Edição 513 | 16 Outubro 2017

Em busca de uma ecogovernamentalidade

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Lara Ely e Ricardo Machado

Alfredo Veiga-Neto amplia o conceito de gorvernamentalidade de Foucault em busca de novas perspectivas para pensarmos os desafios contemporâneos

Historicamente a educação é um terreno fértil para o exercício de governo da população à medida que a compreendemos em termos biopolíticos, isto é, como conjunto de ações racionais direcionadas ao planejamento da economia das ações relacionadas ao biopoder. “Note-se que estou usando a palavra economia no seu sentido mais amplo, ou seja, não como uma área do conhecimento ― a Economia ―, mas como a otimização entre o que entra num sistema e o que sai dele, como ausência de desperdícios e de excessos inúteis”, explica Alfredo Veiga-Neto, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Diante dos desafios que as sociedades contemporâneas nos impõem, a emergência de novas categorias pode nos ajudar a compreender melhor a complexidade dos fenômenos atuais. É nesse sentido que Veiga-Neto mergulha ao discutir e propor o termo ecogovernamentalidade. “Na medida em que governamentalidade foi a palavra que Michel Foucault inventou para designar, entre outras coisas, um conjunto de ações, análises e cálculos que possibilitam o exercício de determinadas formas de poder, bem como o campo em que se cruzam as práticas de governamento de cada um consigo próprio com as práticas de governamento sobre os outros, podemos falar em ecogovernamentalidade como uma associação entre a governamentalidade acima resumida e a Ecologia, de modo a pensarmos e problematizarmos politicamente não propriamente a vida em si, mas a vida imersa nas múltiplas condições que a cercam e a tornam possível”, descreve. “Pode-se dizer que, no âmbito da criação e da invenção, cabe à educação contribuir para a inovação, em termos da ampliação dos saberes e conhecimentos sobre a vida e o ambiente”, complementa.

Alfredo Veiga-Neto é graduado em Música e História Natural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Cursou mestrado em Genética e Biologia Molecular e doutorado em Educação pela mesma instituição, com a tese A ordem das disciplinas. É professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e professor titular (aposentado) do Departamento de Ensino e Currículo, Faculdade de Educação da UFRGS. De sua produção intelectual, destacamos as seguintes obras, por ele organizadas: Crítica pos-estructuralista y educación (Barcelona: Laertes, 1997) e Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzscheanas (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). De sua própria autoria, publicou Foucault & a educação (2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005).

O professor Alfredo Veiga-Neto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, juntamente com o professor Castor Bartolomé Ruiz, do PPG em Filosofia da Unisinos, e o professor José Roque Junges, do PPG em Saúde Coletiva da Unisinos, apresenta e debate do livro Biopolítica: Um mapa conceitual, de Laura Bazzicalupo (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2017). O evento ocorre na terça-feira, 17-10-2017, às 16h, na sala Ignácio Ellacuría e Companheiros – IHU e integra a programação do IX Colóquio Internacional IHU. A Biopolítica como teorema da Bioética. Acesse programação completa.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que ordem é a dimensão biopolítica na educação?
Alfredo Veiga-Neto – Educação e biopolítica estão intimamente relacionadas. Por um lado, a biopolítica ― no sentido desenvolvido por Michel Foucault , especialmente nos cursos que ministrou no Collège de France na segunda metade da década de 1970 ― racionaliza as ações que visam ao governamento das questões e problemas vitais presentes numa população. Enquanto o biopoder é um poder que age, que atua, sobre a vida individual ou coletiva, a biopolítica é o conjunto das ações políticas que tem como objeto principal a vida numa população. Talvez se possa dizer que a biopolítica organiza racionalmente os biopoderes quando esses tomam a população como seu objeto.

Por outro lado, a Educação pode ser entendida como um conjunto de práticas, institucionalizadas ou não, cujo objetivo principal é a colocação dos recém-chegados ― principalmente as crianças ― nos “trilhos” de uma cultura que já estava aí e que, na Modernidade, é a cultura comum a uma determinada população. Assim, é fácil compreender que a biopolítica tem, na Educação, um (digamos) instrumento poderoso para seu exercício de governar uma população, ou seja, de conduzir as ações dos indivíduos que compõem tal população.

Em termos foucaultianos, a emergência da biopolítica, na Modernidade europeia por volta da segunda metade do século XVIII, foi correlata à emergência da noção de população. Nesse caso, é preciso fazer a diferença entre um aglomerado qualquer de indivíduos ― uma multidão, por exemplo ― e uma população, pois essa é entendida como sendo um ser vivo coletivo “sobre o qual” se deve promover determinadas políticas que promovam a vida. São tais políticas que chamamos de biopolíticas.

IHU On-Line –Partindo de categorias foucaultianas, como pensar a educação no registro da emancipação e da disciplinarização?
Alfredo Veiga-Neto – Esta não é uma questão simples, pois, no âmbito dos Estudos Foucaultianos, a palavra emancipação tem um sentido bem diferente e uma força muito menor do que tem, por exemplo, na Teoria Crítica. De modo semelhante, a palavra disciplinarização também tem um outro sentido, um sentido positivo e principalmente produtivo, isto é, para Foucault a disciplina produz efeitos, em geral positivos e úteis. Por si só, a disciplina coloca determinados ordenamentos nos grupos humanos que, sem ela, não passariam de uma massa caótica, a ser contida pela força bruta ou pela violência.

Nas palavras do filósofo, o Iluminismo que inventou as liberdades teve de inventar também as disciplinas. Em outras palavras, nessa perspectiva, a liberdade não tem um sentido abstrato e incondicional, mas é um estado no qual as ações individuais ou coletivas devem seguir, consciente ou inconscientemente, certos padrões e constrangimentos partilhados os quais regulam a vida coletiva e garantem o uso racional dos espaços e tempos de que todos dispõem.

Seguindo de perto os ensinamentos da pedagogia de Kant , Foucault insistiu muitas vezes que foi o poder disciplinar colocado em funcionamento a partir do século XVII, principalmente pela educação escolarizada, que permitiu importantes avanços das sociedades europeias, em termos de economia, cultura, qualidade de vida, convivência pacífica, equidade social etc. Nas minhas pesquisas desenvolvidas na primeira metade da década de 1990, sobre a disciplinaridade curricular, fiz um recuo histórico, argumentando que, bem antes do que havia sido descrito por Foucault, no seu magistral Vigiar e Punir (Petrópolis: Vozes, 1987), já no século XVI a disciplinaridade estava sendo “implantada” na teorização e nas práticas pedagógicas. Isso aconteceu primeiro em algumas universidades europeias e, quase ao mesmo tempo, nos colégios católicos, luteranos e calvinistas.

IHU On-Line – Como a biopolítica impacta na subjetividade humana?
Alfredo Veiga-Neto – Ao entendermos que falar em biopolítica é falar num conjunto de ações racionais cujo objetivo é planejar o mais economicamente possível as ações do biopoder ― enquanto ações sobre a vida ―, entenderemos que as subjetividades estão continuamente sujeitas às ações da biopolítica.

Vejamos um exemplo: uma determinada campanha governamental que, pela mídia, visa alertar uma população para os perigos de uma eventual epidemia e, com isso, convencer o maior número de pessoas a se vacinarem, é parte de uma biopolítica. Ora, tal campanha será tão mais eficiente quanto mais profundamente atingir cada sujeito, modificando-o a ponto de que ele não apenas se deixe vacinar, mas, mais do que isso, queira se vacinar, procure os serviços de saúde porque passou a sentir necessidade de se vacinar.

Note-se que estou usando a palavra economia no seu sentido mais amplo, ou seja, não como uma área do conhecimento ― a Economia ―, mas como a otimização entre o que entra num sistema e o que sai dele, como ausência de desperdícios e de excessos inúteis.

IHU On-Line – Quais lhe parecem ser os principais dilemas éticos do biopoder?
Alfredo Veiga-Neto – Ao entendermos o biopoder como determinadas ações que tomam a vida como alvo de sua ação, logo se verá que sempre o biopoder está envolvido com questões éticas. Para o bem ou para o mal, não há biopoder nem há a sua racionalização política ― à qual chamamos de biopolítica ― que não estejam implicados com vários dilemas éticos.

O problema que sempre temos pela frente é conseguir a maximização dos ganhos e a minimização das perdas. Dito assim, parece fácil; mas não é... Sempre é preciso determinar o que se entende por ganhos e por perdas; é, também, preciso saber quem ganha e quem perde, quanto custa essa ou aquela decisão frente a um dilema. Além disso, é preciso ter claro que, no campo dos dilemas éticos, apenas muito raramente se consegue zerar os custos de uma decisão. Aqui, um pequeno alerta: quando falo em “ganhos”, “perdas” e “custos”, não me restrinjo às racionalidades do mercado. Muito mais do que isso, estou me referindo a ganhos, perdas e custos no âmbito dos saberes, da epistemologia, dos afetos, da moral, dos valores humanos. E é claro que, num mundo pautado pelas racionalidades liberal e neoliberal, gostemos ou não, nada disso dispensa, também, uma avaliação em termos do mercado.

IHU On-Line – Como o senhor compreende a noção de “ecopolítica”? De que forma ela se aproxima e se afasta da noção de biopolítica?
Alfredo Veiga-Neto – Costuma-se compreender a Ecopolítica como todo o conjunto de ações políticas que tem como objeto principal a Ecologia, ou seja, a condução racional e interessada das questões e problemas decorrentes das relações dos seres vivos entre si e com o ambiente que os “acolhe”.

No meu entendimento, a ecopolítica deriva tanto da Ecologia quanto da biopolítica. Afinal, quando falamos em Ecologia, está implícita a vida no seu sentido mais amplo. Na medida em que, no grego, oikos é a casa, a morada, e que lógos é a palavra ou o conhecimento sobre algo ― aqui, sobre essa morada ―, a Ecologia vem a ser o nosso conhecimento e aquilo que dizemos sobre a nossa morada, sobre os lugares que habitamos, sobre o millieu no qual se desenvolve a vida.

É claro que tais derivações e relações não implicam igualdade nem, muito menos, identidade. Assim como ecopolítica e biopolítica se aproximam ― e, às vezes, quase se superpõem ―, elas não são a mesma “coisa”.

IHU On-Line – De que forma a ecopolítica pode dar fôlego às pautas, por assim dizer, “antidesenvolvimentistas”?
Alfredo Veiga-Neto – Esta é uma pergunta que nos coloca diante de questões complicadas e sensíveis. Tornou-se um lugar-comum associarmos desenvolvimento econômico com destruição do meio ambiente; a História Moderna está repleta de exemplos dramáticos e lamentáveis que confirmam tal associação. Para complicar a situação, costuma-se entender, equivocadamente, que desenvolvimento econômico traz, necessariamente, desenvolvimento social, desenvolvimento humano, felicidade etc. E mais: também aqui é preciso ter claro, em cada situação, do que se está falando: o que se entende por crescimento econômico, desenvolvimento social, desenvolvimento humano e destruição do ambiente?

Resumindo, ainda é forte o mito de que qualquer forma de desenvolvimento acarreta sempre graves problemas ecológicos. Frente a esse estado de coisas, a ecopolítica tem muito a fazer e pode muito fazer. Entre outras coisas, ela pode, por exemplo, atuar no sentido de estimular e apoiar concretamente as muitas modalidades de desenvolvimento sustentável, de modo a não comprometer o ambiente em que vivemos e que deixaremos para as gerações futuras.

IHU On-Line – O que se entende por “ecogovernamentalidade”?
Alfredo Veiga-Neto – Frente a esta pergunta, eu me lembro de Alain Touraine , filósofo francês contemporâneo que, entre muitos outros, escreveu o livro Pensar outramente (Rio de Janeiro: Vozes, 2009). Segundo Touraine, diante das múltiplas e inesperadas situações que se abrem à nossa frente, temos de inventar palavras novas. Afinal, tais palavras são a materialidade dos conceitos que funcionam quais ferramentas que nos permitem enxergar, entender e problematizar as novidades de um mundo em permanente mutação. A ecogovernamentalidade é um bom exemplo disso. Seja como for, parece que ainda estamos num momento de clarificar e afiar melhor tais conceitos-ferramenta. Assim, o que segue no parágrafo abaixo não passa de uma proposta provisória; ela não é original, mas serve aos propósitos que tenho em mente.

Na medida em que governamentalidade foi a palavra que Michel Foucault inventou para designar, entre outras coisas, um conjunto de ações, análises e cálculos que possibilitam o exercício de determinadas formas de poder, bem como o campo em que se cruzam as práticas de governamento de cada um consigo próprio com as práticas de governamento sobre os outros, podemos falar em ecogovernamentalidade como uma associação entre a governamentalidade acima resumida e a Ecologia, de modo a pensarmos e problematizarmos politicamente não propriamente a vida em si, mas a vida imersa nas múltiplas condições que a cercam e a tornam possível.

IHU On-Line – Como a categoria da ecogovernamentalidade contribui para o desenvolvimento de alternativas políticas diante da iminência do colapso civilizacional?
Alfredo Veiga-Neto – Ainda que as perspectivas ambientais, para um futuro a curto e médio prazos, não sejam animadoras, acho que a expressão “colapso civilizacional” é forte demais. Herdamos, das tradições talmúdicas, o mito do catastrofismo. Por isso, sou reticente diante das previsões alarmistas.

É claro que essa minha posição encontra tanto adeptos quanto críticos de múltiplos matizes, competências e intensidades. Trata-se de uma questão que fustiga as mentes e incendeia os corações. E, por mais que se avance numa ou noutra direção, sempre haverá novos caminhos a percorrer; e, enquanto o colapso não chega, mais gente esperará por ele. Estamos diante da típica situação segundo a qual a demora de um acontecimento reforça a certeza de que ele ainda acontecerá... Isso soa como uma (pretensa) demonstração ex contrario sensu...

Temos um exemplo dessa situação na alardeada, explosiva e ideologizada discussão sobre o aquecimento global. Um batalhão de especialistas, liderados por nomes de destaque internacional como James Lovelock e Al Gore , há mais de 20 anos previram que, até o final do século XXI, bilhões de pessoas morreriam em decorrência do aquecimento do planeta e que apenas uns poucos sobreviveriam, desde que migrassem para os polos. Recentemente, o próprio Lovelock confessou: “eu cometi um erro; deveria ter sido mais cauteloso, porém teria estragado o livro” .

Estamos muitíssimos longe de um acordo e de conclusões seguras. De qualquer maneira, não tenho dúvida de que a ecogovernamentalidade pode contribuir muito para nos prevenir de alguns desastres e para o desenvolvimento de alternativas que tornem a Terra mais habitável, o ar mais respirável, as águas menos poluídas, as paisagens mais bonitas, a vida mais segura.

IHU On-Line – Quais são os riscos e as potencialidades da Ecopolítica, nos termos apresentados? E qual o papel da educação nesse processo?
Alfredo Veiga-Neto – Quanto à primeira parte da sua pergunta, acho que ela já está em boa parte respondida até aqui. Falta, apenas, dizer que um dos riscos de eventuais medidas ecopolíticas radicais e extremadas é o imobilismo tecnológico e a pura e simples condenação de qualquer mudança que a ciência e a tecnologia podem promover.

Quanto à segunda parte, a resposta é fácil: a educação tem um papel ou, melhor, vários papéis nesse processo. Resumidamente, pode-se dizer que, no âmbito da criação e da invenção, cabe à educação contribuir para a inovação, em termos da ampliação dos saberes e conhecimentos sobre a vida e o ambiente.

No âmbito da formação, pode-se dizer que, cabendo à Educação o acolhimento, a preparação e a introdução dos recém-chegados no nosso mundo, é sempre ela que poderá direcioná-los “para o bem” ou “para o mal”, para um futuro melhor ou para um futuro pior. Quanto mais a educação for diligente e competente para formar novas gerações preocupadas e envolvidas com problemas ambientais, melhor para elas e melhor para todos nós. ■

Leia mais
- Compreensão e rebeldia sobre nós mesmos. Entrevista com Alfredo Veiga-Neto, publicada na revista IHU On-Line número 203, de 6-11-2006.
- Violência e Poder. A violência viola, o poder seduz. Entrevista com Alfredo Veiga-Neto, publicada na revista IHU On-Line número 293, de 15-5-2006..
- A escola moderna é controladora. Entrevista com Alfredo Veiga-Neto, publicada na revista IHU On-Line número 281, de 10-11-2008.
- "Educação e crise são, reciprocamente, causa e conseqüência uma da outra". Entrevista especial com Alfredo Veiga-Neto, publicada nas Notícias do Dia de 27-1-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- A biopolítica e a crescente obsessão em torno da norma. Entrevista especial com Alfredo Veiga-Neto e Maura Corcini Lopes, publicada nas Notícias do Dia de 27-1-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- "O neoliberalismo situa a educação no mercado da competição, da produção exacerbada". Entrevista com Alfredo Veiga-Neto, , publicada nas Notícias do Dia de 16-11-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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