Edição 514 | 30 Outubro 2017

As análises de “risco” e a falsa aleatoriedade

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Bruno Lima Rocha

O que legitima as agências de risco? As chamadas agências de “análise” de risco produziriam indicadores críveis para investidores interessados em adquirir ações ou dívidas na forma de títulos ou produtos financeiros exóticos gerados por agentes econômicos privados. Isto nas origens, porque a relevância destas empresas de bens simbólicos cresceu. Afirmo que estas agências, a partir das três maiores, Standard & Poor’s (S&P), Moody’s e Fitch Rating, hoje são peça fundamental da engrenagem capitalista em sua etapa financeira, reforçando um mecanismo de legitimação que reforça e blinda o papel nefasto que a especulação financeira tem.

Bruno Lima Rocha é doutor em ciência política pela UFRGS e professor do curso de relações internacionais da Unisinos.

Eis o artigo.

A S&P aponta suas baterias contra a Europa. Trata-se da mesma agência que até dias antes da falência do Lehman Brothers – em setembro de 2008 – classificava-o como AAA. É um papel semelhante ao aval que a empresa de auditoria contábil Arthur Andersen dera para a empresa de energia Enron, sendo que esta pediu concordata em dezembro de 2001 após o exercício de contabilidade “criativa”. A diferença é que a Arthur Andersen acompanhara a diretoria da Enron direto para uma investigação de fraude corroborada pela auditoria. Na última sexta-feira (13/1/2012), a S&P rebaixou a classificação da dívida (e dos títulos desta) de nove países europeus, incluindo a França, potência latina da Zona Euro e rival da Alemanha no projeto da Europa unificada. Já na segunda-feira (16/1), veio a consequência, com o também rebaixamento do Fundo Europeu de Estabilidade Finaneira (Feef), composto por todos os Estados já depreciados pela mesma agência. Imediatamente, o ex-vice-presidente do Goldman Sachs e atual presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, pediu celeridade dos países membros na busca por ajustes de austeridade.
Tanto a S&P como o próprio Draghi são agente e ator diretamente responsáveis pela fraude com nome de “crise” que hoje assola a Europa. Desaparecera por mágica a relação causal direta do aumento da dívida pública dos países membros, fruto da maior transferência de renda da história da humanidade, quando os Estados passaram recursos públicos para bancos privados insolventes após haverem negociados derivativos podres.

Quando o movimento por outra globalização se expandiu, nos anos 1990, uma das bandeiras consensuais era a instauração da Taxa Tobin, onerando a especulação internacional. É pouco. É preciso desmontar o poder de legitimação das instituições financeiras que impõem suas vontades sobre Estados soberanos e governos eleitos, incluindo as agências de “análise”.

Observação final após a publicação original do artigo: como era de se esperar, a contra-pauta desse lide avança mesmo por dentro das estruturas de poder do ocidente. O procurador do município de Trani, Michele Ruggiero, na região de Milão, abriu investigação junto ao aparato da Guarda de Finanças (ligada ao Tesouro Italiano, mas com outras funções de polícia) e adentrou em diligência dentro do escritório da referida agência na cidade que consagrara Silvio Berlusconi como presidente de clube de futebol com projeções populistas. A S&P e a Moody’s estão na alça de mira da Justiça da Itália, justamente por fazerem – ou supostamente haverem feito – aquilo que são acusadas: manipulação de dados e julgamentos imprudentes e infundados. A S&P, em julho de 2011, e a Moody’s, em maio do mesmo ano, geraram fatos políticos a partir de relatórios supostamente “técnicos” ainda com o jogo político oficial em andamento (a primeira no Parlamento, e a segunda com o mercado em aberto). Além do tradicional comportamento de manada, os informes puseram contra a parede a capacidade de mando do próprio governo italiano.

É o momento para uma nova ordem mundial?

A ameaça de calote da dívida pública dos Estados Unidos vem suscitando uma série de debates a respeito do possível fim de uma era ou ciclo de dominação dentro do capitalismo. Para quem viveu o período da Guerra Fria, o cenário hoje vislumbrado não era sequer imaginável. Hoje, pela primeira vez na história contemporânea, os efeitos da política interna e externa dos EUA pós-11 de setembro de 2001 se veem como uma possível crise de legitimidade e perda da hegemonia mundial – no médio prazo – do único Estado do planeta que é uma superpotência militar.

Isto se dá por uma série de fatores, mas uma relação causal de fácil compreensão é que a conta simplesmente não fecha. A equação é simples. Os EUA sozinhos gastam mais com o complexo industrial-militar do que todos os demais Estados existentes no planeta. Isto ajuda a gerar a maior dívida interna do mundo acompanhada de um progressivo corte de gastos públicos e aumento de isenções e repasses de verbas para grandes transnacionais. O efeito é o abismo social, fortalecendo os 1% mais ricos e seus poderosos lobbies. Um Império decadente com supremacia militar e sistemas produtivos dependentes da China não tem condições prolongadas de exercer sua vontade soberana acima de organismos multilaterais, desde que os Estados emergentes assim o desejem.

A gangorra poderia começar a pender para outros lados se blocos regionais ou de países, como a Unasur e o G-20, estabelecessem medidas de proteção mútua, tais como fundos de emergência e índices de risco, por fora das estruturas estabelecidas pela atual hegemonia em franca decadência. Por mais surreal que pareça, o balizador das dívidas dos países são índices de empresas privadas de análise de risco (da possível ausência de pagamento), a saber, Standard & Poors, Moody’s e Fitch. Para os organismos financiadores do capitalismo, a informação produzida através destas empresas é considerada superior a coproduzida pelas autoridades de países como Brasil, Rússia, Índia, Indonésia, China e Coreia do Sul.

Retirar a absurda legitimidade das empresas de “análise” de risco e, ao mesmo tempo, iniciar acordos multilaterais em busca de novos lastros para além do fator dólar-dólar, tal como uma possível moeda cambial dos emergentes, seria um belo primeiro passo. Se a economia do Império decadente é o motor engasgado da locomotiva mundial, romper com esta interdependência em escala planetária é tarefa de todo e qualquer governo minimamente balizado no respeito da soberania de seu país.


Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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