Edição 513 | 16 Outubro 2017

Admirável futuro novo

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Fernando Del Corona

Em Blade Runner 2049, criou-se uma continuação que faz jus ao original e expande o universo de maneira única

O blade runner K (Ryan Gosling) observa as imagens gigantescas apresentadas em hologramas

Em 2001: uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick, o computador de nave HAL 9000, após quase matar os dois astronautas que planejavam desativá-lo, se vê diante da própria morte. Conforme o único sobrevivente (Keir Dullea) se prepara para desligar HAL definitivamente, este clama, sob a voz robótica de Douglas Rain: “Pare, Dave. Eu estou assustado”. A máquina, a quem o homem dera sua própria voz, era consciente do seu fim.

Na ficção científica, a ideia do androide sempre foi de especial interesse: já em 1927 Fritz Lang apresentava uma das figuras mais emblemáticas do cinema no robô que assume a aparência da jovem Maria (Brigitte Helm) em Metrópolis. Assim como na vida real, cada vez mais se buscava aproximar o homem da máquina, dando-lhe voz e aparência humana. Em Blade Runner, o caçador de androides (1982), de Ridley Scott, a ideia é levada à sua conclusão natural: uma vez que um robô é indistinguível de um ser humano, qual a diferença entre os dois?

Apesar do peso da pergunta-chave – afinal, o que é ser humano –, Blade Runner não foi uma reflexão existencialista como 2001, mas um noir futurista que se aproximava mais das histórias de Philip Marlowe do que dos mundos fantásticos de Star Wars. No futuro dirigido por Scott – e inspirado pelo livro Androides sonham com ovelhas elétricas?, de Phillip K. Dick, lançado em 1968 –, a Terra está se esgotando de seus recursos naturais, e os que têm condições financeiras fogem para morar em outros planetas, enquanto os outros ficam confinados em megacidades claustrofóbicas e sob a constante chuva ácida. Para realizar o trabalho ingrato de colonizar planetas, criaram-se replicantes, androides idênticos a humanos em quase todos os aspectos. Quando um replicante precisa ser aposentado – leia-se: executado –, são blade runners que vão atrás deles, os caçadores de androide do título.

O filme foi um fracasso de bilheteria na ocasião do seu lançamento e passou por uma série de cortes e edições até chegar, em 2007, à versão final. Enquanto isso, ganhou status de cult, sendo valorizado por sua visão do futuro e seu design de produção. Atualmente, é figura certa em listas de melhores filmes de ficção científica ou dos anos 1980 – ou até de todos os tempos. Assim, produzir uma continuação 35 anos depois parecia tarefa dantesca, fadada ao fracasso, especialmente com o histórico recente de Ridley Scott.

O primeiro sinal de luz veio com a revelação do novo diretor escolhido por Scott, o canadense Denis Villeneuve, que chamou atenção internacional em 2016 com A chegada, mas que trazia na bagagem uma série de acertos, como Sicário: terra de ninguém (2015), O homem duplicado (2013), Os suspeitos (2013) e o impressionante Incêndios (2010). A segunda boa notícia veio com a escolha do diretor de fotografia Roger Deakins, colaborador frequente dos irmãos Coen. Lentamente criou-se esperança.

Blade Runner 2049 conseguiu o que parecia impossível. Não é somente uma continuação que faz jus ao original, mas também funciona bem como obra independente e expande ainda mais o universo desenvolvido em 1982. Com uma duração consideravelmente maior – 166 minutos, quase 50 minutos mais longo do que seu antecessor –, a trama ainda é, no fundo, uma história de detetive: o blade runner K (Ryan Gosling), após aposentar um replicante (Dave Bautista) na sequência inicial do filme, descobre pistas sobre um mistério que sua superior (Robin Wright) não quer que ele investigue e que aponta para seu próprio passado e para Rick Deckard (Harrison Ford), o protagonista do filme original.

Assim como George Miller fizera em 2015 com Mad Max: estrada da fúria, Villeneuve não se prende aos detalhes da obra original ou se perde em citações desnecessárias. Quando faz referência, é de maneira discreta ou porque se trata de algo relevante para a trama. O mundo criado parece a evolução daquele apresentando no primeiro filme: as imagens nas telas gigantescas apenas desceram para as ruas na forma de hologramas, e os prédios antigos e decadentes parecem ter sido substituídos de vez por novos pequenos apartamentos mais condizentes com a superpopulação da Terra, cada vez mais esvaziada de qualquer forma de natureza.

Agora, porém, o filme sai da cidade e das trevas, revelando a realidade do planeta, de desertos, lixões e paisagens radioativas. Todas as particularidades desse mundo, dos neons espetaculares de Los Angeles a uma Las Vegas fantasma, são captadas pelos olhos de Deakins, um dos maiores diretores de fotografia da atualidade. Blade Runner 2049 é um espetáculo visual, entre cores, enquadramentos e jogos de luzes angulares que remetem ao próprio Fritz Lang e ao expressionismo alemão. Uma cena envolvendo K, Joi (Ana de Armas), uma inteligência artificial que surge em forma de holograma e Mariette (Mackenzie Davis), é visualmente uma das mais criativas e envolventes dos últimos anos, materializando com perfeição as ideias de Ela (2013), de Spike Jonze, sobre um homem que se apaixona por um aplicativo.

Entre os dois filmes – e muito disso é contado através de três curtas-metragens oficiais lançados como prólogos para o longa –, a Tyrell Corporation, empresa que produzia replicantes no filme original, vai à falência, e a criação de novos replicantes é proibida. O empresário Niander Wallace (Jared Leto), responsável por evitar a fome mundial através da criação de comida sintética, consegue reverter a lei fabricando replicantes que obedecem às ordens humanas – mesmo que isso signifique tirar suas próprias vidas. Em um mundo onde árvores estão se extinguindo, Villeneuve demonstra o poder e o dinheiro de Wallace através de seu prédio, repleto de salões elegantes completamente cobertos por madeira.

Ryan Gosling parece feito para o papel principal – supostamente ele fora a primeira e única escolha do diretor –, aperfeiçoando o estoicismo que desenvolveu em filmes como Apenas Deus perdoa (2013) e Drive (2013), ambos de Nicolas Winding Refn. K não é como Deckard, com seu charme agressivo oitentista, mas distante e, na maioria das vezes, impassível. Um momento-chave gira em torno de variações sutis, quase imperceptíveis, na atuação de Gosling que – o filme sugere – seriam percebidas apenas por um computador. Sua maior antagonista no filme é a replicante Luv (Sylvia Hoeks), braço direito de Wallace, que inverte o jogo de caça do primeiro filme, perseguindo K. Wallace, por sua vez, ganha pouco tempo de cena, funcionando mais como uma figura sinistra através do alcance do seu poder e influência. Saindo do fracasso de Esquadrão suicida (2016), em que foi duramente criticado por sua interpretação do Coringa, não é um papel simples para Leto, que usou lentes de contato opacas para simular a cegueira do personagem. Ainda que não chegue a ser uma redenção no nível de sua atuação em Clube de compras Dallas (2013), é uma performance competente, e o personagem, marcante, apesar das poucas cenas – ainda que, em grande parte, isso venha das escolhas estéticas do filme, não apenas da atuação de Leto. Harrison Ford, completando a recapitulação de seus papéis mais populares depois de voltar a viver Han Solo e Indiana Jones, entrega sua melhor performance em décadas, acrescentando algo nescessário à trama, algo que Star Wars: o despertar da força (2015) falhou em conseguir.

A história se desenvolve sem pressa. A trilha de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer reflete sobre a icônica música de Vangelis para o original, mostrando-se sombria e, por vezes, melancólica. Os planos são longos e, em alguns momentos, repletos de silêncios. O mundo parece vivo, fugindo dos limites da tela. Para a continuação de um filme tão querido e analisado por mais de 30 anos, isso já seria um grande feito, mas Villeneuve vai adiante. Em tempos de remakes, reboots e continuações desnecessárias, feitas apenas para lucrar a partir da nostalgia e dos fãs de uma marca, Blade Runner 2049 é um trabalho realizado com uma visão única de um dos melhores diretores em trabalho na atualidade. Com um orçamento estimado de mais de 150 milhões de dólares e uma bilheteria que vem decepcionando, não se pode esperar muitos filmes como esse: uma obra que consegue mesclar arte e entretenimento em tamanha escala, ação com questionamentos filosóficos – sendo bem-sucedida em ambas as propostas.

Os novos replicantes em Blade Runner 2049 atualizam as questões morais apresentadas no primeiro filme. Se quando HAL suplica por sua vida, em 2001, a máquina começou a agir como um humano, em Blade Runner, a máquina ganhou a forma deste. O futuro, Villeneuve sugere, será um passo para trás. Os replicantes não devem mais ser tão próximos do homem. Através da sua obediência irrefutável, eles voltarão para mais perto do robô distante, o que deve diminuir qualquer questão moral do abuso deles como mão de obra involuntária, da mesma maneira que se usaria uma ferramenta. Ao remover a capacidade de escolher, se tira uma parte da sua humanidade. O que Blade Runner 2049 explora é o que resta por trás da escolha, no limite entre o humano e a máquina, se é que existe um.

Ficha técnica

Blade Runner 2049 (2017), de Denis Villeneuve

Blade Runner 2049
Direção: Denis Villeneuve
Produção: Andrew A. Kosove, Broderick Johnson, Bud Yorkin, Cynthia Yorkin
Elenco: Ryan Gosling, Harrison Ford, Jared Leto, Robin Wright, Ana de Armas, Sylvia Hoeks, Mackenzie Davis, Dave Bautista
Estados Unidos, 2017, 166 min.

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