Edição 518 | 27 Março 2018

Crise política e fragilidade das instituições agravam a violência

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Ricardo Machado | Edição: Vitor Necchi

Para Sérgio Adorno, isso estimula a adoção de medidas extralegais e a precipitação de medidas como a intervenção federal no Rio de Janeiro

Não há respostas simples para explicar a gênese da violência no Brasil, entende o cientista social Sérgio Adorno. “As raízes devem ser buscadas na colonização e em seus modos cruéis e rudes de dominação. No entanto, convém lembrar que a condenação da violência, em suas múltiplas formas, é um fenômeno moderno”, afirma.

A violência, em grande parte, pode ser atribuída ao Estado, “que é justamente a comunidade política que detém o monopólio legítimo do poder coercitivo”. O fenômeno, no entanto, é amplo. Adorno salienta que “mais recentemente historiadores e sociólogos estão identificando, nas sociedades contemporâneas, um processo descivilizatório, marcado pela ruptura das regras de cortesia nas relações interpessoais [...] e pelo enfraquecimento do Estado-nação por força do processo de globalização”.

Ainda não há consenso entre pesquisadores acerca do que sejam sociedades seguras. “Muitos de nós sustentam que, naquelas sociedades onde são menores as desigualdades sociais e há maior solidez institucional e reconhecimento das autoridades encarregadas de aplicar lei e ordem, as taxas de crimes, especialmente os violentos, são menores e não constituem uma preocupação exacerbada na agenda pública”, explica Adorno em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Adorno garante que a crise política e a fragilidade das instituições agravam o problema da violência porque desorganizam os serviços públicos, geram incertezas entre profissionais e impedem a alocação de recursos, modernização de equipamentos e de infraestrutura em geral. “O resultado é sempre o enfraquecimento do poder institucional e o apelo, mais e mais, a medidas extralegais, à violência abusiva e a precipitação de medidas como a intervenção federal no Rio de Janeiro”, afirma. “Temos visto, não apenas no campo da segurança pública, uma certa atitude de desprezo pela vida dos mais pobres, daqueles não alcançados pelas políticas públicas sociais distributivas”, o que evidencia uma espécie de “anestesia moral” em grupos socialmente privilegiados.

Sérgio Adorno é graduado em Ciências Sociais e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP, com estágio pós-doutoral no Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales, CESDIP, na França. Leciona na USP, onde é coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência. Sérgio Adorno é uma referência nos estudos sobre violência.

A entrevista foi publicada nas Notícias do Dia, de 9-3-2018, no sítio do IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as raízes da violência no Brasil?
Sérgio Adorno – Não há respostas simples. As raízes devem ser buscadas na colonização e em seus modos cruéis e rudes de dominação. No entanto, convém lembrar que a condenação da violência, em suas múltiplas formas, é um fenômeno moderno. No passado, seu emprego não era objeto de censura. Na era colonial, a propriedade da terra, fonte de poder e mando, se estendia a tudo o que gravitava em torno do patrimônio e de sua organização social – o patrimonialismo, inclusive o corpo das mulheres, dos escravos e das crianças. Tudo era concebido como uma espécie de extensão do poder senhorial.

No mesmo sentido, empregar violência desmedida para extinguir inimigos, opositores políticos ou movimentos de protesto coletivo era recurso de poder legítimo. Ainda que saibamos que o presente não é mera repetição do passado, traços dessa cultura que associa violência – como se legítima fosse – ao poder social e político se atualizaram na cultura política brasileira, ao longo da história, concorrendo com a cultura política democrática que justamente apela para a tolerância, para o respeito às diferenças.

IHU On-Line – Como compreender o signo da violência na sociedade contemporânea? Que dimensões – sutis e grotescas – estão em jogo?
Sérgio Adorno – Como é sabido, a partir dos estudos de Norbert Elias (O processo civilizador), a emergência e a consolidação da sociedade moderna foram tributárias de dois processos distintos, porém convergentes entre si: uma nova economia moral, que implicou o retraimento do emprego na violência nas relações interpessoais e intersubjetivas, nascidas de uma gramática de etiquetas e da consideração da dignidade do outro como ser humano; e um processo de centralização do poder político, que extorquiu dos civis o direito consuetudinário de apelo à violência como forma de mediação de conflitos e de imposição da vontade particular contra outras vontades particulares.

No curso histórico, o Estado moderno é justamente a comunidade política que detém o monopólio legítimo do poder coercitivo, o que significa deter o monopólio das forças armadas e policiais, o monopólio da aplicação das leis – em especial as penais – e o monopólio fiscal. Pois bem, mais recentemente historiadores e sociólogos estão identificando, nas sociedades contemporâneas, um processo descivilizatório, marcado pela ruptura das regras de cortesia nas relações interpessoais – de que os xingamentos públicos de uns em relação aos outros e as agressões às identidades coletivas e pessoais são alguns dos sintomas mais notórios – e pelo enfraquecimento do Estado-nação por força do processo de globalização.

IHU On-Line – Do que se trata o autoritarismo socialmente implementado? Como ele transformou a violência em um dado “normal” das relações sociais?
Sérgio Adorno – O autoritarismo socialmente implantado foi um conceito utilizado pelo cientista político Guillermo O’Donnell e largamente explorado por Paulo Sérgio Pinheiro . Durante o processo de transição democrática, muitos de nós, cientistas sociais, acreditávamos que o fim da ditadura militar implicaria necessariamente a pacificação interna da sociedade brasileira. No entanto, no curso da transição política para a democracia e, sobretudo, em seu momento subsequente – o da consolidação democrática –, observou-se uma verdadeira explosão de conflitos interpessoais no interior da sociedade civil, representada sobretudo pelo crescimento do crime urbano e pela chegada do crime organizado, sob a forma de comércio ilegal de drogas instalado nos bairros que concentram grandes contingentes de trabalhadores de baixa renda. Portanto, o autoritarismo político era apenas uma faceta de um autoritarismo enraizado socialmente. Infelizmente, até hoje esse conceito carece de uma fundamentação teórica e histórica mais adequada e densa.

IHU On-Line – Por que a violência é algo que divide as pessoas? Como essa dinâmica reforça os processos de desigualdade?
Sérgio Adorno – Ainda não há um consenso, entre pesquisadores e especialistas, em que de fato consistem sociedades seguras. Muitos de nós sustentam que, naquelas sociedades onde são menores as desigualdades sociais e há maior solidez institucional e reconhecimento das autoridades encarregadas de aplicar lei e ordem, as taxas de crimes, especialmente os violentos, são menores e não constituem uma preocupação exacerbada na agenda pública.

Certamente, um fator que não se pode negligenciar é a eficiência das políticas de controle da ordem pública que devem proporcionar segurança independentemente de clivagens econômicas ou sociais, como classe, poder, riqueza, gênero, geração, raça ou etnia. Quando alguns grupos sociais se sentem mais seguros do que outros porque são preferencialmente beneficiários da proteção estatal, temos um cenário de divisão.

Exemplos são muitos. Por exemplo, veja a distribuição das taxas de homicídios entre os bairros de um município determinado. Nos bairros onde habitam preferencialmente cidadãos e cidadãs procedentes dos estratos médios e altos das hierarquias sociais, as taxas estão quase sempre abaixo da média local, regional ou nacional. O mesmo não ocorre nos bairros onde se concentram aqueles procedentes dos estratos socioeconômicos de baixa renda. Paradoxalmente, naqueles bairros de classes médias e altas, o medo do crime é exacerbado, e frequentemente os pobres são acusados de responsáveis pelos crimes e pela insegurança em geral. Nos bairros onde os pobres predominam, é comum observarmos a naturalização das mortes, como se fossem uma espécie de destino a ser cumprido.

Na sociedade brasileira, onde – na esteira das tendências internacionais – a militarização da segurança pública caminha a passos largos e rápidos, dado os lastros anteriores nos regimes autoritários que tiveram vigência no final do Império e nas ditaduras de 1937-45 e de 1964-85, acentuam-se as diferenças que se convertem em desigualdades sociais.

IHU On-Line – O que levou à extinção de uma certa “economia moral da violência” no Brasil? O que explica o fenômeno de aumento do grau de violência, decapitações e assassinatos bárbaros cada vez mais recorrentes?
Sérgio Adorno – Não tenho ainda respostas convincentes. Há alguns anos, dediquei parte de minha investigação ao estudo de fenômenos como linchamento e execuções cometidas por esquadrões da morte, que agiam (e ainda agem) impunemente na periferia da região metropolitana de São Paulo. Resultavam, na maior parte dos casos, de ajustes de contas entre quadrilhas ou entre bandidos e policiais. Até meados dos anos 1990, havia uma espécie de interditos morais. Não se matava indiscriminadamente. Evitava-se vitimizar mulheres grávidas, crianças pequenas, idosos e pessoas portadoras de limitações físicas ou mentais. Na segunda metade, verificou-se uma radical ruptura desses interditos morais. Execuções em moradias não poupavam ninguém.

Estudei também rebeliões nas prisões. Não me constam que as ocorridas nas décadas de 1950 a 1980 praticassem decapitações. No entanto, ao longo dos anos 1990, em São Paulo, elas ocorreram com frequência, ao que tudo indica nas disputas entre facções pelo controle das massas carcerárias, que acabou resultando na hegemonia do PCC . Nos linchamentos, a brutalidade sempre esteve presente, como furar olhos, cortar orelhas, extirpar genitais. Como bem apontou o professor José de Souza Martins , autor de um copioso estudo, tais atos simbolizam punições post-mortem, isto é, impedir que a vítima possa ver, ouvir ou se reproduzir sequer na eternidade. Mas é preciso estudar mais, notadamente os significados (simbólicos) subjacentes a essa mudança de hábitos e de práticas sociais.

IHU On-Line – Como noções como “inimigo” e “vingança”, de um lado utilizadas na retórica minoritária de senso comum para justificar a violência de Estado e, de outro, reforçada por policiais, magistrados e políticos, ilustram a falta de solidariedade das classes médias com as populações marginalizadas?
Sérgio Adorno – Volto ao argumento do processo civilizador. Certamente, há muitas singularidades sociais, políticas e culturais que explicam essa partilha entre amigos e inimigos, bem e mal, justo e injusto, como se fossem categorias de entendimento da realidade absolutamente excludentes. Não é o caso de valorizar o processo civilizador ocidental, porque, jamais esqueçamos, a Europa foi berço do genocídio moderno. Essa divisão é histórica, como bem demonstrou Foucault em seu curso Em defesa da sociedade, no Collège de France (1975-76), no qual ele aborda essas divisões como guerras de raça que desembocaram no racismo de Estado.

No Brasil, convivemos ambiguamente com formas de solidariedade e de cooperação e formas de conflito que apontam para o emprego da violência. Em momentos críticos da sociedade, tais como pobreza extrema de segmentos das populações, prevalecem cooperação de vizinhança diante de infortúnios sociais e pessoais; e em momentos de extrema tensão, diante, por exemplo, de crimes com elevada repercussão na consciência pública, fortes correntes de opinião se inclinam para medidas repressivas rigorosas como pena de morte, liberação das armas, encarceramento e redução da maioridade penal, cuja eficiência é bastante discutível.

Há, no fundo, uma divisão entre “quem tem direitos” e “quem não merece ter direitos”, que traduz uma concepção diferenciada em relação ao direito à vida. Na civilização moderna, a vida é um direito universal que não pode ser aplicado a uns, em detrimento de outros. Estou trabalhando nesses temas, mas confesso que não ultrapassei ainda o nível das constatações e descrições.

IHU On-Line – Como resolver o impasse entre os conceitos de “lei e ordem” e “direitos humanos”? Por que, no Brasil, essas concepções, que são complementares, tornaram-se antagônicas?
Sérgio Adorno – Expus sobre esse tema em estudos anteriores. Durante o processo de transição democrática e às expensas da experiência de repressão política ocorrida na ditadura, policiais e intelectuais (pesquisadores) mantinham estranhamento e distância. Policiais argumentam que, na ditadura, havia segurança. Nós, de nossa parte, não concordávamos que havia segurança na ditadura e buscamos realizar uma crítica radical à militarização da segurança, sobretudo ao uso abusivo da força nas instituições de controle da ordem pública e nas ruas, sobretudo contra trabalhadores desprovidos de imunidades e garantias.

Policiais menosprezam direitos humanos. Nós achávamos que lei e ordem era uma formulação inadequada, forjada na academia americana para justificar as intervenções policiais e militares. O curso da democracia foi reduzindo distâncias e amenizando os confrontos, ainda que eles não tenham sido abolidos, como se viu recentemente no debate sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro (fevereiro de 2018). O que significou essa sorte de “trégua” temporária? Significou que as novas gerações de policiais, melhor preparadas inclusive com doutorado acadêmico nas universidades públicas, começou a considerar a agenda de direitos humanos em suas atividades.

Por sua vez, nós, pesquisadores e intelectuais, tivemos que requalificar a questão de lei e ordem e sair da armadilha da ideologia como ponto de partida da discussão. Hoje, estou convencido que a agenda de direitos humanos não pode ignorar o poder coercitivo legítimo quando se trata de proteger o direito de maior número, senão de todos cidadãos. No entanto, lei e ordem não pode ultrapassar os limites ditados pelo Estado de Direito, pelo respeito aos direitos civis, pela observância das normas constitucionais e das convenções internacionais de que o Brasil é signatário.

IHU On-Line – No que diz respeito aos planos de segurança pública no âmbito da União, após a redemocratização, que distinções podem ser traçadas entre os governos mais à direita e os mais à esquerda? E no que se refere à implementação de tais planos, há diferenças?
Sérgio Adorno – Venho, junto com outros pesquisadores (Renato Sérgio de Lima e Isabel Figueiredo ), estudando os Planos Nacionais de Segurança. Primeiramente, é sempre bom lembrar, há quem sustente que, no passado, até o final da ditadura militar, nunca houve política de segurança no Brasil. Eu não me situo nessa corrente. Havia, sim, diretrizes impressas aos órgãos de segurança, certamente desde o final da República Velha. Durante a ditadura militar, por causa da censura e do silêncio do aparelho repressivo de Estado, aparentemente tudo se resumia ao uso da força arbitrária. Mas alguns estudos já sugerem que havia planos em gestação, ainda que não tenham sido formulados como Planos de Estado ou Planos Nacionais.

Nosso estudo vem demonstrando que, desde o governo Collor, foi formulado ao que parece o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública. Com a plena retomada da democracia, os governos FHC e Lula da Silva , partindo de diagnósticos bem formulados, procuraram, mediante um plano de ações articuladas entre si, atacar os principais problemas relacionados à gestão da segurança pública, conferindo-lhe não só maior eficiência, mas também modernidade administrativa.

Há diferenças entre eles. Talvez o governo FHC, nesta área, tenha se voltado mais para implementação de lei e ordem no domínio do estado de Direito, e o de Lula da Silva, para proteção dos grupos sociais de maior vulnerabilidade, trabalhadores de baixa renda, mulheres, crianças, negros e índios. Ambos revelaram preocupações para com a qualificação das forças policiais e judiciais, assim como reconheceram o imperativo do federalismo e buscaram estabelecer bases para o relacionamento entre o governo federal e os governos estaduais e municipais.

Embora focado na meta de redução dos homicídios, o governo Dilma Rousseff fragmentou diferentes iniciativas de seu antecessor em secretarias, o que parece ter enfraquecido o alcance das medidas. Já o atual governo Temer não logrou apresentar um programa articulado e bem construído. Escolheu medidas de seus antecessores a dedo e desprezou outras, ao que parece, por razões políticas e de concepção ancorada em práticas tradicionais. Todas essas iniciativas revelaram baixa capacidade de implementação por razões diversas, internas e externas. Do ponto de vista interno, mencionam-se restrições orçamentárias e ausência de quadros capazes de implementar ações; do ponto de vista externo, lobbies corporativos, interesses dos governantes de manter sob seu controle as polícias Militar e Civis estaduais, o que encadeia interesses nas esferas parlamentares estaduais e federais.

IHU On-Line – A crise política e a fragilidade das instituições políticas agravam o problema da violência?
Sérgio Adorno – Sim, seguramente. Principalmente quando desorganizam os serviços públicos, geram incertezas entre profissionais competentes e responsáveis e impedem alocação de recursos, modernização de equipamentos e de infraestrutura em geral. O resultado é sempre o enfraquecimento do poder institucional e o apelo, mais e mais, a medidas extralegais, à violência abusiva e a precipitação de medidas como a intervenção federal no Rio de Janeiro.

IHU On-Line – Como a defesa intransigente da vida, como direito fundamental a todos os seres, independentemente da condição socioeconômica, conforma um paradigma capaz de reorganizar as dinâmicas da violência?
Sérgio Adorno – Infelizmente, não se logrou ainda um consenso, mínimo que seja, a respeito de valores que não podem ser transgredidos, não importa em nome do quê. A vida, por exemplo. Temos visto, não apenas no campo da segurança pública, uma certa atitude de desprezo pela vida dos mais pobres, daqueles não alcançados pelas políticas públicas sociais distributivas. É como se aceitássemos, de bom grado, que uns devem morrer para que os “mais competentes” possam sobreviver. Questão indicativa de uma espécie de anestesia moral que se manifesta em alguns grupos socialmente privilegiados e que não revelam empatia e sequer compaixão com a vida e o destino social de milhares de famílias com seus filhos que, lamentavelmente, repetirão a trajetória trágica de seus pais.

É preciso mudar esse cenário, transformar mentalidades, reconstruir princípios de vida associativa e cooperativa que ultrapassam as clivagens socioeconômicas, as desigualdades de poder. Trata-se de uma tarefa confiada às escolas e às universidades, aos formadores de opinião, aos gestores de redes sociais, aos governantes e políticos profissionais identificados com o bem comum, capazes de oferecer às próximas gerações uma qualidade de vida e de democracia superior. ■

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