Edição 510 | 04 Setembro 2017

A tendência é que o atraso do Rio Grande do Sul se amplie

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Vitor Necchi

Para Cecilia Hoff, o colapso econômico do estado afeta investimentos, com efeitos a longo prazo

O colapso econômico do Rio Grande do Sul não é exclusivo do estado. “Nos últimos dois ou três anos, o que se vê é uma crise generalizada na economia brasileira”, avalia a economista Cecilia Hoff. No entanto, há fatores que aprofundaram esse processo nas finanças locais. Os setores automotivos e de máquinas e equipamentos, que tiveram maior expansão no ciclo de crescimento dos anos 2000, com participação relevante na economia gaúcha, foram duramente afetados. “Além disso, a crise atingiu o estado numa situação de deterioração fiscal, sem espaço de endividamento para fazer frente à queda das receitas e preservar a normalidade na prestação dos serviços públicos.” O colapso afeta investimentos, com efeitos a longo prazo. “A infraestrutura é claramente insuficiente, os indicadores de educação não são satisfatórios e a tendência é que o atraso se amplie”, projeta Hoff em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

A crise fiscal é um dos principais problemas pelo qual o estado passa. “No lado das despesas, os maiores problemas são a previdência e a dívida. Embora não houvesse clareza na época, a renegociação da dívida de 1998 estabeleceu condições que acabaram tornando a dívida do Rio Grande do Sul impagável”, pondera. Para agravar o quadro, o estado acumula perda de receitas.
Hoff entende que há um desequilíbrio nas questões federativas. “O governo federal vem centralizando cada vez mais as receitas, enquanto a ausência de uma política de desenvolvimento regional induz os estados a entrarem no jogo da guerra fiscal”, avalia. A consequência é que os serviços que cabem aos estados, entre eles segurança pública e ensino, estão em crise.

O Rio Grande do Sul não tem mais espaço para endividamento, a ponto de precisar “receber as receitas do mês para fazer frente às suas obrigações”, mas os ingressos são insuficientes. Hoff projeta que, no curto prazo, a solução passa por renegociar a dívida com a União. A médio e longo prazos, é necessário ampliar receitas por meio da recuperação da economia, da revisão dos incentivos fiscais e da “negociação, cada vez mais urgente, de um novo pacto federativo”.

Cecilia Hoff é doutora e mestra em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e graduada em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É pesquisadora em economia na Fundação de Economia e Estatística - FEE e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.

A entrevista foi publicada em Notícias do Dia, 29-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Do ponto de vista econômico, o que caracteriza a crise do Rio Grande do Sul e como ela foi gerada?
Cecilia Hoff – Tenho dúvidas se de fato há uma crise econômica específica no Rio Grande do Sul. Nos últimos dois ou três anos, o que se vê é uma crise generalizada na economia brasileira, que atingiu todas as regiões do país. Esta crise conjuga elementos de esgotamento do ciclo econômico e do sistema político brasileiro, em um cenário de intensas transformações na sociedade mundial, e ainda precisa ser entendida em toda a sua complexidade. No aspecto econômico, o modelo de crescimento que caracterizou o Governo Lula parece ter se esgotado a partir de 2012, tanto por motivos externos (fim do ciclo de expansão dos preços das commodities e início da reversão dos estímulos monetários nos EUA), quanto internos (limites da expansão do crescimento puxado pelo crédito). No Governo Dilma, houve uma tentativa de mudança do modelo, com uma maior ênfase ao investimento, mas as medidas adotadas não surtiram os efeitos esperados e acabaram ampliando os desequilíbrios nos fundamentos macro – inflação represada e aumento dos déficits público e externo. A correção desses desequilíbrios, iniciada em 2015, jogou a economia brasileira na maior crise das últimas três décadas. Alguns dos setores que apresentaram maior expansão no ciclo de crescimento dos anos 2000, como o automotivo e o de máquinas e equipamentos, têm participação relevante na economia gaúcha e foram duramente afetados. Além disso, a crise atingiu o Estado numa situação de deterioração fiscal, sem espaço de endividamento para fazer frente à queda das receitas e preservar a normalidade na prestação dos serviços públicos.

IHU On-Line – O colapso nas finanças afeta investimentos em todos os segmentos, inclusive em áreas fundamentais, como ensino, saúde e segurança. O alcance dessa crise será sentido por muito tempo?
Cecilia Hoff – Sim, a falta de investimentos hoje provavelmente terá efeitos de longo prazo. A infraestrutura é claramente insuficiente, os indicadores de educação não são satisfatórios e a tendência é que o atraso se amplie. É grave também o desperdício de recursos nos investimentos em infraestrutura que foram iniciados e que hoje estão se depreciando. Veja-se, por exemplo, as obras paralisadas da nova ponte do Guaíba e a duplicação da BR-116 no trecho Porto Alegre–Pelotas. Os investimentos não serão retomados do ponto em que pararam, haverá perdas no caminho.

IHU On-Line – O elevado nível de endividamento é explicado pelos sucessivos déficits orçamentários praticados em mais de quatro décadas, ou seja, receitas orçamentárias insuficientes para suprir os gastos. Por que isso ocorreu?
Cecilia Hoff – A crise fiscal tem origens tanto no lado das despesas quanto das receitas. No lado das despesas, os maiores problemas são a previdência e a dívida. Embora não houvesse clareza na época, a renegociação da dívida de 1998 estabeleceu condições que acabaram tornando a dívida do Rio Grande do Sul impagável. Isto é, o serviço da dívida, fixado como uma proporção máxima das receitas estaduais, não se mostrou suficiente para pagar sequer os juros, que se tornaram muito elevados devido à utilização do IGP-DI como indexador. A dívida passou então a acumular os chamados “resíduos”, que esgotaram o espaço de endividamento do Estado, a despeito dos recursos volumosos – e que fizeram falta em outras áreas – despendidos para o seu pagamento. Por outro lado, o estado vem perdendo receitas, seja por decisões fundamentadas na política econômica nacional, como a Lei Kandir e, mais recentemente, as desonerações, seja em função das renúncias fiscais.

IHU On-Line – O déficit da Previdência estadual é fator que agrava a situação? Qual o alcance desse problema?
Cecilia Hoff – A Previdência não foi um problema no passado, quando a proporção de aposentados nas receitas fiscais era menor, e talvez também não seja um problema no futuro, visto que houve alteração nas regras de aposentadoria, com o aumento das contribuições e a constituição de um fundo previdenciário para os servidores estaduais. Mas é um problema no presente. Hoje, o número de matrículas de inativos é maior do que o de ativos, e o resultado disso é que o governo gasta uma parcela grande das suas receitas com pessoal, ao mesmo tempo em que há escassez de servidores para a prestação de serviços públicos essenciais. Ou seja, o gasto com pessoal dá a impressão de um Estado inchado, mas há carências em diversas áreas.

IHU On-Line – A participação do Estado na economia nacional encolheu? Por quê?
Cecilia Hoff – A participação do Estado na economia nacional vem encolhendo desde meados dos anos 1950. Na FEE [Fundação de Economia e Estatística], temos uma série que vai de 1947 a 1994, que mostra uma redução de cerca de 9%, no início da série, para 8%, em 1994; e outra, não totalmente comparável com a anterior, porque houve uma mudança metodológica que reestimou a participação dos setores no PIB, que mostra uma redução da participação de cerca de 7% em 1995 para 6% em 2013. Devido às limitações da estatística, não é possível dizer que a participação da economia gaúcha se reduziu de 9% para 6% em todo o período, mas dá para dizer que há uma tendência de redução em ambas as séries.
De todo modo, esse não parece ser um bom indicador para avaliar o desempenho econômico, é cheio de armadilhas. Um crescimento abaixo da média nacional não necessariamente é um problema, se o todo está em crescimento e o seu ritmo é suficiente para que a região se desenvolva. Além disso, é esperado que nos ciclos de expansão as regiões relativamente mais atrasadas cresçam de forma mais acelerada, o que ajuda a reduzir as desigualdades regionais. A questão que parece relevante é se o Estado tem condições de se articular de forma dinâmica na divisão nacional do trabalho, isto é, se o crescimento se dá em setores modernos, com capacidade de evolução e adaptação, ou em segmentos atrasados e de baixa produtividade.

IHU On-Line – A crise pela qual passa o Rio Grande do Sul tem que semelhanças e diferenças com a situação dos outros Estados?
Cecilia Hoff – A situação fiscal não é fácil em vários Estados (e também em alguns municípios), mas os casos mais graves são os do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Os três têm em comum uma burocracia estatal antiga, e, portanto, um alto endividamento e uma proporção relativamente elevada de servidores aposentados no total dos gastos com pessoal. Rio Grande do Sul e Minas Gerais também têm em comum a perda de receitas com a Lei Kandir. Nas estimativas do governo de Minas, a dívida poderia ser zerada em um eventual encontro de contas com a União. No Rio Grande do Sul, estima-se que os ressarcimentos atrasados correspondam a algo em torno de 80% da dívida estadual. Mas as semelhanças param por aí. Tanto o Rio de Janeiro quanto Minas Gerais têm uma parte importante das suas receitas fiscais vinculadas ao desempenho da indústria extrativa (petróleo e gás, no caso do Rio, minério de ferro, no caso de Minas). Nos dois casos, a queda dos preços das commodities contribuiu para ampliar a frustração de receitas na crise. No Rio, a queda das commodities se somou a uma crise específica na Petrobras. No Rio Grande do Sul, a indústria extrativa é praticamente ausente, e a indústria de transformação é mais diversificada.

IHU On-Line – A guerra fiscal travada entre as unidades federativas para atração de investimentos reduz a arrecadação, por conta da concessão de incentivos. No Rio Grande do Sul, a estimativa é de que haja uma renúncia fiscal de R$ 9 bilhões ao ano. Essa política que se expandiu fortemente nos anos 1990 é salutar para o Rio Grande do Sul ou ajudou a agravar a crise?
Cecilia Hoff – Há um desequilíbrio nas questões federativas, com repercussões gerais, que não atingem apenas o Rio Grande do Sul. O governo federal vem centralizando cada vez mais as receitas, enquanto a ausência de uma política de desenvolvimento regional induz os Estados a entrarem no jogo da guerra fiscal. O resultado é a redução da parcela dos Estados no bolo tributário nacional, enquanto as suas obrigações na distribuição federativa dos serviços públicos permanecem. Não é à toa que os serviços de responsabilidade dos Estados, como segurança pública e ensino, estão em crise em todo o Brasil. Os incentivos fiscais implicam na renúncia de receitas, mas, na lógica federativa atual, é um dos poucos instrumentos que podem ser usados pelos governos para estimular o desenvolvimento das suas regiões.

IHU On-Line – A falta de transparência em relação às informações acerca da concessão de incentivos fiscais impede uma avaliação mais criteriosa sobre a eficácia dessa política?
Cecilia Hoff – Sem dúvida. A renúncia fiscal de R$ 9 bilhões parece um exagero e escancara a necessidade de uma avaliação, mas a revisão precisa ser cuidadosa. As empresas que recebem incentivos fiscais pagam impostos (mesmo que parcialmente) e geram empregos e renda, que também têm os seus efeitos indiretos na arrecadação. Além disso, muitos dos incentivos são concedidos para empresas que se instalam em regiões de baixo desenvolvimento. A possibilidade de perdas de empresas e de empregos não pode ser desconsiderada. Ou seja, a revisão é necessária, e pode vir a ser uma solução para os desequilíbrios fiscais do Estado a médio prazo, mas não é trivial e precisa estar fundamentada em uma análise séria e transparente de custo-benefício.

IHU On-Line – O Estado não tem mais fontes de financiamento. Conforme a FEE, o estoque de depósitos judiciais foi praticamente exaurido, e o limite de endividamento legal foi superado no primeiro quadrimestre de 2015. O que resta como estratégia de curto prazo?
Cecilia Hoff – A queda conjuntural das receitas, provocada pela recessão, pegou o estado de “calças curtas”. As despesas são rígidas, concentradas em gastos com pessoal, sobretudo na educação, na segurança e na previdência. Como não há mais espaço para o endividamento, consumido pela trajetória insustentável da dívida, o Estado precisa receber as receitas do mês para fazer frente às suas obrigações. Mas os ingressos não são suficientes, e a conta não fecha. A queda das receitas é tão grave que a suspensão do pagamento das parcelas da dívida, enquanto são conduzidas as negociações do acordo de recuperação fiscal dos Estados, não foi suficiente para equilibrar a situação fiscal. No curto prazo, a solução passa por uma renegociação da dívida, que revise o seu estoque e permita a tomada de novos recursos, seja para colocar as obrigações do Estado em dia, seja para substituir parcelas da dívida atual por contratos com juros mais baixos. O governo federal, porém, tem se mantido intransigente e há o risco de que a renegociação, se levada a cabo, seja conduzida novamente sob condições impraticáveis. A médio e longo prazos, o caminho é ampliação das receitas, seja pela recuperação da economia e pela revisão dos incentivos fiscais, seja pela negociação, cada vez mais urgente, de um novo pacto federativo.

IHU On-Line – Para justificar a extinção de nove fundações e a venda de três estatais como estratégia para combater a crise, o governador José Ivo Sartori apresentou uma economia na casa dos milhões. Como essa medida pode ser avaliada, se for levado em conta também o papel estratégico desses órgãos em áreas de pesquisa e assessoramento para o Estado?
Cecilia Hoff – O governo fez uma estimativa simples e equivocada de economia com a extinção das fundações. Tomou a diferença entre as receitas e as despesas de cada uma delas como o potencial de recursos que poderiam ser economizados, e não explicou como os serviços continuarão sendo prestados (mesmo que reduzidos aos que considera essenciais) e quanto isso vai custar, nem colocou esses valores entre as despesas futuras. O plano era demitir todos os funcionários concursados, com larga experiência em suas áreas, para depois buscar no mercado profissionais para exercer as mesmas atividades, mas sem concurso ou experiência. Desconsiderou o caráter cumulativo da pesquisa e o patrimônio científico que seria perdido. Atacou a pesquisa em suas diferentes áreas, da economia e estatística ao meio ambiente, da tecnologia à gestão metropolitana, simultaneamente. De todos os ângulos, esse projeto é um crime administrativo. É claro que as fundações precisam ser modernizadas (assim como toda a administração pública), mas a modernização se faz com gestão, não com o desmonte das instituições. ■

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