Edição 209 | 18 Dezembro 2006

Sobreviver e conviver

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IHU Online

Graduado em Letras Alemão-Português pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese Ethos, corpo e entorno. Sentido ético da conformação do espaço em Der Zauberberg e Grande sertão: veredas, o Prof. Dr. Paulo Soethe mencionou, com exclusividade à IHU On-Line, que um dos maiores desafios do cristianismo para o século XXI é sobreviver e conviver. Além disso, outro obstáculo a ser vencido é “tornar possível que onde haja fé ela venha à tona de maneira relevante e plena. O desafio está em adaptar as práticas e rever os papéis das comunidades e líderes. Pegas de surpresa, as estruturas eclesiásticas de poder viram-se subtraídas de sua relevância social e política e parecem-me ter entrado em um processo fatal de autocentramento”.


Soethe cursou pós-doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha. Docente na Universidade Federal do Paraná (UFPR), é autor de uma vasta produção acadêmica, entre artigos, traduções, capítulos de livros e resumos, entre outros. Entre suas atividades atuais, destacamos o Convênio com a Universidade de Leipzig (Programa Unibral - CAPES/DAAD), bem com o projeto Riobaldo encontra Vupes: influxos da cultura de língua alemã na obra de João Guimarães Rosa (CNPq 420078/01-0), junto ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP. O depoimento a seguir foi enviado por e-mail.

Deus se conhece de modo mais intenso na primeira infância

Tenho para mim que ser cristão não depende primeiramente de uma decisão pessoal. O acaso histórico, por exemplo, determina que já se nasça cristão. Sei que isso não soa piedoso, mas negar tal coisa é ignorar a causa mais freqüente e decisiva de se ser cristão hoje. E teologicamente, segundo a memória da comunidade de fé cristã, Deus pode intervir bruscamente no curso da vida de alguns, como aconteceu com Saulo, ou pode oferecer-se discreto no dia-a-dia, a partir da infância, como no caso de Jesus mesmo, ou das muitas crianças que nasceram no seio da comunidade dos primeiros cristãos. Talvez a tradição insista demais na dramaticidade das conversões, promova exageradamente a importância de um clero ou de um laicato militante e agressivo, obcecado por salvar as almas; e negligencie o que já está potencialmente dado na vida das pessoas. Penso aqui, afinal, sobre ser cristão como uma condição historicamente determinada, mas essencial, tanto quanto o fato de se pertencer a uma família, ter determinada nacionalidade ou falar certa língua materna.

Ter a experiência primeira do cristianismo no seio da família, pelas mãos e gesto dos pais, pelo convívio com o irmão, parentes, vizinhos, colegas da escola, primeiras professoras é algo que alimenta para o resto da vida. Tenho profunda convicção de que conhecemos Deus de modo mais intenso, na primeira infância, nos momentos mais ou menos freqüentes de revelação do mundo que nos cerca, quando Ele, pura e simplesmente está lá, nas pequenas coisas, nos carinhos, nas formas, nos sons, na natureza que se descobre como criação, nas refeições em comum, na dor que se suporta porque outros a tem maior. Nessa fase, apreendemos o mundo de maneira essencialmente estética: Deus (nominalmente presente ou não) é então o nexo tácito de uma obra-prima e plural, é a totalidade das coisas, e ao mesmo tempo um interlocutor descomplicado e amoroso, com uma vontade clara em relação ao que é bom e correto. Tudo isso antecede qualquer doutrina, pode ser a experiência de qualquer um, em qualquer cultura e circunstância. E, se nessa vivência do mundo e dos outros, está também a pessoa de Jesus, como amigo e modelo, como protagonista das histórias mais importantes, então o cristianismo está dado, e aí se pode cumprir, com certo fleuma, o aprendizado da doutrina e dos ritos, às vezes, sobreviver a eles, com paciência. (Por isso, a não ser de maneira acidental, por meio da presença e convívio espontâneo, não tenho o mínimo pendor “missionário” no sentido de promover conversões, ou imiscuir-me no acaso histórico de outros que nascem sob circunstâncias de fé diferentes.)

“Educação estética do homem”

Isso tudo soa romântico, e é assim mesmo que vejo. O fundamento de ser cristão hoje é a vivência pessoal da totalidade e da criaturalidade como experiência estética e pré-consciente, sobretudo na primeira infância. Sobre esse alicerce é que acredito ser possível dar-se a inserção prática na sociedade complexa, sob um espírito cristão. Entendo, inclusive, que a grande lacuna na execução do projeto ocidental de modernidade se deve à negligência da “educação estética do homem”. O que nos falta para resistir de maneira efetiva aos abusos a que hoje nos submetemos é a memória e a partilha de nossas primeiras experiências individuais de totalidade vividas na primeira infância. Falta-nos estender de maneira efetiva ao nosso contexto social e econômico o que potencialmente já fomos nos primeiros momentos de nossa descoberta individual do mundo.
Por isso, no meu caso pessoal (que penso ser o de muitos), eu simplesmente responderia que sou cristão porque fui assim como menino. E minha lida positiva com a ciência, com a técnica, com a secularização ou com a pós-modernidade (esse embate nem sempre responsável com a idéia de dissolução de quaisquer parâmetros absolutos) está marcada pela fidelidade ao menino que fui. Não tenho grandes dúvidas em relação ao que seja bom e correto nas circunstâncias de atuação concreta diante dos outros. Lembro-me da infância. E também por lembrar-me dela tenho uma grande certeza: posso estar sempre enganado, porque o nexo da obra de que sou personagem não me pertence. Esse nexo é por si mesmo e existe para além de mim.

Por que acreditar em Jesus, no Deus uno e trino, na ressurreição e na segunda vinda de Cristo?

Essa pergunta é bem mais difícil. É pessoal demais, e ao mesmo tempo suscita muito facilmente o conflito com a doutrina. Sobre aquilo de que não se pode falar, é melhor calar. Ainda assim, por que acreditar em Jesus penso já ter respondido antes: ele é o protagonista das histórias mais importantes que se repetem sempre que olho o mundo. Ele vive nos outros e em nosso liame com os outros, segundo a definição que deu de si mesmo. Sua ressurreição, acolhida máxima pelo Deus Pai, é o fato da superação da morte como fim último e como parâmetro último em nossa existência. Crer na ressurreição é ter como inquestionável o valor da vida humana individual, sob qualquer circunstância. O evangelista João diz escrever os relatos para que creiamos neles, e diz que seu testemunho é conforme a verdade. Isso basta, e por isso não imagino que possa contribuir com o debate trinitário, a não ser lembrando a bela imagem de que mesmo Deus não é um só, mas existe no diálogo e na convivência de três pessoas. Quem seríamos nós, então, para proferir dogmas sobre Ele? Essa espiral nos confere sobrevida como cristãos: cremos porque não sabemos, e ao não saber sobre Deus proclamamos da forma mais efetiva nosso fascínio e amor por Ele e sua presença entre nós. Sobre a segunda vinda de Cristo: mesmo os primeiros cristãos pareciam confusos ao interpretar literalmente essa expectativa. E hoje quanto da religiosidade mais fundamentalista, no meio cristão, se apóia sobre fantasias escapistas e uma escatologia apoteótica. Prefiro ficar com a última fala de Jesus no evangelho de João: “Se eu quero que ele fique até que eu venha, que te importa?”

Convivência com o mundo

Penso haver, sim, uma maneira propriamente cristã de conviver com o mundo, firmada para muitos desde a infância, ou então adquirida pelo convívio e partilha das experiências em uma comunidade que resgata e enriquece vivências humanas fundamentais à luz da experiência de uma comunidade de fé cristã. A maneira cristã de conviver com o mundo não é uma ajuda para o convívio ou uma contribuição para compreender a realidade. Ela é, para o indivíduo, uma forma radical e plena de atuar, conviver ou compreender.

Fé e razão

O cristianismo como atitude fundamental emoldura a atitude e a consciência dos cristãos. A ciência é um fato da sociedade, e a razão, uma dimensão incontornável da presença humana no mundo. Os ensinamentos de Jesus têm pouco a dizer sobre a ciência moderna em sentido estrito, e é insensato supor que eles possam controlá-la. Mas eles podem ser relevantes, sim, para as atitudes e decisões de quem conduz a prática e as políticas científicas nos dias de hoje. Trata-se de um grande desafio para as igrejas cristãs estabelecer diálogo com os meios científicos. Isso depende de um nível altíssimo de especialização prática e teórica. E mais ainda, da intermediação de contatos e diálogo entre cientistas e pesquisadores de alto nível que se entendem como cristãos.

Reinventar Paulo de Tarso

Não posso contribuir de maneira adequada com essa questão. Tenho claro, no entanto, que a teologia paulina e sua prática de disseminação do cristianismo foram decisivas para a imagem que temos hoje da presença do cristianismo e da Igreja na história, inclusive negativamente, como modelo que se vê superado pela realidade, em um mundo ocidental pós-cristão e em um panorama global claramente multirreligioso. Talvez precisemos reinventar Paulo de Tarso, como ele, de certo modo, reinventou Jesus para a Antigüidade greco-romana.

Desafios do cristianismo

Sobreviver e conviver. Tornar possível que onde haja fé ela venha à tona de maneira relevante e plena. O desafio está em adaptar as práticas e rever os papéis das comunidades e líderes. Pegas de surpresa, as estruturas eclesiásticas de poder viram-se subtraídas de sua relevância social e política e parecem-me ter entrado em um processo fatal de autocentramento. O motor roda em ponto morto. E, enquanto isso, cada vez menos crianças têm tempo para descobrir o mundo de forma cristã, e menos tempo ainda para lembrar-se, como adultos, do convívio que possam ter tido com o interlocutor descomplicado e amoroso, que pouca gente ainda tem coragem de chamar pelo nome.
 

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