Edição 507 | 19 Junho 2017

Criminalidade nas periferias segue lógica de empreendimentos liberais

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João Vitor Santos

Antônio Carlos Rafael Barbosa acredita que o crime se incrustra nas periferias não somente por uma ideia de vazio de estado. É também um negócio

Para o antropólogo e professor da Universidade Federal Fluminense - UFF Antônio Carlos Rafael Barbosa, é preciso encarar o crime como um empreendimento. Segundo ele, a institucionalização do que podemos chamar de empreendimento criminal segue as mesmas lógicas dos grandes negócios de inspiração neoliberal. “O crime se assemelha à maior parte dos empreendimentos neoliberais. Precisa que haja Estado, mas um certo tipo de funcionamento estatal que permita o desenvolvimento de suas atividades”, aponta. Por isso, considera falsa a ideia de que o ilícito só se produz nas periferias por ausência do Estado. “E também é falsa a percepção de que existe ‘adesão a toda estrutura do tráfico’ por parte dos moradores. O que está em jogo aqui, me parece, é o tema da falta, principalmente a falta de oportunidades educativas e laborativas oferecidas aos jovens moradores das comunidades pobres”, analisa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Barbosa reconhece que muitas pessoas são levadas para esse mundo do crime por imensa falta de oportunidades. Entretanto, sugere uma análise mais complexificadora. “A pergunta que se coloca é: por que, historicamente, e de forma sistemática, as políticas estatais voltadas para a população pobre brasileira têm se resumido majoritariamente à chave da repressão e do controle social? Ou ainda, em que medida a discursividade que elege o tráfico de drogas como o principal problema e o traficante como o ‘inimigo público número um’ não funciona como justificação ao estado de coisas atual e é forte incentivo à manutenção de tais políticas de exclusão social?”, tensiona.

Antônio Carlos Rafael Barbosa é professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense - UFF. Também é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, possui experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Política, Antropologia Simétrica e Teoria Antropológica É autor do livro Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: editora UFF, 1998).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consiste o tráfico de drogas, enquanto organização, no contexto das periferias de cidades brasileiras?
Antônio Carlos Rafael Barbosa – O comércio varejista de drogas nas comunidades pobres das grandes cidades brasileiras segue uma conformação particular para cada região considerada. Entretanto, grosso modo, podemos distribuir seus modos de organização e dinâmicas de funcionamento entre dois grandes modelos: um modo de composição mais fluida, composto por pequenos grupos que ocupam um determinado território, ali distribuindo seus pontos de venda, e um modelo com uma hierarquia de comando e estruturação dos cargos e funções – bélicas e comerciais – mais pronunciadas. Os exemplos são, respectivamente, as “biqueiras” em São Paulo e as “bocas de fumo” no Rio de Janeiro.

No caso de São Paulo, com a consolidação da hegemonia do Primeiro Comando da Capital - PCC , na maior parte das “quebradas” da cidade, o recurso à violência armada para a resolução de conflitos entre esses grupos locais entrou em estado de latência. No Rio de Janeiro, a oposição entre as facções do crime – Comando Vermelho - CV , Amigos dos Amigos , Terceiro Comando  – e a luta pelo domínio de territórios continua a gerar combates armados em várias regiões da cidade. Mas é necessário um exame de cada caso – Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza etc. – para a compreensão das dinâmicas locais particulares. Um trabalho que alguns pesquisadores ora se encarregam de efetuar.

IHU On-Line – Como podemos compreender a estrutura fluídica e movimentada do tráfico de drogas para além das polarizações consumidor/traficante, asfalto/favela, pobres/ricos, policial/bandido, entre outras?
Antônio Carlos Rafael Barbosa – De fato, tais oposições binárias muito pouco servem para a análise das complexas relações presentes nos mercados varejistas de drogas. Tomo como exemplo a distribuição entre tráfico e consumo. A figura do consumidor que vai buscar a droga na favela para financiar o seu consumo – aqui no Rio de Janeiro conhecido como “avião” – borra as fronteiras entre uma e outra atividade. E lembremos que foi esta população, em certo momento, que se tornou o alvo privilegiado da captura policial.

IHU On-Line – No início dos anos 2000, falava-se que o tráfico de drogas em cidades como o Rio de Janeiro era sustentado pelos “moradores do asfalto”, a “classe média” de usuários. Imaginava-se que cessar o alastramento do tráfico consistia em interromper o clico iniciado pelo usuário. Essa perspectiva está superada ou ainda dá conta de compreender a realidade? Por quê?
Antônio Carlos Rafael Barbosa – É um truísmo. Se não há quem compre, o mercado desaparece. Mas aqui devemos considerar duas coisas. Em primeiro lugar, deveríamos nos perguntar se é somente a chamada “classe média” (e seria necessário saber o que esse termo nomeia) que compra drogas. Em segundo lugar, tal juízo – muito presente como categoria acusatória nos discursos policiais e midiáticos – desloca o foco do que é realmente importante nessa discussão: os efeitos do proibicionismo – sob o modelo de “guerra às drogas” – na produção da criminalização das condutas e no alargamento dos preconceitos morais relativos ao assunto.
 
IHU On-Line – De que forma o comércio de drogas em larga escala vai se encrustar nas comunidades mais pobres das cidades do Grande Rio, entre as décadas de 1960 e 1980?
Antônio Carlos Rafael Barbosa – Foi certamente com a entrada da cocaína nos anos de 1980 que os mercados varejistas da droga no Rio de Janeiro começaram a adquirir sua conformação atual. Os trabalhos da professora Alba Zaluar , entre outras pesquisas desenvolvidas, apontam claramente nesta direção.

IHU On-Line – Quando e como o sistema carcerário passa a ser um ingrediente nessa organização do tráfico? Como compreender a dinâmica da cadeia e suas conexões com a rua, essencialmente as comunidades mais carentes e periféricas?
Antônio Carlos Rafael Barbosa – Para o caso do Rio de Janeiro, devemos considerar os modos de funcionamento das facções e a estruturação dos grupos locais. As facções surgem dentro das cadeias. São coletivos de presos que, em um primeiro momento, se organizam para lutar por direitos específicos dos presos: tais como fim das torturas e espancamentos; direito à visita íntima; melhorias nas precárias e, por vezes, desumanas condições de vida nos cárceres. Só num segundo momento, esse modo de “resistir na adversidade” é levado para as ruas. Sinteticamente, podemos dizer que as facções são espaços de aliança horizontal entre aqueles que correm sob a “mesma bandeira” no crime; ou, ao menos, assim são pensadas ou projetadas. Não deve existir hierarquia, cadeias de comando e obediência entre seus membros.

Como disse anteriormente, isso é bem distinto do que ocorre nos grupos locais que implementam o comércio de drogas nas localidades pobres da cidade. Neste caso, há uma hierarquia bem marcada em cujo ápice se encontra o “dono do morro”. A questão toda é saber até que ponto as hierarquias dos grupos locais pressionam ou modificam a busca da “igualdade” nas relações dentro das facções.

IHU On-Line – A partir de sua experiência com relatos de atores envolvidos em crimes na cidade de Niterói, como compreender a adesão das comunidades mais pobres a toda a estrutura do tráfico de drogas? Aliás, em que medida podemos considerar uma adesão?
Antônio Carlos Rafael Barbosa – Há uma falsa ideia a de que o crime se produz na ausência de Estado ou de algum de seus organismos. O crime se assemelha à maior parte dos empreendimentos neoliberais. Precisa que haja Estado, mas um certo tipo de funcionamento estatal que permita o desenvolvimento de suas atividades. E também é falsa a percepção de que existe “adesão a toda estrutura do tráfico” por parte dos moradores. O que está em jogo aqui, me parece, é o tema da falta, principalmente a falta de oportunidades educativas e laborativas oferecidas aos jovens moradores das comunidades pobres.

Tal ausência faria com que uma pequena parte dentre eles entrasse para o “movimento” em busca de ganhos financeiros e reconhecimento social (dentro das comunidades). De fato, não há como discordar disso. Mas a pergunta que se coloca é: por que, historicamente, e de forma sistemática, as políticas estatais voltadas para a população pobre brasileira têm se resumido majoritariamente à chave da repressão e do controle social? Ou ainda, em que medida a discursividade que elege o tráfico de drogas como o principal problema e o traficante como o “inimigo público número um” não funciona como justificação ao estado de coisas atual e é forte incentivo a manutenção de tais políticas de exclusão social?

IHU On-Line - Quais os desafios para se compreender a complexidade dos grupos organizados em torno de atividades ilícitas no Brasil de hoje?
Antônio Carlos Rafael Barbosa – Necessitamos de mais pesquisas sobre o assunto, distribuídas pelos vários estados da Federação, e um exercício comparativo efetuado sobre e a partir deste material. Isso para dar conta dos chamados “ilegalismos populares”, entre eles o assalto e o tráfico de drogas. Entretanto, para os chamados ilegalismos reservados às classes dominantes – que hoje tomam conta do noticiário nacional –, não temos praticamente pesquisas sobre o assunto.  (Diga-se de passagem, a expressão “crime organizado” pode se mostrar adequada, em termos analíticos e descritivos, para dar conta desses tipos de ilegalismos). É uma frente de pesquisa que mereceria ser explorada futuramente por jovens pesquisadores.■

Leia mais publicações do IHU acerca do tema periferias


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