Edição 515 | 13 Novembro 2017

Combate ao suicídio passa pela transformação da vida coletiva

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Vitor Necchi

Raquel Weiss salienta que, para Durkheim, é importante constituir laços sociais capazes de acolher os indivíduos, pois a sociedade moderna dissolveu os antigos laços de sociabilidade

Ao se discutir a “renúncia suprema”, um autor se impõe como referência imediata: o francês Émile Durkheim, que em 1897 publicou o livro Suicídio, obra seminal para a sociologia. “Durkheim fez questão de separar as causas individuais das tendências coletivas. Ele acreditava que os transtornos mentais não são suficientes para explicar padrões”, explica a cientista social Raquel Weiss, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Conforme Weiss, Durkheim pretendia explicar suicídios que não podem ser considerados produto de “loucura”, de acordo com o termo que adotou à época. “Mas aqui precisaríamos entrar em um debate sobre a própria ideia de loucura, que já não é a mesma do final do século 19”, salienta.

A pesquisadora lembra que o núcleo duro do argumento do autor “é o de que as taxas de suicídio dependem da qualidade do vínculo que é estabelecido entre as pessoas”. Ela afirma que, para Durkheim, “o ser humano é um ser social, portanto, aquilo que somos depende de nossa interação com o meio social que nos circunda”. Durkheim defendia “que se a existência coletiva não assume formas equilibradas, ela pode produzir sofrimentos nos sujeitos e, sobretudo, falha em oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento da subjetividade”.

Weiss salienta que Durkheim, em sua obra, aponta que o caminho para combater o suicídio “passa pela transformação da vida coletiva, pois se o suicídio tem causas coletivas, o combate a ele também deve ser da mesma ordem”. Para ela, “a solução passaria pela constituição de laços sociais capazes de acolher os indivíduos, pois, em seu diagnóstico, a sociedade moderna dissolveu os antigos laços de sociabilidade e ainda não havia conseguido constituir a base para outro tipo de laço”.

No entendimento de Weiss, o que se mantém absolutamente central é o argumento de que o vínculo é um elemento determinante para a constituição de uma subjetividade saudável. “O desafio passa por conseguirmos estabelecer vínculos que não sejam nem frouxos demais, e nem demasiadamente opressores, o que passa pela capacidade coletiva de acolher a diversidade dos seres humanos.”

Raquel Weiss é graduada em Ciências Sociais, mestra em Sociologia e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. É professora do departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e pesquisadora associada ao British Centre for Durkheimian Studies, da Oxford University.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira Durkheim compreende o suicídio? E como ele inseriu a renúncia suprema no campo da sociologia?
Raquel Weiss – Basicamente, o autor indica três tipos de suicídio: o altruísta, o egoísta e o anômico. O suicídio altruísta ocorre sempre que a vida do sujeito vale pouco diante do todo, sempre que a coletividade se impõe como a coisa mais importante, de modo que se torna mais fácil abrir mão da própria existência em detrimento da coletividade. É o que ocorre em situações de guerra, que encorajam atos de grande abnegação e heroísmo.

O suicídio egoísta ocorre em contexto de ausência de vínculo, ou em que o vínculo do sujeito com as outras pessoas é demasiadamente frágil, de modo que se tende a levar uma existência demasiadamente autocentrada, como se a vida estivesse presa apenas por um fio muito tênue, que facilmente pode ser rompido.

Finalmente, o suicídio anômico é característico de contextos sociais disruptivos, nos quais o horizonte moral é pouco definido, provocando uma angústia que no livro A educação moral Durkheim chamou de “mal do infinito”, fazendo referência a outro personagem de Goethe , Fausto . Essas seriam situações de tristeza, nas quais a ausência de um padrão regulatório capaz de orientar a ação dos sujeitos pode tornar a vida insuportável. É algo que pode ocorrer em momentos de crises econômicas, políticas ou mesmo em situações familiares como as de divórcio ou viuvez, que podem desconfigurar os padrões de existência aos quais se estava acostumado.

IHU On-Line – A perspectiva de Durkheim era sociológica. Por meio de observações estatísticas realizadas no final do século 19, constatou que o suicídio seguia variações constantes. No entanto, sabe-se que na causa de grande parte dos suicídios está algum transtorno de saúde mental. Como é possível convergir estas duas perspectivas para entender quem elimina a própria vida?
Raquel Weiss – Durkheim fez questão de separar as causas individuais das tendências coletivas. Ele acreditava que os transtornos mentais não são suficientes para explicar padrões. Inclusive, ele abre caminho para pensar a causa social de certos transtornos psíquicos, sobretudo aqueles que não são de ordem inteiramente neurológica. Porém, há que se ressaltar que o seu interesse é explicar os suicídios que não podem ser considerados produto de “loucura”, para usar seus termos. Mas aqui precisaríamos entrar em um debate sobre a própria ideia de loucura, que já não é a mesma do final do século 19.

IHU On-Line – O suicídio, embora se trate aparentemente de um fenômeno individual, era compreendido por Durkheim como dependente de causas sociais. Como isso pode ser explicado?
Raquel Weiss – O pressuposto do qual Durkheim parte é o de que o ser humano é um ser social, portanto, aquilo que somos depende de nossa interação com o meio social que nos circunda. Não se trata de uma relação determinista, mas de uma influência recíproca do meio sobre o sujeito, e vice-versa, que se repõe e se refaz continuamente. Portanto, ele defendia a ideia de que se a existência coletiva não assume formas equilibradas, ela pode produzir sofrimentos nos sujeitos e, sobretudo, falha em oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento da subjetividade.

O suicídio é um fenômeno individual porque se trata de um ato levado a cabo por uma pessoa, em virtude de sua trajetória singular e da maneira como ele ou ela constituem sua subjetividade e se posicionam diante das alegrias e dos sofrimentos na vida. Porém, diferentes formas de configuração social podem ajudar ou atrapalhar os sujeitos nesse processo, e por isso compreender as causas sociais é tão crucial para se ter um diagnóstico mais preciso sobre o fenômeno do suicídio em cada contexto específico.

IHU On-Line – O campo do conhecimento que lida com transtornos de saúde mental se ocupa, com primazia, dos estudos acerca do suicídio. Que pesquisas a sociologia tem feito sobre o assunto?
Raquel Weiss – Não posso fazer uma afirmação contundente sobre o assunto, pois não tenho seguido minuciosamente esse campo dentro da sociologia, mas, ao menos aqui no Brasil, esse campo tem sido nulo ou pouquíssimo desenvolvido, conforme demonstrado por meu colega da Universidade Federal do Maranhão - UFMA, José Benevides Queiroz , no último congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia , que aconteceu em Brasília.

A minha hipótese a esse respeito é a de que os sociólogos têm ficado muito presos à letra do texto de Durkheim, e pouco a seu espírito. Explico-me. Normalmente o livro O Suicídio é tomado como grande exemplo de trabalho sociológico, com grande ênfase sobre a importância do método e do uso da estatística como instrumento central para a sociologia. Nesse campo, há vários estudos que debatem com Durkheim, para mostrar que concordam ou discordam de seus dados, do modo como processou as estatísticas, testando suas variáveis, analisando se em países com predominância de tal religião realmente as taxas são maiores, e assim por diante.

A minha interpretação do autor passa por outra via, que não desconsidera esta, mas que aponta para outra potencialidade da teoria, a meu ver mais relevante contemporaneamente. Acredito que o núcleo duro de seu argumento é o de que as taxas de suicídio dependem da qualidade do vínculo que é estabelecido entre as pessoas. Portanto, a sociologia poderá trazer contribuições importantes para esse campo se conseguir produzir análises sobre os tipos de vínculo que estamos produzindo na sociedade contemporânea.

IHU On-Line – Durkheim tratou da possibilidade de notícias sobre suicídios estimularem pessoas a imitar esta prática. A decisão disseminada na imprensa mundial de não noticiar suicídios deve-se ao sociólogo francês ou, antes, ao chamado efeito Werther, em alusão ao personagem suicida do livro Os sofrimentos do jovem Werther, lançado por Goethe em 1774?
Raquel Weiss – Na verdade, a ideia de Durkheim era justamente oposta à do “efeito Werther” , que foi aventada por David Phillips em 1974, pois ele se opunha às teses que explicavam o suicídio pelo contágio ou pela imitação. A exposição do sujeito ao que se chama de “gatilho” pode, no máximo, ter impacto sobre a temporalidade do ato, acelerando seu processo, mas só exerce algum efeito em sujeitos que já estão, em alguma medida, dispostos a isto.

No final de seu livro, Durkheim passa em revista todas as soluções para combater o suicídio que eram aventadas em sua época e recusa qualquer proposta que passe pela ideia de criminalização ou repúdio moral às pessoas que seguiram por este caminho. O caminho, para ele, passa pela transformação da vida coletiva, pois se o suicídio tem causas coletivas, o combate a ele também deve ser da mesma ordem. De forma muito resumida, as duas principais causas de mortes voluntárias são as de tipo anômico e egoísta e, em ambos os casos, a solução passaria pela constituição de laços sociais capazes de acolher os indivíduos, pois, em seu diagnóstico, a sociedade moderna dissolveu os antigos laços de sociabilidade e ainda não havia conseguido constituir a base para outro tipo de laço.

O “remédio” prático para isso passaria pelo fortalecimento dos grupos profissionais, que poderiam operar como locus da constituição de vínculos mais impessoais do que a família e menos impessoais que os do estado. Esse, a meu ver, é o argumento mais datado e ao mesmo tempo mais potente da obra desse autor. O caráter datado se refere, evidentemente, à ideia sobre a centralidade dos grupos profissionais em nossa vida moral – na verdade, trata-se de um argumento que o próprio autor abandonou no decorrer de sua obra –, pois contemporaneamente a vida profissional corresponde apenas à parte dos grupos aos quais pertencemos e, some-se a isso, para grande parte das pessoas a relação com o mundo do trabalho é de ordem estritamente pragmática. Claro que as relações nesse campo são importantes, sobretudo se considerarmos que muito da estima social que um indivíduo recebe vem de seu reconhecimento nessa esfera, seja por parte de seus colegas, seja por parte da sociedade de forma mais geral. Mas, atualmente, já não podemos pensar no mundo do trabalho da mesma forma, e sobretudo a ideia de corporações profissionais não é uma realidade de nossa época.

Porém, o que a meu ver se mantém absolutamente central é o argumento de que o vínculo é um elemento central para a constituição de uma subjetividade saudável. O desafio passa por conseguirmos estabelecer vínculos que não sejam nem frouxos demais, e nem demasiadamente opressores, o que passa pela capacidade coletiva de acolher a diversidade dos seres humanos.

IHU On-Line – Conforme Durkheim, “o que pode contribuir para o desenvolvimento do suicídio ou do crime não é o fato de se falar deles, é a maneira como se fala”. Mais de cem anos depois, a imprensa começa a rever o silenciamento em torno do suicídio, ao reconhecer que se trata de um problema de saúde pública que precisa ser discutido. Os jornalistas leram mal Durkheim?
Raquel Weiss – Não sei afirmar o quanto a teoria de Durkheim foi importante para o jornalismo, mas arrisco dizer que esse autor tem sido muito mal lido nos últimos cinquenta anos, e isso inclusive no campo das ciências sociais, e não apenas no Brasil. Há diversos fatores internos ao campo que poderiam explicar esse destino que teve a recepção do autor, mas isso é assunto pra outra conversa. O que importa aqui é o argumento de que falar sobre o suicídio não é um problema em si, mas é verdade que o “como” é algo que importa.

Primeiramente, acredito que a interdição a falar sobre o suicídio não diz respeito apenas aos argumentos aventados em torno do “efeito Werther”, isto é, da possibilidade de um contágio, mas passa também pelo fato de que o suicídio é um fenômeno tabu em diversas sociedades, inclusive a brasileira. O tabu tem uma função social, que é a de proteger o que é interdito, mas, ao mesmo tempo, na medida em que nos furtamos de falar sobre o assunto, também não conseguimos compreender suas causas e não avançamos no combate a suas causas.

Em segundo lugar, e aqui está o mais importante, já que estamos falando sobre o papel social da imprensa, é separar a discussão séria do assunto de sua espetacularização ou mesmo eventual glamourização. A espetacularização é sempre desrespeitosa com a memória da pessoa – e estamos sempre falando de uma pessoa que vivenciava alguma situação de sofrimento muito profundo – e com a família. Parece-me que a glamourização é o que pode produzir algo semelhante ao que se descreve no efeito Werther, na medida em que se apresenta o suicídio como forma sublime de concluir a própria existência, ou quando se associa este destino à vida de pessoas extraordinárias. Porém, o ato de tirar a própria vida é demasiadamente exigente, pressupõe que a força infringida pelo sofrimento seja muito maior do que as forças contrárias que convocam à vida. Ninguém comete suicídio porque é algo que está na moda, há sempre um conjunto muito complexo de fatores que subjazem a essa ação.

IHU On-Line – Durkheim propôs que o suicídio não fosse analisado como caso isolado, mas como um fenômeno social. Para sua análise, deveria ser considerada a incidência coletiva dele em uma sociedade e um tempo específicos. Isso se sustenta até hoje?
Raquel Weiss – Quando Durkheim escreveu essa obra, ele estava preocupado em estabelecer o campo da sociologia como ciência autônoma, diferente da psicologia, e sua estratégia consistiu em tomar um fenômeno que se julgava individual para mostrar que ele dependia também de causas sociais. Partindo dessa premissa, seu argumento é o de que as taxas de suicídio não podem ser explicadas pela recorrência numérica de determinadas patologias de ordem psíquica. Todavia, sua intenção nunca foi a de dizer que a trajetória individual é irrelevante, de modo que a psicologia – e hoje podemos acrescentar, também a psicanálise e as neurociências – sempre desempenharão um papel importante para explicar esse fenômeno. Afinal, a sociologia poderia explicar que características sociais estão mais atreladas ao aumento ou diminuição das taxas de suicídio, mas não pode explicar por que foram tais indivíduos específicos que escolheram esse destino. Portanto, o que se sustenta até hoje é a ideia de que não basta compreender os mecanismos psíquicos dos sujeitos individuais, mas é preciso sempre considerar as características sociais, dais quais depende a incidência coletiva. ■

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