a ambiência que nos constitui. Artigo de Antônio Fausto Neto, publicado na revista IHU On-Line nº 319, de 14-12-2009.

A midiatização e os governos latino-americanos. Entrevista especial com Antônio Fausto Neto, publicada nas Notícias do Dia, de 20-9-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

“A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é bom que seja assim”. Entrevista especial com Antônio Fausto Neto, publicada na revista IHU On-Line nº 289, de 13-4-2009.

Descentramento do lugar do jornalismo. Entrevista especial com Antônio Fausto Neto, publicada na revista IHU On-Line nº 254, de 14-4-2008.

As relações entre mídia e política no espaço público contemporâneo. Entrevista especial com Antônio Fausto Neto, publicada na revista IHU On-Line nº 202, de 30-10-2006.

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