Edição 510 | 04 Setembro 2017

Imprensa é a maior responsável pela manutenção da ideia de superioridade do gaúcho

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Vitor Necchi

Pedro Osório avalia que os sucessivos governos, por estimularem o tradicionalismo, ajudam a insuflar a arrogância própria do estado

“A exaltação do gaúcho e suas façanhas insufla uma ideia de superioridade, procurando apagar as injustiças cometidas e a barbárie que nos caracterizou”, e “essa postura é estimulada pela imprensa, que é a maior responsável pela sua manutenção”, avalia o jornalista e professor Pedro Osório. No entanto, ela não age sozinha: “Teve e tem a contribuição decisiva do estado, sob cujas asas o tradicionalismo floresceu e se mantém prestigiado”.

Na construção da pretensa superioridade, parece que nada mais relevante existiu na formação identitária do gaúcho além da figura mítica do monarca das coxilhas. “Certamente a imprensa foi decisiva para que as demais contribuições fossem secundarizadas”, critica Osório em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. No seu entendimento, o jornalismo praticado no Rio Grande do Sul tem uma distinção regional: “Tendência para a infantilização e para a supremacia dos colunistas”. O principal grupo de comunicação do estado, destaca Osório, orgulha-se de contar com mais de cem colunistas. “A isso se soma o predomínio do noticiário esportivo – leia-se futebol – sobre todos os outros assuntos chamados nas capas.”

O jornalista reconhece as diversas crises que o Rio Grande do Sul atravessa, como a de segurança, mas considera que “a crise efetiva manifesta no estado é gerada pela mediocridade e incompetência”. Ao tratar do governo Sartori, dispara: “A sua totalidade, sem exceções, uniu mediocridade e incompetência. Algo nunca visto. É um terreno fértil para a arrogância, a presunção e o autoritarismo”.

Pedro Luiz da Silveira Osório é jornalista (UFSM), mestre em Comunicação e Informação e doutor em Ciência Política (UFRGS). Leciona na Unisinos. Presidiu a Fundação Piratini (2011-2014) e a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (2012-2014). Foi secretário de Comunicação de Porto Alegre (1993-1996). Trabalhou nos jornais O Interior, Gazeta Mercantil, Diário do Sul, na Companhia Jornalística Caldas Júnior e na revista IHU On-Line. Integrou a Comissão Nacional de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas – a Fenaj. É dirigente do Sindicato dos Jornalistas do RS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Entre as medidas que o governo de José Ivo Sartori elaborou para combater a crise financeira do estado, está a extinção de fundações, entre elas a Piratini (TVE e FM Cultura), que o senhor já presidiu. Qual sua análise dessa proposta, em particular no que tange às emissoras públicas?
Pedro Osório – É notória e reconhecida a inépcia do governador para governar. Sabidamente, ele não tinha um plano de governo, não sabia o que fazer com o estado. Isso ficou mais do que evidente nos debates eleitorais e é fato admitido pelos quadros históricos do PMDB. Quando ele passou para o segundo turno das eleições, um arremedo de plano foi montado às pressas, em um final de semana. Quem conhece os bastidores da disputa sabe disso. Sem propostas e ideias para governar, Sartori passa a administrar o estado – palavras dele – como quem administra o orçamento familiar, cortando despesas. Mas o corte, obviamente, atinge predominantemente os membros mais pobres da “família”, agravando a situação social e econômica e, também obviamente, não constitui uma política pública. Incapaz de propor alternativas, seu governo buscou reforço no ideário neoliberal e nas ideias políticas conservadoras que o justificam. Daí que a ideia de extinguir as fundações segue uma lógica exacerbada de implantar um estado mínimo, mas Sartori não consegue justificá-la. Simples, escandalosa e inacreditavelmente porque ele não conhece nem compreende a estrutura estatal, seus propósitos, sua complexidade e possibilidades. O professor Cláudio Accurso, decano dos economistas do estado e originário do antigo MDB, indagou pessoalmente ao governador quais as razões das extinções e – como declarou publicamente – não obteve resposta. Disso concluiu que “o Palácio Piratini está deserto”.

O desejo de extinguir a Fundação Piratini enquadra-se nessa lógica, com especificidades muito próprias. Justificou a extinção sob a ótica da economia, desconhecendo que os custos das fundações pouco afetam o orçamento estadual. Enfrentou e enfrenta um extraordinário desgaste no meio cultural, comunitário, acadêmico, na sociedade. Não se tomou conhecimento de uma só manifestação apoiando a extinção, salvo de alguns apoiadores do governo, todos da área política. E salvo – note-se – da mídia hegemônica. Em contrapartida, foram e são incontáveis as manifestações de apoio à TVE e à FM Cultura, veiculadas em todos os meios, plataformas e eventos. Por que o governo persiste? Porque as emissoras detêm um valor simbólico extraordinário e são reconhecidas pela comunidade rio-grandense como um patrimônio cultural, social e político. Como presidente da fundação, percorri os 40 municípios onde há retransmissoras da TVE e fui recebido calorosamente nas prefeituras municipais dirigidas por quaisquer partidos, nas associações culturais, comunitárias, universidades, sindicatos, grupos musicais. Busquei parcerias e, especialmente, levei informações sobre as políticas estadual e nacional para a produção audiovisual independente, estimulando a produção local e regional. Do mesmo modo agimos na capital e na Região Metropolitana.

Não vou discorrer aqui sobre as realizações da gestão que presidi, sobre as possibilidades das políticas audiovisuais então praticadas em âmbito regional e nacional. O que desejo destacar é que a TVE representa para as comunidades gaúchas, suas regiões e seus diversos grupos sociais, provavelmente a única possibilidade de elas contarem suas histórias, firmarem suas identidades, se reconhecerem e se posicionarem frente aos fatos do mundo, de receberem um tratamento noticioso compreensivo e respeitoso. A título de exemplo, lembro do prefeito de um município da região colonial que, referindo-se orgulhosamente ao extraordinário e histórico envolvimento da comunidade em um festival local, cuja organização e dedicação independia do partido que estivesse na prefeitura, queixava-se da postura das emissoras privadas de televisão: “Elas vêm aqui, cobram uma fortuna pela cobertura e nos reduzem todos a comedores de cuca e de linguiça!”. Esse sentimento de impotência frente aos interesses e propósitos da mídia, essa percepção de que a mídia privada raramente percebe e reflete a vida comunitária, seus méritos, nuances e efetivos interesses – isso espalha-se pelo estado e se manifesta em todas as suas regiões. Grupos musicais, teatrais, literários, religiosos, esportivos, políticos, educacionais, organizações da sociedade civil que atuam nas mais diversas áreas, anseiam por um espaço midiático para além dos limites locais, de modo que possam projetar suas inquietações e indagações, suas angústias e propostas, suas visões de mundo. Um espaço cujos critérios de atenção não estejam condicionados basicamente pelo lucro, ou pela abertura para determinados interesses privados, ou restritos a grupos de poder ligados àqueles. Que não permitam o cultivo da intolerância e da visão única do mundo.

Daí porque a mídia privada hegemônica aplaudiu – ainda que tenha aceito a divergência de alguns dos seus colunistas – a ideia de extinguir a Fundação Piratini. A TVE e a FM Cultura representam o oposto das suas práticas e, horror dos horrores, custeadas basicamente com dinheiro público. Elas podem limitar os seus poderes, sua área de influência, podem disseminar novas percepções, abordagens; podem levar às comunidades o debate sobre, por exemplo, as políticas públicas de comunicação e os critérios de concessões das outorgas de rádio e tv. Podem alertar sobre o monopólio midiático. Podem produzir um jornalismo que atenda ao contexto e à diversidade de opiniões, estabelecendo nexos que não são aparentes entre fatos e gerando conhecimento. Podem demonstrar que existe algo para além da indústria cultural. Podem valorizar a política e a participação. Por essas, entre muitas outras razões, a radiodifusão pública é combatida, e no Rio Grande o foi desde os seus primórdios, como atestam pesquisas sobre o tema. A mídia hegemônica nunca tivera coragem, no passado, de reivindicar o fechamento das emissoras, mas sempre trabalhou para mantê-las sufocadas. A Fundação Piratini cresceu na pobreza. Mesmo assim, o extraordinário prestígio que obteve e seus inúmeros prêmios demonstram que, malgrado suas enormes dificuldades e suas oscilações editoriais e administrativas, vinha cumprindo suas finalidades.

A rigor, em apenas duas ocasiões recebeu investimentos significativos: na gestão de José Roberto Garcez, sob o governo de Olívio Dutra (1999-2002), e na gestão que presidi, sob o governo de Tarso Genro (2011-2014). Ambos, como se sabe, governos do PT. Na gestão do Garcez, foram adquiridos equipamentos transmissores da última versão analógica, que deixariam as emissoras em condições superiores às emissoras privadas, no aspecto tecnológico. Parte deles não chegou a ser instalada pelos gestores que o sucederam, sob os governos de Germano Rigotto (2003-2006) e de Yeda Crusius (2007-2011). Tamanha foi a desatenção deles para com a fundação que o novo transmissor da TVE passou oito anos à espera da instalação, tendo sido finalmente instalado sob a minha gestão. Além do descaso, os dirigentes da gestão Rigotto destruíram a rede de rádios que a FM Cultura montara e expandia, com a instalação de antenas receptoras em várias emissoras do interior, que transmitiam alguns dos seus programas. É fato reconhecido e narrado por servidores da fundação, aos quais coube visitar as rádios e retirar as antenas, sob o protesto dos concessionários das referidas emissoras. Muitas dessas antenas ainda estavam abandonadas no pátio da fundação, quando assumi a presidência. Aquela rede de rádios, ainda timidamente, começava a concorrer com a rede Gaúcha SAT, liderada pela Rádio Gaúcha, do Grupo RBS.

Sob o comando dos gestores do governo de Yeda Crusius, foram destinados à fundação apenas R$ 500 mil. Sem manutenção e renovação dos equipamentos, em 2011 as emissoras estavam praticamente parando. Seja pelos equipamentos, todos já também ultrapassados devido ao advento da digitalização, seja pela falta de pessoal e de investimentos em todas as áreas. Havia apenas dois repórteres. Das 40 retransmissoras, apenas três funcionavam. Praticamente não havia carros, nem motoristas. Nem ar-condicionado. Nem internet. Para retirar a fundação daquele abandono deliberado, investimos R$ 14 milhões de reais, com a aquisição de equipamentos de captação, edição, transmissão e irradiação para as duas emissoras. No caso da TV, havia um prazo nacional para a sua digitalização, que cumprimos. Foi feito um concurso para o quadro de pessoal. Mudanças administrativas e editoriais foram implementadas. As instalações foram reformadas, incluindo estúdios. As retransmissoras foram recuperadas e mais 20 delas estavam em via de serem liberadas pelo Ministério das Comunicações, reivindicadas que foram.

A TVE, que com suas 40 retransmissoras já era a segunda maior rede de TV aberta do estado, preparava-se para avançar. Nova rede de rádios estava sendo implantada. Sua programação foi aperfeiçoada, com a inclusão de programas abordando questões como a negritude, o regionalismo, a crítica da mídia, o debate das políticas públicas. A cultura, via jornalismo cultural, recebeu uma abordagem antropológica, superando a mera prestação de serviços e resenhas. É compreensível que a mídia privada deseje livrar-se do convívio com emissoras com programações assemelhadas. Por isso considero trágica a possibilidade de extinção. Além do que já mencionei, deve-se também considerar o acervo extraordinário mantido pela TVE. Aliás, os arquivos mantidos pelas emissoras privadas são limitadíssimos, mesmo nas mais poderosas.

Percebendo isso, somado à importância que a sociedade atribui às duas emissoras, o discurso do governo mudou. Passou-se a afirmar que a extinção ocorrerá, mas as emissoras serão mantidas. Uma vez extinta a fundação, as outorgas dos canais, que a ela estão vinculadas, retornam automaticamente ao Ministério das Comunicações. Então será preciso fazer um movimento de transferência das outorgas para o governo do estado. Em tempos normais, isso exigiria uma engenharia jurídica, administrativa e política considerável. Hoje, nestes tempos, tudo é possível, podendo ocorrer um canetaço. Ainda que permaneçam operando, sem o quadro de pessoal (que será extinto com a fundação), a TVE e a FM Cultura tenderão a ser usadas como alto-falantes do governo. Provavelmente a rede de retransmissoras não será digitalizada e as outorgas serão extintas, por força de lei. O alcance da TVE ficará limitado à Região Metropolitana. A mídia hegemônica ficará muito feliz, os grupos conservadores que a apoiam, também. Estando felizes a mídia e os conservadores, Sartori ficará felicíssimo. Quanto ao povo, bem, esse terá aprendido que a radiodifusão pública é coisa de país atrasado.

IHU On-Line – Vige no estado uma ideia de superioridade, como se os gaúchos fossem melhor do que os outros brasileiros. A imprensa local insufla este fenômeno?
Pedro Osório – Sim, mas não só ela. Se considerarmos que até instituições universitárias costumam encerrar seus eventos cantando o Hino Rio-grandense... A ideia da superioridade gaúcha tem sabidamente origens complexas e reais, que vêm do Tratado de Tordesilhas , de um território posteriormente conquistado com fronteiras definidas e defendidas a ferro e fogo durante séculos. Vivemos episódios de heroísmo e resistência, por certo. Abrangem, por exemplo, a Revolução Farroupilha . Ela decorreu do desprestígio regional evidenciado pela decisão imperial de adquirir charque uruguaio, mais barato, para favorecer a oligarquia paulista na manutenção dos seus escravos. Essa revolução esconde, até hoje, o massacre de Porongos , quando o Corpo de Lanceiros Negros foi desarmado pelos chefes farroupilhas e massacrado pelas tropas imperiais. Foi uma condição imposta pelo Império para aceitar a paz e indenizar os líderes farrapos. Os negros, que lutavam pela promessa de liberdade, precisavam ser aniquilados, pois o Império temia que a libertação deles reforçasse o movimento abolicionista. As indenizações pagas pelo Império geraram desentendimentos e ódios entre os líderes farrapos e seus descendentes que, matizados por concepções políticas outras, explodiram na Revolução Federalista , a chamada Revolução da Degola. Nela ocorreram castrações, saques, degolas, estupros. Fatos que desconhecemos ou dos quais não queremos lembrar.

Creio que bastam essas evocações para compreender como a exaltação do gaúcho e suas façanhas insufla uma ideia de superioridade, procurando apagar as injustiças cometidas e a barbárie que nos caracterizou. Passamos a exaltar “nossas façanhas” heroicas e a disseminar a ideia de igualdade entre patrões e peões, consagrada pelo Movimento Tradicionalista. Daí para cantarmos nos estádios “Eu sou gaúcho com muito orgulho...” é um passo. E essa postura é estimulada pela imprensa, que é a maior responsável pela sua manutenção. Salvo raras exceções, ela não contribui para o debate sobre uma identidade alternativa, que não se apoie na figura do monarca das coxilhas e na exaltação de supostas qualidades dele decorrentes. Mas ela não age sozinha. Teve e tem a contribuição decisiva do Estado, sob cujas asas o tradicionalismo floresceu e se mantém prestigiado. Como se, além do idealizado “monarca”, nada mais relevante tenha existido na origem da nossa formação identitária. Certamente a imprensa foi decisiva para que as demais contribuições fossem secundarizadas, como é o caso dos colonos em suas múltiplas origens, ou aniquiladas, como no caso dos povos originais, dos negros, do gaúcho a pé, entre outros.

Além da postura acrítica da mídia, sua ação amplia-se nas características da indústria cultural. Assim, ambas naturalizam um cancioneiro regional que, salvo exceções, exaustiva e incansavelmente repete bordões que reificam os traços da suposta superioridade gaúcha. Daí que, com uma assombrosa arrogância, também reivindicamos “sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra”, como está no hino. Como se pode, em sã consciência, sustentar tamanha pretensão? Em muito boa medida pela ação da imprensa, ao impedir que nos reconheçamos como um povo no mundo, que reconheçamos o outro. Pois, afinal, a importância de ser gaúcho está acima de tudo. A começar pelo outro.

IHU On-Line – Se comparado com o restante do país, como pode ser avaliado o jornalismo praticado no Rio Grande do Sul?
Pedro Osório – Em linhas gerais, o jornalismo aqui praticado está aprisionado pelo ideário neoliberal e a serviço dele. Como, também em linhas gerais, ocorre no país. Igualmente, aqui também o contraditório inexiste. Entretanto, creio haver componentes regionais que o distinguem: uma tendência para a infantilização e para a supremacia dos colunistas. No caso do jornal Zero Hora, especificamente, por vezes encontramos páginas que mais parecem murais destinados a chamar a atenção de alunos do ensino fundamental inicial. Ainda que as transformações no jornalismo estejam apontando alterações no conceito de notícia e recomendando o uso de determinados apelos editoriais inéditos, há exageros que já vêm se tornando uma marca da publicação, como o uso de trocadilhos. É uma prática assumida. Quanto aos colunistas, a RBS – principal grupo sulino – orgulha-se de contar com mais de cem. Muitos são jornalistas da empresa, reforçando no jornalismo diário um “achismo” típico do senso comum e beira a irresponsabilidade, quando não a ultrapassa. Tais características não são exclusivas do jornalismo rio-grandense, mas considero que aqui elas beiram o paroxismo. A isso se soma o predomínio do noticiário esportivo – leia-se futebol – sobre todos os outros assuntos chamados nas capas. Estas observações – infantilização, predomínio da opinião e do futebol – se aplicam ao jornalismo de todos os veículos, praticamente.

IHU On-Line – Há alguns anos, circulava pela internet uma relação de manchetes sobre o fim do mundo. Um veículo focado em economia anunciaria que a destruição do planeta quebrou a bolsa de valores. Um jornal gaúcho informaria que o Rio Grande acabou. O que esta brincadeira sugere sobre os critérios de noticiabilidade adotados pela imprensa gaúcha no que se refere a fatos e personagens ligados ao estado?
Pedro Osório – Como se sabe, o humor pode conter algumas facetas do conhecimento. A manchete, para além de brincar com o gauchismo exacerbado, também indica convivência com uma imprensa focada nos limites da região, que reflete e produz um ambiente autocentrado. Por outro lado, os critérios de noticiabilidade que, especialmente em determinado período, orientaram fortemente a construção das notícias em torno de fontes ou referências gaúchas, expressaram uma visão de mercado. Foi uma reação à oferta do noticiário internacional ou de outras regiões, oferecido pelos grandes portais, gerando, em parte, a dispersão da audiência. Tais notícias tendiam a sobrepujar os fatos próximos aos leitores. O mercado voltou-se, então, a buscar fatos noticiosos nos quais a figura do gaúcho estivesse presente, nos quais ela pudesse ser incluída. Foi uma manobra mercadológica para manter a fidelidade do público e de ocupar um espaço editorial. Mas os marqueteiros perderam a medida dessa ação, que descambou para o ridículo e ainda reverbera.

IHU On-Line – A imprensa gaúcha é bairrista, provinciana?
Pedro Osório – Creio que sim. Aliás, o esforço de marketing referido na resposta anterior fortaleceu o bairrismo de tal modo que, cabe lembrar, gerou uma publicação de humor chamada “O bairrista”, que se divertia apresentando o gaúcho e o Rio Grande como o centro do mundo. Noticiava, por exemplo, que Obama ligara para Fortunati pedindo dicas para ser reeleito... A publicação tornou-se muito popular e crescia. Foi adquirida pela RBS e desapareceu nas suas entranhas corporativas. Esse perfil bairrista contribui, em boa medida, para reforçar o traço provinciano, a incapacidade de colocar-se no mundo e de levar seus leitores à reflexão sobre as mudanças e tendências globais. Essa limitação é vencida, em parte, em alguns cadernos culturais ou voltados para as reportagens. No caso das tevês, rádios e portais noticiosos, a mentalidade provinciana é soberana. Mas é justo dizer que a imprensa gaúcha não está só: a imprensa brasileira é provinciana, ressalvados dois ou três grandes jornais. Refiro-me à mídia hegemônica.

IHU On-Line – Alguns dos principais comentaristas e colunistas da imprensa gaúcha são ligados ao futebol. Nas últimas décadas, poucos nomes se destacaram em áreas como política e economia. Este cenário deve-se ao perfil do público ou tem mais a ver com a proposta editorial das empresas de comunicação?
Pedro Osório – Em 1991, o jornalista e historiador Tau Golin publicou um interessante artigo sobre este assunto na revista Porto&Vírgula, da qual eu era o jornalista responsável, editada pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Intitulado Hegemonia da “Escola do Futebol”, o texto chamava a atenção para o uso recorrente na imprensa de analogias futebolísticas aplicadas à política e à cultura, por exemplo. Sugeria que a comunicação rio-grandense estava prisioneira de um modelo cujas normas fundamentais eram dadas pelo “universo do futebol”, marcado pela passionalidade, por vezes por um ódio irracional ou pelo orgulho arrivista triunfal, pela ausência de uma cultura reflexiva, pela simploriedade, pela obsessão por resultados imediatos. Segundo o autor, apenas uma minoria de jornalistas e comunicadores esforçava-se para distinguir as particularidades componentes de uma totalidade e então apreendê-la. Escrevia ele que “a notícia fica refém de uma técnica que não permite a universalização a partir dos desdobramentos do fenômeno abordado ‘em si’, o fato corre sempre o risco de ser episódico, conclusivo e finalista (como o gol)”. De modo predominante, fosse o assunto “energia nuclear, direitos humanos, cirurgia plástica”, as mediações tendiam para exemplos buscados no “mundo do jogo” e especialmente para conduzir a entrevista sob a sua lógica – tal como o entrevistador a entendia. Essa “escola” tornou-se hegemônica, sustentada por “apresentadores, articulistas, comentaristas, editores, redatores, repórteres” – todos advindos da “escola do futebol”, cuja mentalidade predominava.

Penso que as considerações formuladas por Tau Golin continuam válidas, sendo que nas últimas décadas a hegemonia da “escola do futebol” ampliou-se. São muitos os exemplos de jornalistas e radialistas esportivos que conduzem programas ou entrevistas de outras áreas, da música à política. E suas intervenções, de modo geral, tornaram-se ainda mais superficiais e inadequadas. Refletem as características contemporâneas do cenário futebolístico, agora dominado totalmente pela lógica do mercado, sendo que o sucesso depende basicamente da realização de bons negócios. O predomínio dessa opção neoliberal vai reforçar as decisões das empresas de comunicação na modelagem das suas editorias e programas. Assim, caminhamos para a infantilização e o colunismo mencionados anteriormente, com forte reflexo na retração de materiais reflexivos em todas as áreas. Não há, por exemplo, um editor ou editora de política ou economia capaz de explicar as suas áreas de trabalho à luz da nossa história política ou econômica e daí inferir e interpretar efetivamente o que nelas ocorre ou poderá ocorrer. Diversamente do que deveria ser, não é possível compreender o que se passa nessas áreas e posicionar-se frente a elas se limitarmos as nossas fontes de informação ao noticiário dos principais meios de comunicação. Ele é raso, descontextualizado e tendencioso. Falta-lhes cultura – e ser culto é uma condição da profissão jornalística.

IHU On-Line – Durante décadas, a partir do final do século 19 até o final dos anos 1970, a Caldas Júnior dominava a comunicação do estado. Com a debacle da companhia, a RBS assumiu a liderança do mercado. A prevalência de uma empresa gera que efeito para o jornalismo?
Pedro Osório – É extraordinariamente danosa. Impõe um determinado modo de fazer jornalismo, com características, algumas delas, aqui mencionadas. Esse modelo espraia-se pelo estado e torna-se referência no jornalismo interiorano, potencializando seus danos e naturalizando práticas equivocadas ou discutíveis, ou inadequadas para determinadas regiões. Por outro lado, sua prevalência reduz, em proporções igualmente extraordinárias, o mercado de trabalho. São vários os jornais do interior que encerraram suas atividades com a abertura de jornais locais de propriedade da RBS. No âmbito do rádio, as vagas também vão sendo eliminadas com a vigência de uma rede dirigida pela Rádio Gaúcha, principal emissora do grupo. As rádios de mais de cem municípios transmitem os noticiários da emissora sediada em Porto Alegre. Desse modo, o jornalismo radiofônico local praticamente desaparece, sendo substituído por programas de comentaristas que em tudo lembram os programas da capital. Na soma de tudo, consolida-se o discurso único.

IHU On-Line – Para além da crise econômica, que outras crises o senhor identifica no estado?
Pedro Osório – Obviamente há uma crise na área de segurança. Inédita, assustadora. Os números revelam isso. Há também dificuldades em outras áreas, que contribuem para o seu agravamento. Mas considero que a crise efetiva manifesta no estado é gerada pela mediocridade e incompetência. Tivemos dirigentes, em alguns casos, mais ou menos medíocres, mais ou menos incompetentes. Independentemente da linha adotada pelos seus governos, eles sempre estiveram apoiados por quadros de razoável competência nesta ou naquela área e próximos de medíocres sem grande relevância. No caso do governo Sartori, a sua totalidade, sem exceções, uniu mediocridade e incompetência. Algo nunca visto. É um terreno fértil para a arrogância, a presunção e o autoritarismo.

IHU On-Line – De que maneira a imprensa se comporta em relação a esse contexto de crise?
Pedro Osório – O governo é apoiado pela mídia hegemônica, que se refere aos crescentes problemas do estado sem creditá-los aos dirigentes atuais, praticamente os desresponsabilizando. De modo geral, as dificuldades são apresentadas como preexistentes, o que muitas vezes é verdade, mas creditadas aos governos anteriores. Especialmente o último. Além disso, a imprensa ataca as estruturas estatais, pregando em favor do estado mínimo e da livre iniciativa. Em alguns casos, frequentemente patrocinados pela RBS, apresenta-se como portadora de soluções, sugerindo medidas favoráveis a interesses privados. A notícia da reestruturação do Instituto de Previdência do Estado - IPE, por exemplo, foi antecedida por longas matérias sobre a acessibilidade e benefícios da previdência privada, publicadas pelo jornal Zero Hora.

IHU On-Line – Como a imprensa gaúcha costuma se relacionar com os sucessivos governos estaduais? E com os diferentes partidos que elegeram governadores?
Pedro Osório – A relação imprensa-governo se dá em duas fases. Inicialmente, as empresas oferecem apoio em troca de anúncios. Isso está implícito – quase sempre. Como os governos efetivamente precisam dar publicidade às suas realizações, obras e iniciativas, precisam anunciá-las. É preciso tornar público aquilo que é do público. Não se trata, portanto, de comprar apoio, mas de imperiosamente anunciar. Naturalmente, a destinação de recursos públicos para anúncios e campanhas está submetida a determinados critérios técnicos, geográficos e outros. Esses critérios concentram as tensões que costumam caracterizar as relações governo-mídia. Quando eles desagradam as empresas de comunicação, o aspecto implícito da relação desaparece. As negociações deixam de ser feitas pelos executivos polidos e perfumados e passam a ser feitas por verdadeiros jagunços. Aí, as ameaças são explícitas: sem a veiculação de anúncios, o governo passará a ser atacado – pouco importando o que está fazendo ou deixando de fazer. O comportamento das empresas é o mesmo com todos os governos estaduais. O que muda é o grau de “compreensão” dos seus representantes, que muitas vezes é influenciado pela presença deste ou daquele partido no governo.

A segunda fase consiste no seguinte: as empresas, segundo as próprias, não vendem apoio. Por essa razão, independentemente de anúncios já comprados, elas não poderão deixar de destacar aspectos do governo que julgarem discutíveis ou negativos. Naturalmente, a avaliação do que é “discutível” ou “negativo” pode estar balizada pela opinião pública, mas geralmente está orientada por nova busca de recursos governamentais. Essa segunda fase tem outra face: a empresa estaria valorizando as realizações do governo, por isso espera receber mais anúncios. As formas de relacionamento dos governos com a mídia dependem da capacidade de interesse de cada um deles movimentar-se nesse cenário.

IHU On-Line – A verba publicitária do governo estadual impacta a cobertura jornalística?
Pedro Osório – Pelo que sei, ela chega a representar 30% do mercado publicitário, em determinados períodos. Isto é uma dedução baseada na minha experiência e informações. O impacto é evidente e se revela nas formas que acima descrevi.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Pedro Osório – Estou convencido de que a realidade da imprensa gaúcha (e nacional), tal como a descrevi, pode ser mudada. E deve. “Não haverá democracia no Brasil sem a democratização da comunicação”, escreveu Daniel Herz , falecido há 11 anos, fundador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação - FNDC. Ela pode ser alterada a partir da adoção de políticas públicas de comunicação, eliminando os monopólios, regulando as atividades das empresas, estabelecendo formas de participação da sociedade, fomentando as pequenas empresas, garantindo a diversidade, fortalecendo a comunicação pública – entre muitas outras diretrizes. De modo que a imprensa e a comunicação em geral sejam direcionadas ao desenvolvimento da cultura e da nação brasileira. ■

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