Edição 511 | 25 Setembro 2017

Brasil passa por grande retrocesso quanto ao controle ético de pesquisas envolvendo seres humanos

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Vitor Necchi

Thiago Rocha da Cunha alerta que setores do governo, da indústria farmacêutica e da academia querem flexibilizar parâmetros de proteção a participantes

O Brasil contava com um dos mais eficientes aparatos de proteção de participantes de pesquisas do mundo. Trata–se do Sistema CEP–Conep, estabelecido em 1996 como uma instância de controle social no âmbito do Conselho Nacional de Saúde e que, desde então, vinha aprimorando normas e mecanismos para a difusão ética das pesquisas com humanos. Nos últimos anos, no entanto, o sistema vem passando por ataques provenientes de setores do governo, da indústria farmacêutica e da academia. O intuito é “flexibilizar os parâmetros de proteção para os participantes sob o argumento de que é preciso acelerar a aprovação de pesquisas no país”, explica o doutor em Bioética Thiago Rocha da Cunha. “Estamos passando por um momento de grande retrocesso em relação ao controle ético das pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil.”

Em entrevista concedida por e–mail à IHU On–Line, Cunha afirma que, recentemente, o Senado aprovou um projeto de lei que altera o controle dos ensaios clínicos no Brasil. Isso, na prática, “desmonta todo o Sistema CEP–Conep e abre espaço para que tais estudos sejam avaliados apenas por comitês de ética em pesquisas privados, ou seja, comitês independentes de qualquer controle social e democrático”.

O assunto é altamente contemporâneo e importante. Para se ter uma ideia do alcance, é no âmbito da bioética que se discute a pesquisa envolvendo embriões humanos. “Preocupo–me, particularmente, com as aplicações destas pesquisas, especialmente no que se refere ao aprimoramento biológico seletivo das próximas gerações causadas por uma disponibilidade apenas mercadológica de tais tecnologias, o que tornaria uma já insustentável situação de desigualdade social em algo ainda mais grave, uma vez que repercutiria também em desigualdade e segregação biológica”, projeta Cunha.

Thiago Rocha da Cunha é doutor e mestre em Bioética pela Universidade de Brasília – UnB; bacharel em Biomedicina pelo Centro Universitário de Votuporanga – Unifev/SP. Fez estágio pós–doutoral em Bioética na UnB. Leciona no Programa de Pós–Graduação em Bioética e na graduação em Ciências Biológicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC–PR.

A entrevista foi publicada em Notícias do Dia de 6-9-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

IHU On–Line – O que é bioética?
Thiago Rocha da Cunha – A bioética é um campo do conhecimento voltado ao estudo dos problemas éticos envolvendo as diferentes formas de manifestação da vida. Do ponto de vista teórico, as origens da disciplina podem ser identificadas em duas vias: uma primeira, de perspectiva global, foi proposta por Van Rensselaer Potter no início dos anos 1970, que via na bioética uma ciência vocacionada a investigar as condições necessárias à sobrevivência humana na terra. Potter preocupa–se com o problema da adaptação biológica e cultural dos seres humanos no planeta e, frente a um contexto de rápidas e profundas transformações ambientais ocasionadas pelo desenvolvimento científico e econômico, propôs um espaço interdisciplinar que pudesse envolver cientistas e humanistas na busca de parâmetros bioeticamente necessários a uma civilização planetária sustentável a longo prazo.

Não apenas por ser demasiadamente ambiciosa, mas também por incomodar discursos hegemônicos nos campos científicos, econômicos e até religiosos (uma vez que o autor apontava a necessidade de regulação da economia, da ciência e da reprodução humana), esta perspectiva não foi inicialmente adotada e reproduzida no âmbito acadêmico local. Deste modo, foi em uma segunda via que a bioética se consolidou no final dos anos 1970 por meio de uma corrente teórica chamada “principialista”, que fora sistematizada por dois autores também dos Estados Unidos, Tom Beauchamp e James Childress. Preocupados especificamente com o problema da ética na pesquisa biomédica e nas relações entre profissionais de saúde e pacientes, estes autores indicaram quatro princípios que deveriam ser considerados na avaliação e na recomendação para enfrentamento de conflitos éticos: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. Por ser demasiadamente prática e por não aprofundar criticamente os conflitos bioéticos, esta perspectiva teórica acabou se consolidando como sinônima da própria bioética e até hoje figura–se como a abordagem hegemônica do campo.

IHU On–Line – No que tange aos direitos humanos, há uma declaração universal. Em relação à bioética, existe algum documento de vigência mundial?
Thiago Rocha da Cunha – Embora a bioética ainda se volte majoritariamente aos problemas biomédicos restritos à prática clínica, sua vocação global permaneceu latente durante o final do século 20 e se manifestou, de modo pujante, no início do século 21, sobretudo após a publicação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, publicada em 2005 pela Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura]. Este documento, além de resgatar certa perspectiva planetária vislumbrada por Potter, legitimou outras abordagens da bioética que foram se desenvolvendo à margem do principialismo dos EUA, especialmente as contribuições da bioética europeia, que remete a uma tradição filosófica fundada nos princípios da dignidade humana, e da bioética latino–americana, que aponta para conflitos bioéticos determinados por estruturas e processos socioeconômicos.

Assim, fundamentada normativamente na cultura dos Direitos Humanos, esta declaração traduz a pluralidade temática e conceitual que caracteriza a bioética contemporânea. Trata–se de um documento importante na medida em que aponta interfaces entre direitos humanos e bioética em temas como responsabilidade dos estados no acesso à saúde, no compartilhamento de benefícios do desenvolvimento científico, na cooperação e na solidariedade internacional, além dos temas clássicos da disciplina, como os processos de consentimento e da proteção da integridade nas pesquisas científicas.

IHU On–Line – No mundo todo, é notório o desrespeito aos direitos humanos. Qual a situação no campo da bioética? Quais os conflitos éticos mais comuns?
Thiago Rocha da Cunha – Os direitos humanos, especialmente tal como aplicados na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, formaram uma conquista ética valiosa para a humanidade, porque pela primeira vez na história se estabeleceu um princípio de igualdade fundamental entre todos os seres humanos, independentemente de raça, credo, gênero, nacionalidade ou qualquer outra condição. Ocorre que a cultura dos direitos humanos parece se deteriorar rapidamente: em primeiro lugar, porque a própria retórica dos direitos humanos foi instrumentalizada para fins hegemônicos, fazendo com que guerras, invasões, sanções e outras formas de coerções seletivas sejam aplicadas pela comunidade internacional para atender aos interesses dos países dominantes, enquanto esses mesmos países são responsáveis por graves violações de direitos humanos tanto no âmbito interno quanto externo. Por outro lado, o valor axiológico da dignidade humana, sustentáculo da igualdade dos direitos universais, tem sido cada vez mais desconsiderado em detrimento de discursos nacionalistas que proliferam não apenas em países da Europa e nos Estados Unidos, mas também em países periféricos.

Atualmente, a partir de uma lente crítica da bioética, conflitos éticos importantes envolvendo os direitos humanos podem ser ilustrados pela situação de vulnerabilidade que acomete migrantes e refugiados, mulheres, população LGBT, minorias étnicas e religiosas, além dos contingentes de desempregados, excluídos e precarizados pelo modo de produção econômico global e que geralmente são compostos pelos grupos sociais acima discriminados, o que os tornam ainda mais vulneráveis.

IHU On–Line – Em relação à ética em investigações científicas, há alguma especificidade regulando pesquisas no Brasil?
Thiago Rocha da Cunha – Estamos passando por um momento de grande retrocesso em relação ao controle ético das pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Para entender esse processo, é preciso destacar que o país contava (e ainda de certa forma conta) com um dos sistemas de proteção de participantes de pesquisas mais protetivos do mundo. O chamado Sistema CEP–Conep, estabelecido em 1996, foi estruturado como uma instância de controle social no âmbito do Conselho Nacional de Saúde e, desde então, veio propondo e aprimorando normas e mecanismos para a difusão ética das pesquisas com humanos no país. Porém, nos últimos anos, sobretudo após a revogação da chamada Resolução CNS 196/96, o sistema vem enfrentando fortes ataques por parte de setores do governo, da indústria farmacêutica e da academia que buscam flexibilizar os parâmetros de proteção para os participantes sob o argumento de que é preciso acelerar a aprovação de pesquisas no país. Recentemente, um projeto de lei foi aprovado no Senado propondo alterações no controle dos ensaios clínicos no Brasil que, na prática, desmonta todo o Sistema CEP–Conep e abre espaço para que tais estudos sejam avaliados apenas por comitês de ética em pesquisas privados, ou seja, comitês independentes de qualquer controle social e democrático.

IHU On–Line – Que parâmetros regem pesquisas envolvendo embriões humanos?
Thiago Rocha da Cunha – Este é um tema emergente da bioética que requer análise atenta e aberta, envolvendo todos os setores da sociedade. De modo geral, há dois parâmetros fundamentais para a condução ética das pesquisas envolvendo seres humanos: o respeito à dignidade e a proteção da autonomia. No caso específico das pesquisas que envolvem o ser humano em fase embrionária, esses dois parâmetros surgem de modo tensionado. Isto acontece porque, em primeiro lugar, o embrião do ser humano não pode manifestar sua vontade, em segundo lugar, porque ainda está aberta, no campo da discussão ética e jurídica, quando se inicia a proteção da dignidade na vida humana. Eu prefiro não discutir estes problemas de pontos de vista binários, isto é, em termos de ser absolutamente contrário ou absolutamente favorável às pesquisas. Preocupo–me, particularmente, com as aplicações destas pesquisas, especialmente no que se refere ao aprimoramento biológico seletivo das próximas gerações causadas por uma disponibilidade apenas mercadológica de tais tecnologias, o que tornaria uma já insustentável situação de desigualdade social em algo ainda mais grave, uma vez que repercutiria também em desigualdade e segregação biológica.

IHU On–Line – Outras formas de vida não humanas são contempladas pela bioética?
Thiago Rocha da Cunha – Esta é uma pergunta boa para reiterar que a bioética não pode ser definida por uma única perspectiva, tal como indica sua própria gênese histórica. Existem diversas abordagens teóricas da disciplina, sendo que algumas posicionarão a vida humana como o núcleo da preocupação ética, enquanto outras vão adotar posicionamentos mais amplos, considerando o valor intrínseco de outras formas de existência. Mesmo entre aquelas de cunho mais antropocêntrico, há diferentes nuances e divergências: por exemplo, entre as que consideram a vida humana a partir da concepção e as que posicionam o valor humano a partir do nascimento ou de um determinado estágio da gestação. Entre as perspectivas de cunho ambiental também há divergências, por exemplo, entre as que consideram eticamente merecedoras de preocupação as formas de vidas capazes de senciência, isto é, todos os animais que podem sentir dor ou prazer, frente às abordagens que consideram o valor de toda forma de expressão da vida, independentemente de seu nível de complexidade ou sensibilidade.

IHU On–Line – No cinema, há filmes que apresentam pesquisas realizadas pela indústria farmacêutica no continente africano em desrespeito aos princípios da bioética. O que é mera ficção ou o que é verdade nessas obras?
Thiago Rocha da Cunha – Creio que a realidade é muito mais perversa do que a representação artística desse problema. O filme citado, O Jardineiro Fiel, de Fernando Meirelles, apenas romantizou um problema concreto evidenciado nas pesquisas em HIV/aids no continente africano nos anos 1990, quando se deixou que pessoas, inclusive bebês, fossem infectados e sem tratamento; contudo, pessoas de todo o mundo e não apenas africanas estão vulneráveis a ameaças e abusos da pesquisa realizada em nome da indústria farmacêutica.

IHU On–Line – É correto pagar uma pessoa para que ela se submeta a algum tipo de pesquisa?
Thiago Rocha da Cunha – Acredito que em alguns casos o incentivo financeiro é útil para viabilizar as pesquisas. Um grave problema ético surge, no entanto, quando as pesquisas apresentam altos riscos, uma vez que nestes casos o incentivo financeiro leva as pessoas mais necessitadas da sociedade a assumirem os danos dos estudos, ao passo que os benefícios tendem a ir às camadas mais privilegiadas, ou seja, àquelas que podem pagar pelas inovações biotecnológicas e ficam isentas dos riscos, resultando em uma dupla injustiça social. ■

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