Edição 209 | 18 Dezembro 2006

“O mundo secularizado carece, desesperadamente, dos sinais da fé”

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IHU Online

Martin Dreher, professor do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, concedeu uma entrevista por e-mail à IHU On-Line, na qual ele esboça suas razões para ainda ser cristão.

 Dreher é graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) e doutor na mesma área pela Universität München, Alemanha, com a tese Kirche und Deutschtum in der Entwicklung der Evangelischen Kirche Lutherische Bekenntnisses in Brasilien. De sua extensa produção bibliográfica, destacamos Igreja e Germanidade. Estudo crítico da história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2003, A Igreja no Império Romano. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004 e A Igreja Latino-Americana no Contexto Mundial. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005. Confira uma entrevista concedida pelo professor Dreher na edição número 174 da IHU On-Line, de 3 de abril de 2006, sobre Mozart.

Por que ainda ser cristão hoje?

Porque o “hoje” necessita mais do que nunca do Cristo! Para entender minha tese, lembro que “Cristo”, “cristão” “cristianismo” são palavras de radical grego correspondente ao hebraico “messias”, donde derivam nossas palavras “messiânico” e “messianismo”. Desse modo, sou messiânico e careço, em meu mundo, de messianismo. Como pessoa que vive em tempo de pós-modernidade perdi a “fé” no progresso da técnica e da ciência. Digo isso, não querendo desconhecer o quanto fui beneficiado pela técnica e pela ciência. Entendo, contudo, que técnica e ciência não são fins em si mesmas, mas têm que estar a serviço de toda a humanidade, caso contrário perdem seu sentido e passam a ser perversas. Não faço essa observação de um princípio teórico abstrato, mas de fato histórico concreto que, hoje, experimento na fé. Tal fato histórico ou “na história” tem para mim um nome, Jesus de Nazaré, a quem confesso como o Messias, o Cristo. Seu nome é um programa: Je-sus=Deus vai salvar. Não o confundo com “cristianismo” que se manifesta, historicamente, em uma infinidade de instituições que, ao longo de dois mil anos, lutaram por hegemonia umas sobre as outras, em nada semelhantes com o homem de Nazaré.

As razões

Sou cristão porque fui conquistado por uma criança com membros frágeis que foi deitada em um cocho, pois não havia espaço para ela em sua sociedade. Não nasceu nem no palácio de Augusto, nem no palácio de Herodes, mas entre os animais. Teve pai e mãe, mas teve que nascer na margem da margem, em terra ocupada por estrangeiros, em aldeia insignificante, reverenciada por gente da margem: pastores e pastoras fedorentos e astrólogos nada ortodoxos. Sou cristão porque fui conquistado pelos membros frágeis do crucificado do Gólgota que me ensinou a ter esperança e a depositá-la no Reino de Deus, utopia que buscou concretizar em sua existência, lembrando as aves do céu, as raposas em seus covis, os lírios do campo, a semente que cresce enquanto dormimos, partilhando cinco pães e dois peixes e conseguindo saciar quem tinha fome, que soube devolver à mãe o único filho, amparo na velhice, que soube devolver dignidade a excluídos. Com base nesses sinais, manifesto minha esperança no Reino de Deus e procuro comunicá-los, mesmo que de maneira imperfeita e provisória. Estou convicto de que eles são mais importantes do que ciência e técnica e que um mundo secularizado carece, desesperadamente, deles.

Convencido por Jesus

Acredito em Jesus porque fui convencido por ele. Já vai longe o tempo em que se procurava por argumentos filosóficos para entender a Jesus. Penso, por exemplo, nos esforços de Anselmo de Cantuária  (Cur deus homo? Por que Deus se tornou ser humano?). Não existem argumentos racionais para se crer em Jesus, em Deus ou no Espírito Santo. Crer é um presente. Não é nada lógico ou racional ver-se confrontado com uma criança na manjedoura ou com um corpo com estrias azuladas e esverdeadas de tanto apanhar e pendurado na cruz, cair de joelhos e exclamar: Meu Senhor e meu Deus! Isso é presente. E foi assim que Deus se mostrou (teologicamente: revelou-se). Deus tem a cara do crucificado e da criança na manjedoura, é disforme, humano. É o avesso daquilo que nós imaginamos a seu respeito. Só podemos saber a respeito de Deus aquilo que ele nos mostra de si: a criança, o adulto rejeitado, o crucificado. Aí ele se nos torna acessível.

Deus “trino”

Aí se descobre que Deus só pode ser “trino”. Nessa expressão nada há dos malabarismos que teólogos tiveram que fazer para comprovar que Deus, a fé cristã, continua monoteísta. A palavra “trino” ou “trindade” quer dizer de um Deus que é, essencialmente, comunicação. E como haveria de o inimaginável se comunicar, caso não o fizesse assim como o fez: na criança, no crucificado? Fato é que não podemos falar de Deus de outra maneira do que no paradoxo da cruz. O termo é “paradoxo” mesmo: O Natal e a Sexta-feira-Santa vão contra (pará) a razão (dóxa) humana. E esse paradoxo não é eliminado quando cristãos confessam na manhã da Páscoa: “Ele ressuscitou, ele verdadeiramente ressuscitou!” Também a Páscoa é um paradoxo, mas é um paradoxo que dá sentido ao Natal e à Sexta-Feira-Santa: marginalidade e rejeição, morte e ausência de dignidade não têm a última palavra. A última palavra é: Vida! Confesso que isso me deixa confessar a Deus e a seu Cristo. Isso me deixa confessar também o Espírito Santo que mostra em Pentecoste que é possível que se fale e entenda a mesma língua, a mesma linguagem, a linguagem do amor incondicional de Deus. A confissão da “segunda vinda” é tão-somente conseqüência de tudo isso; é a concretização do anseio expresso na prece: “Venha o teu Reino, seja feita a tua vontade”.

Os valores de Deus evidenciados em Jesus

Não gosto da expressão “valores do cristianismo”. Cruzadas, Inquisição, perseguição a hereges já foram valores. Prefiro falar dos valores de Deus como nos foram evidenciados em Jesus. Esses valores nos ajudam a conviver melhor. Devolvem dignidade, ensinam partilha, fraternidade e sororidade, respeito aos pássaros e às raposas, pois também eles gemem esperando redenção, como bem o entendeu São Paulo. Se partilha e sororidade são valores, o mais importante não será a destruição das matas e dos rios por alguns que, liberalmente, julgam que livre concorrência (entre desiguais!) permite a privatização do que é de todos para a vida, levando à morte. Essa utopia de Jesus é minha utopia e me deixa entender por que falou tão claramente, em relação a sua e a nossa sociedade, valendo-se do conceito “pecado” e desde o início de sua pregação começou a exigir “metánoia”, meia volta, arrependimento e reinício com base nos valores do Reino. Pecado é não deixar Deus ser Deus, assim como ele se nos revelou na criação, em Jesus e no Espírito Santo e, conseqüentemente, privilegiar tudo o que leva à morte.

A morte na sociedade

Nossa sociedade está prenhe de sinais de morte. Pecado é realidade tão presente e tão poderosa que se vale do Natal para, mais uma vez, relegar a Deus à periferia. No centro do Natal está o símbolo de um refrigerante que, pretensamente, dá presentes a todos, menos o mais importante. No centro do Natal está um aparelho fruto de maravilhosa técnica, que promete maior comunicação entre pessoas, mas não tira seres humanos da marginalidade e da solidão. Só seremos pessoas mais humanas, se aprendermos a olhar para onde Deus olhou, para as profundezas. Se o encontrarmos ali, ali também encontraremos a todos os que ele vê e poderemos encetar caminhada rumo ao Reino. Venha o teu Reino.

Na noite do Natal, gostaria de me ajoelhar aos pés da manjedoura e cantar com Bernardo de Claraval , com Paul Gerhardt e Johann Sebastian Bach : “Ich steh na deiner Krippe hier, o Jesu du mein Leben!” “Aos pés da manjedoura estou, Jesus ó vida minha...!”

 

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