Edição 209 | 18 Dezembro 2006

C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor

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IHU Online

Todos os filmes comentados nesta editoria foram assistidos por algum colega do IHU.

Ficha Técnica:

Nome original: CRAZY
Cor filmagem: Colorida
Origem: Canadá
Ano produção: 2005
Gênero: Comédia - Drama
Duração: 127 min
Classificação: livre

Reproduzimos a crítica de Mario “Fanaticc” Abbade sobre o filme destacado nesta edição. O texto foi originalmente publicado no site Omelete (www.omelete.com.br) no dia 23-11-2006.

Depois das enormes bilheterias no Canadá, C.R.A.Z.Y. - Loucos de amor (C.R.A.Z.Y., 2005) continuou seu sucesso no mercado independente mundial. O filme ganhou vários prêmios em festivais e deu prestígio ao diretor Jean-Marc Vallée. Ele já está sendo visto como um possível candidato a fazer parte do seleto hall dos atuais cineastas canadenses mais relevantes, como David Cronenberg, Denys Arcand e Guy Maddin.
O filme se inicia em 25 de dezembro de 1960, quando Zachary Beaulieu (atores Emile Vallée como criança e Marc-André Grondin como o adolescente) vem ao mundo. É o quarto entre cinco irmãos, todos meninos, cujas iniciais formam a palavra "crazy" (louco). O filme acompanha os 20 primeiros anos da vida de Zachary. A infância é marcada pelos aniversários natalinos em que seu pai (Michel Côté), invariavelmente, encerra a festa imitando Charles Aznavour. Sua a adolescência traz descoberta de uma sexualidade diferente e sua negação profunda para não decepcionar a família. E a maturidade, enfim, chega com uma libertadora viagem mística por Jerusalém, a cidade que sua mãe (Danielle Proulx) sempre sonhou conhecer.

O projeto levou dez anos para ficar pronto. O roteiro foi escrito por Vallée e François Boulay, baseado nos diários de Boulay. O argumento também conta com passagens da vida pessoal do diretor. Especialmente as cenas da mãe devota e do pai apaixonado por música. Mesmo tendo sido escrito das experiências da dupla, o contexto será reconhecido por qualquer pessoa pertencente a uma família numerosa. E mesmo com essa premissa o filme não cai no melodrama. A história mistura de forma inteligente o sagrado e o profano, o pessoal e o universal. Interessante que o tema não se concentra na descoberta sexual, mas sim sobre o amor.

Os pais não são retratados como vilões, mas como duas almas compassivas e honestas que realmente querem o melhor para seus filhos. São bons pais, em outras palavras, personagens críveis. Mas o tratamento para com os personagens não foi igual para todos. Vallée negligencia dois dos irmãos, que nem parecem estar no filme, já que surgem e somem na mesma rapidez.
Mas isso não impediu de Vallée destilar toda a sua habilidade técnica para contar mais de 20 anos de história. Truques cinematográficos aumentam a carga dramática das cenas. Ele utiliza close-ups, ângulos diferenciados, slow-motion e charme nas imagens de pessoas fumando. A cenografia de Patrice Bricault-Vermette se encaixa perfeitamente à proposta visual. Tudo isso embalado por uma trilha sonora apaixonante com as músicas de Patsy Cline, David Bowie, Pink Floyd, Rolling Stones, Charles Aznavour e The Cure, entre outras feras.
O resultado retrata com dignidade as habituais dúvidas que surgem na adolescência.

Como se determina a orientação sexual? É uma "escolha" livre ou uma fatalidade?

Também reproduzimos o artigo do psicanalista Contardo Calligaris a respeito do filme publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo no dia 7-12-2006.

Está em cartaz "Crazy - Loucos de Amor", de Jean-Marc Vallée (canadense de língua francesa). É a história de Zac, um garoto que se torna adulto e homossexual entre uma mãe religiosa, um pai banalmente machista e quatro irmãos.

O filme é uma pérola: delicado, engraçado e comovedor. Além disso, ele é uma obra de utilidade pública. Ao longo dos anos, muitas vezes, encontrei e tentei aconselhar casais que lidavam, de maneiras diferentes, com a descoberta de que seu filho (ou um de seus filhos) era homossexual. As reações variavam, desde uma aprovação maníaca (que, em geral, escondia um desespero reprimido) até a decisão sádica de impor a normalidade a tapas ou à força de excursões obrigatórias ao bordel.

Pois bem, hoje, a todos esses pais de um jovem homossexual, sem exceção, recomendaria que, antes mesmo de começar a conversa, eles assistissem a "Crazy". Estenderia a recomendação aos eventuais irmãos do jovem, aos amigos, aos colegas de colégio e de trabalho.

Deixo aos espectadores o prazer de uma história que, para usar uma expressão na moda, melhora singularmente nossa "inteligência emocional". E aproveito para resumir um debate que o filme reavivou.
Falando com um amigo sobre a história de Zac, usei a expressão "escolha sexual" (diga-se de passagem que, no filme, Zac é perfeitamente "capaz" de desejar e talvez de amar uma mulher). O amigo desaprovou energicamente minha expressão. E lá fomos nós, discutindo, mais uma vez: a orientação sexual é fruto de uma especificidade genética ou é um efeito da história do sujeito? Além disso, é uma fatalidade ou uma "escolha"? Chegamos a algumas conclusões provisórias, que resumo a seguir.

1) Os dados científicos não são conclusivos. Por exemplo, os estudos sobre gêmeos univitelinos (que já comentei no passado, nesta coluna) deixam, sobretudo, perplexidade: seria esperado que uma maioria esmagadora de irmãos gêmeos, por compartilharem o mesmo patrimônio genético, tivesse uma orientação sexual idêntica, mas as pesquisas mostram que isso acontece em pouco mais de 50% dos casos -uma maioria pequena, que poderia ser explicada pela infância comum.

2) De qualquer forma, o termo "escolha sexual" é, no mínimo, impreciso: ele sugere uma liberdade que, de fato, nunca existe em matéria de amor e sexo. Em geral, a fantasia que sustenta o desejo de cada sujeito (homossexual ou não) é mais próxima de uma imposição do que de uma criação livre e variável: não é uma coisa que a gente "escolha".

3) A razão para defender a expressão "escolha sexual" ou, então, seu contrário (por exemplo, "determinação sexual") é sobretudo política. Muitos sujeitos cuja conduta amorosa e sexual é excluída, perseguida ou censurada preferem, hoje, que a forma de seu desejo seja considerada por todos como uma necessidade biológica. Com isso, eles se libertariam das tentativas (ridículas e opressivas) de "corrigir" o que, para eles e de fato, é um desejo não negociável (que pode ser reprimido, mas não "endireitado"). Em suma, eles esperam ganhar uma aceitação social definitiva, visto que não há como se opor "à natureza".
Por que não adotar esse argumento, considerando que, de qualquer forma, a expressão "escolha sexual" é incorreta?

Eis minha resposta: no mundo dos meus sonhos, as mais variadas orientações sexuais e amorosas seriam aceitas sem a justificativa de determinação biológica alguma, mesmo se elas fossem livres escolhas dos sujeitos.
Um exemplo vai ser útil. Uma filósofa libertária que admiro, Jeanne Hersch (que morreu em 2000), foi minha professora na época em que ela dirigia a divisão de filosofia da Unesco. Nessa função, ela teve que decidir se a Unesco financiaria ou não uma pesquisa para demonstrar que não existem diferenças de inteligência entre raças. Hersch votou contra o projeto, pela indignação de boa parte de nós, estudantes. Os filósofos apreciarão o sabor kantiano de seu argumento, que foi o seguinte: é verdade que a pesquisa poderia desmentir cientificamente muitos estereótipos raciais e racistas, mas autorizar a pesquisa significaria admitir, mesmo por um instante, que a igualdade de direito possa derivar da igualdade de fato. Isso era, para Hersch, inaceitável.

Seguindo sua lição, prefiro defender o princípio da liberdade de "escolha" amorosa e sexual, sem justificativa biológica. É muito "crazy"?

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