Edição 518 | 27 Março 2018

Na segurança, direita e esquerda insistem no que não funciona

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Vitor Necchi

Para Marcos Rolim, ao amontoar pessoas em masmorras, o Estado abriu mão do controle sobre a execução das penas e permitiu o surgimento das facções prisionais

O Brasil ocupa a terceira posição na lista de países com maior número de pessoas encarceradas, com mais de 750 mil presos. Para Marcos Rolim, chegou-se a esse ponto por conta da política criminal. “Ela é largamente inspirada no modelo norte-americano de encarceramento em massa e está assentada em posições equivocadas”, explica. O resultado, no entanto, é negativo. “Ao amontoar milhares de pessoas em masmorras, normalmente por conta de crimes sem violência real, o Estado abriu mão do controle sobre a execução das penas, o que permitiu o surgimento das facções prisionais.”

A atual política de drogas é determinante para se entender a expressividade da população carcerária. “Suspeitos são presos no Brasil, como regra, não como resultado de investigações, mas em flagrante”, destaca Rolim. O trabalho da Polícia Militar se restringe aos delitos praticados nas ruas, basicamente os crimes contra o patrimônio (furtos e roubos) e os crimes de drogas. “Os presos por tráfico são, invariavelmente, varejistas; jovens pobres, das periferias, presos em flagrante. Não são os donos do negócio.” Rolim é taxativo: “Nossos presídios são máquinas de ampliação e agravamento das dinâmicas criminais”.

Há um equívoco na crença de que penas mais duras desencorajariam potenciais criminosos. “A impunidade, entretanto, não decorre da lei, mas da ausência da prova.” Para o especialista, “o problema da impunidade é um problema de polícia, não de legislação”. Por exemplo: apenas 10% dos homicidas são identificados no Brasil, o que significa que 90% seguirão impunes.

Rolim se mostra favorável à criação de um Ministério da Segurança Pública, “mas essa estrutura deveria ser concebida de modo a ser o núcleo dinâmico de um processo de profundas reformas na segurança”. No entanto, o que se presencia é uma estrutura para consagrar a atual estrutura da segurança. “Essa, aliás, parece ser nossa sina na área da segurança, repetida pela direita e pela esquerda: insistir naquilo que não funciona”, critica.

Marcos Rolim é doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford e jornalista pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. É presidente do Instituto Cidade Segura e membro do Conselho Administrativo do Centro Internacional de Promoção dos Direitos Humanos (Unesco). Autor, entre outros, de A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no século XXI (Zahar) e A Formação de Jovens Violentos, estudo sobre a etiologia da violência extrema (Appris).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Brasil ocupa a terceira posição na lista de países com maior número de pessoas encarceradas (mais de 750 mil presos). Como se chegou a essa situação?
Marcos Rolim – Chegamos a esse ponto por conta de nossa política criminal. Ela é largamente inspirada no modelo norte-americano de encarceramento em massa e está assentada em posições equivocadas a respeito do Direito Penal que integram o senso comum e são compartilhadas pela maioria dos operadores do Direito e pelos políticos. Segundo essa visão, prender seria a melhor forma de reduzir o crime, por conta do alegado “efeito dissuasório” da pena. Na prática, as coisas não funcionam assim. Ao amontoar milhares de pessoas em masmorras, normalmente por conta de crimes sem violência real, o Estado abriu mão do controle sobre a execução das penas, o que permitiu o surgimento das facções prisionais. Prender mais, nesse quadro, é uma receita infalível para aumentar o crime e a violência. Não por outra razão, os EUA estão reduzindo suas taxas de encarceramento. No Brasil, elas só aumentam.

IHU On-Line – A atual política de drogas (Lei 11.343/2006) é determinante para se entender a expressividade da população carcerária?
Marcos Rolim – Sim. Suspeitos são presos no Brasil, como regra, não como resultado de investigações, mas em flagrante. Isso não significa – como os leigos imaginam – que os policiais testemunharam o cometimento do crime e prenderam o autor. Não, o “flagrante” a que se referem os noticiários é o presumido, aquele que ocorre até 24 horas após o fato delituoso. Dizer que alguém foi preso em flagrante significa que a polícia deteve um suspeito e que há indícios contra ele; o que é muito diferente de provas.

A maior polícia que temos é a militar. Pelo nosso modelo de polícia, as PMs estão proibidas de investigar. Por isso, elas só podem efetuar prisões “em flagrante”. Isso restringe o trabalho das PMs aos delitos que são praticados nas ruas, basicamente os crimes contra o patrimônio (furtos e roubos) e os crimes de drogas. Os presos por tráfico são, invariavelmente, varejistas; jovens pobres, das periferias, presos em flagrante. Não são os donos do negócio, os responsáveis pelo refino das drogas, pela lavagem de dinheiro etc. Os pequenos traficantes são uma mão de obra que é substituída com muita facilidade, de modo que essas prisões não causam qualquer prejuízo ao tráfico. Elas fortalecem as facções, entretanto, e agenciam novas oportunidades criminais para os presos, agravando o quadro geral de insegurança.

A lei brasileira, no mais, não fixou objetivamente um critério para se distinguir traficantes de consumidores. Em vários países, a legislação estabelece uma quantidade de droga para distinguir consumo de tráfico, assim como há outros limites para separar tráfico pequeno e grande. No Brasil, tudo isso é definido subjetivamente por policiais, promotores e juízes. Na prática, significa que se um rico for flagrado com pequena quantidade de droga ilícita, ele será considerado obviamente um usuário; se for pobre, então será obviamente traficante.

IHU On-Line – O encarceramento em massa atinge sobretudo qual parcela da população e por quê?
Marcos Rolim – Os presos brasileiros são, em sua grande maioria, muito jovens e muito pobres. Os negros estão sobre-representados, e a população carcerária é semialfabetizada. O modelo de polícia que temos determina a extração social dos que serão presos, porque os crimes de colarinho branco não são cometidos na rua, logo seus autores não serão flagrados. Para se chegar aos bandidos ricos e poderosos, é preciso investigação de alta complexidade. O sistema que temos não seleciona os crimes praticados pelas elites, e essa é a razão pela qual a grande maioria dos policiais nunca irá prender um bandido rico. A exceção a essa tradição foi inaugurada há alguns anos pela Polícia Federal, com os resultados que conhecemos e que estão mudando a realidade política brasileira. Não por acaso, a Polícia Federal é a única polícia brasileira que possui “ciclo completo”; ou seja, seu mandato é o mesmo de todas as polícias modernas que atuam na prevenção, asseguram a ordem democrática, investigam, colhem provas e efetuam prisões.

IHU On-Line – As condições dos presídios brasileiros têm que efeito na população carcerária?
Marcos Rolim – Os efeitos são todos criminogênicos. Vale dizer: nossos presídios são máquinas de ampliação e agravamento das dinâmicas criminais. O tempo de cárcere no Brasil, que deveria ser empregado para a alfabetização, instrução e profissionalização dos detentos, é, na vida real, um espaço de “associação diferencial” com as facções. Manter essa dinâmica equivale a contratar violência futura.

IHU On-Line – Quais as chances de desistência criminal para alguém que é encarcerado?
Marcos Rolim – Não temos pesquisas no Brasil que tenham se dedicado ao tema da desistência criminal. A própria expressão é desconhecida entre nós, em que pese a existência de uma impressionante tradição de pesquisas criminológicas sobre o fenômeno em todo o mundo. No Brasil, falamos em reincidência criminal, mas não em seu contrário, que é a desistência criminal. Isso ocorre porque não acreditamos que as pessoas sejam capazes de mudar.

Contra todas as evidências, se imagina que pessoas que cometeram delitos jamais irão se submeter à lei. A grande maioria das pessoas envolvidas com práticas criminais como o tráfico de drogas, por exemplo, deseja outra vida. O fato é que não oferecemos aos egressos do sistema prisional qualquer chance. Quando isso é feito, os resultados são surpreendentes.

No Rio Grande do Sul, a experiência com o Programa Oportunidade e Direitos - POD Socioeducativo, com os egressos da Fase [Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul], evidencia as extraordinárias possibilidades da prevenção terciária. Uma avaliação inicial do programa revelou que de cada cem jovens egressos da Fase que frequentaram o POD de seis meses a um ano, 92 desistem do crime. Então, o que se pode afirmar é que as chances dos encarcerados se afastarem do crime são pequenas por conta do estigma social, que suprime alternativas de emprego; mas que podem se tornar muito expressivas diante de uma política pública efetiva de apoio ao egresso, algo que nunca tivemos.

IHU On-Line – O senso comum entende que o endurecimento penal seria suficiente para conter a criminalidade. Isso procede?
Marcos Rolim – Há um raciocínio mágico nessa demanda por “endurecimento penal”. Observe que as pessoas imaginam que penas mais “duras” desencorajariam potenciais criminosos. Na verdade, pouco importa a gravidade das penas se os autores contarem com a impunidade. A impunidade, entretanto, não decorre da lei, mas da ausência da prova. Logo, o problema da impunidade é um problema de polícia, não de legislação. De que adiante aumentar, por exemplo, as penas para homicídio se apenas 10% dos matadores são identificados pela polícia no Brasil? Os poucos homicidas que forem presos passarão mais tempo encarcerados, mas 90% deles seguirão impunes.

IHU On-Line – Há opções ao encarceramento em massa?
Marcos Rolim – Sim. A alternativa seria a de reservar as prisões para os crimes mais graves, como os crimes contra vida e contra a liberdade sexual. No caso brasileiro, penso que deveríamos agregar a essa lista também os crimes de corrupção. Os demais delitos deveriam receber penas socialmente úteis, e muitas condutas hoje tipificadas poderiam ser tratadas no âmbito do Direito Civil. A maioria dos países europeus tem se orientado por esse caminho e apostado bastante nas penas alternativas à prisão. Há mecanismos que podem ser muito mais eficientes para a responsabilização dos autores de certos tipos de crimes e que evitam os efeitos criminogênicos do cárcere. Esse é, por exemplo, o caso da abordagem oferecida pela Justiça Restaurativa, empregada em todo o mundo e, até hoje, ignorada pela legislação brasileira.

IHU On-Line – Crimes de maior gravidade não costumam ser elucidados, o que acarreta a falta de condenação dos autores. Por outro lado, presídios estão lotados de criminosos de menor periculosidade. Isso não é uma distorção?
Marcos Rolim – Trata-se de uma das maiores distorções de nosso sistema. O Rio Grande do Sul possui, atualmente, quase 40 mil presos. Desse total, uma pequena parcela, em torno de 4%, é composta por condenados por homicídio. O que ocorre é que crimes como homicídio e estupro, que estão entre os mais graves, demandam investigações de maior fôlego. Como não temos uma política de segurança que organize a atividade policial com esse foco, boa parte dos casos de homicídio sequer é investigada. Isso porque as vítimas são quase sempre excluídas socialmente e não há uma pressão social pelo esclarecimento. Para piorar o quadro, há quem acredite que homicídios praticados na guerra dos grupos envolvidos com o tráfico seriam uma boa notícia, o que torna a realidade ainda mais bizarra.

IHU On-Line – Por que o aprisionamento provisório ocorre por tempos prolongados e qual o impacto disso?
Marcos Rolim – A regra básica do processo penal é a liberdade. Todos deveríamos lembrar sempre isso, porque se trata de uma garantia civilizatória. Por conta dela, nenhum de nós poderá ser encaminhado a um presídio apenas porque houve uma acusação. Pessoas acusadas, como regra, devem responder em liberdade porque são inocentes até que se prove o contrário. As prisões cautelares são uma exceção a essa regra. O Código de Processo Penal estabelece quais as situações que caracterizam essa exceção. Segundo o artigo 312, é possível a prisão preventiva quando ela for necessária para garantir a ordem pública ou a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal. Tais expressões, entretanto, são genéricas e têm sido empregadas de forma descriteriosa pelo Poder Judiciário. O que deveria ser exceção, então, virou regra e, atualmente, cerca de 40% dos presos brasileiros estão encarcerados por conta de preventivas. Há um entendimento na jurisprudência de que as prisões preventivas não deveriam ultrapassar os 81 dias, tempo considerado razoável para conclusão do inquérito e para o julgamento. É muito comum, entretanto, que pessoas sejam mantidas em prisão provisória por anos; ou seja, excesso de prazo tem sido frequente.

IHU On-Line – No Rio Grande do Sul, em particular, qual a situação dos presídios e como se chegou a este quadro?
Marcos Rolim – O Rio Grande do Sul nunca teve uma política de segurança pública. O que ocorre, então, é que as polícias atuam sem uma referência que lhes oriente, sem prioridades definidas pelo gestor. Os secretários de Segurança Pública são reféns das corporações e atuam de forma a não contrariar seus interesses. Em geral, são pessoas sem formação na área e sem capacidade política de construir um caminho consistente de reformas. Sem rumo, as polícias fazem o que acham que devem fazer e isso se resume, basicamente, à missão de efetuar prisões.

Pouco importa a qualidade dessas prisões, o impacto que isso poderá ter nas tendências criminais, a eficiência do encarceramento etc. O que importa é prender. Então temos aplicado essa receita e prendemos cada vez mais. Nunca, entretanto, estivemos tão inseguros. Isso tem a ver com a realidade da execução penal. Quando passamos a prender em galerias, não mais em celas – o que já ocorre há décadas –, perdemos qualquer possibilidade de assegurar uma execução penal decente. Pelo contrário, o Estado permitiu que as facções controlassem os presídios em uma verdadeira parceria público-privada. O acordo explícito foi: vocês não se amotinam, nem organizam fugas e nós permitimos que vocês toquem seus negócios aqui dentro. Neste ponto, o discurso em favor do endurecimento penal mostra sua verdadeira face, a da capitulação diante do crime.

IHU On-Line – Frente ao caos prisional, o que é preciso fazer?
Marcos Rolim – Precisamos mudar o Código Penal no sentido de um Direito Penal Mínimo, reduzindo a demanda por encarceramento. Ao mesmo tempo, teríamos que criar novos mecanismos de responsabilização e muitas outras modalidades de penas alternativas, entre elas a pena de restrição de liberdade (com definição de áreas restritas de circulação ao condenado em casos de crimes de menor gravidade). Precisaríamos investir em uma nova arquitetura prisional, para uma execução penal modelar, com celas individuais, como determina a lei. É incrível que tenhamos chegado ao ponto de considerar a Pecan [Penitenciária Estadual de Canoas] um “presídio modelo”, quando se trata do único presídio brasileiro que foi planejado para ser superlotado, com celas para oito presos. Um verdadeiro pardieiro, com uma concepção arquitetônica absurda e perigosa (especialmente insegura em caso de incêndio), que custou uma fortuna e não tratou do básico como educação e profissionalização.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a decisão do governo federal de intervir militarmente no Rio de Janeiro? Quais devem ser as consequências dessa intervenção a curto e longo prazo?
Marcos Rolim – Todos os indícios apontam para uma manobra política do governo Temer voltada à tentativa de lhe conferir alguma aprovação popular. O próprio general Braga Netto , nomeado como interventor, afirmou em sua primeira coletiva de imprensa que não havia plano algum, e que eles iriam “pensar no que fazer”. A intervenção poderia fazer sentido se o objetivo fosse limpar as polícias do Rio, historicamente relacionadas com o crime organizado, particularmente com as milícias que controlam 167 favelas onde moram mais de 2 milhões de pessoas. O improviso e a ausência de disposição para reformas deverão conduzir a experiência a iniciativas inócuas de presença militar em favelas; algo que se encerrará sem resultados consistentes no final do ano e que terá custado centenas de milhões de reais.

IHU On-Line – Como avalia a recente criação do Ministério da Segurança Pública?
Marcos Rolim – Sou favorável à criação de um Ministério da Segurança Pública, mas essa estrutura deveria ser concebida de modo a ser o núcleo dinâmico de um processo de profundas reformas na segurança. Caberia ao Ministério propor, por exemplo, a criação de uma Inspetoria Nacional das Polícias, capaz de exercer o controle externo sobre a atividade policial no Brasil; a criação de uma Escola Nacional de Polícia, para formar uma nova geração de gestores em segurança pública no Brasil; e a criação de um Centro Nacional de Pesquisas em Segurança, para medir resultados em políticas públicas na área e encontrar evidências que orientem o policiamento. O que estamos presenciando é algo completamente diverso. O novo órgão será um “ministério provisório” vocacionado exatamente para que a atual estrutura da segurança se consagre. Teremos, então, mais do mesmo. Essa, aliás, parece ser nossa sina na área da segurança, repetida pela direita e pela esquerda: insistir naquilo que não funciona.■

Leia mais

- As alternativas às políticas de encarceramento em massa do Estado brasileiro. Publicado nas Notícias do Dia de 17-3-2018, no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em https://goo.gl/CTfbo3.

- Toda noção de supremacia é tradução da ignorância. Entrevista especial com Marcos Rolim, publicada na revista IHU On-Line nº 510, de 4-9-2017, disponível em https://goo.gl/PmeyjK.

- Mecanismos de controle policial não funcionam. Entrevista especial com Marcos Rolim, publicada na revista IHU On-Line nº 497, de 14-11-2016, disponível em https://goo.gl/DRi5dQ.

- O RS não possui política de segurança pública. Entrevista especial com Marcos Rolim, publicada na revista IHU On-Line nº 293, de 18-5-2009, disponível em https://goo.gl/w1iQAA.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição