Edição 209 | 18 Dezembro 2006

A fé é a experiência íntima do ser amado por Deus

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IHU Online

Didier Long, 40 anos, foi monge beneditino durante dez anos. Artista plástico, é hoje chefe de uma empresa, após ter sido consultor em McKinsey. Seu site pessoal é www.didierlong.fr Ele aceitou conceder uma entrevista por e-mail para a IHU On-Line, na qual fala da experiência de viver como monge e passar a ser marido e pai de família. Ele é autor de diversos livros, dentre os quais citamos o mais recente Pourquoi nous sommes chrétiens, sobre o qual ele também fala em suas respostas. Confira a visão que esse cristão tem ao argumentar sobre sua fé.

As razões para ainda ser cristão na sociedade da tecnologia e da ciência

As ciências e as tecnologias não são contrárias à fé. Elas nasceram da razão humana. Esta razão, este “verbo” designa a capacidade de abstração que possui o estranho animal chamado homem. Esta faculdade de simbolização ligada à linguagem permite fabricar um avião em três meses, enquanto a história da evolução levou milhões de anos para que os pássaros voassem. As ciências e as tecnologias podem ajudar a combater a doença, a morte, o sofrimento. Elas são “boas” no sentido em que o Gênesis diz: “E Deus viu que isto era bom”.

O processo de “modernidade” é este lento trabalho da razão ocidental, que permitiu ao homem controlar a natureza pela ciência e pela tecnologia. Quem gostaria de voltar atrás? Ao tempo da vela e da carroça? O “velho bom tempo” é, sem dúvida, uma ilusão. O problema, como destacam pensadores como Adorno, é que a razão operacional que organiza toda nossa existência, colocando cada coisa em seu devido lugar, parece em seguida ter controlado o próprio homem no século XX. Corremos o risco de nos tornarmos marionetes de sistemas oriundos da razão operacional: a globalização, as trocas financeiras mundiais, as crises econômicas, os desajustes climáticos, o esgotamento dos recursos fósseis do planeta, que ninguém mais parece controlar.

Entretanto, ninguém se satisfaz em ser uma função. Não somos coisas. A questão mais exata é, então, como encontrar a esperança neste mundo desencantado de seus deuses no qual o homem tem cada vez menos lugar? O que é o homem na verdade? E é aí que a fé pode nos ajudar. A fé não diz como ir ao céu. Para isso, existem boas companhias aéreas... E, que eu saiba, as igrejas não querem ser concorrentes! Mas, por que ir ao céu? A fé questiona o sentido de tudo isso. “Os céus proclamam a glória de Deus” como diz um salmo, mas é uma afirmação poética. Parece-me, então, que pode existir uma visão humanista, uma paixão por este mundo, pelas ciências e as tecnologias, que é acompanhada de uma reflexão sobre seu poder de liberação do homem. Como ser verdadeiramente humano?

A fé em Jesus, no Deus Uno e Trino, na ressurreição e na segunda vinda do Cristo.

Não há argumento para crer. A fé não é da ordem da razão e da inteligência, nem uma receita. É a experiência íntima do ser amado por Deus. Essa experiência de ser seu filho e sua filha que cada um de nós pode fazer simplesmente “se recolhendo em seu secreto”, como diz o evangelho: “Teu pai te vê no teu secreto...”, encontrando-se no fundo de seu coração. A fé é como o amor, ela é sensível, experimental. Quanto mais se acredita, mais se compreende e quanto menos se acredita, menos se compreende. Assim sendo, podemos, em seguida, refletir sobre tudo isso para tentar compreender. O que pensar de um lugar onde faz noite a metade do tempo e onde toda vida se estagna, apodrece e morre? Pode-se de fato ter esta terra como único horizonte? A realidade é que somos projetados desde o nosso nascimento nesta terra hostil, onde a morte é mais provável que a sobrevivência. Seja lá o que fizermos, a vida humana é um combate perdido por antecipação, cada dia que passa nos aproxima da morte. O homem é talvez este deus que ele acredita, mas a humanidade não pode ser nada além de uma fina camada de mofo na superfície de uma laranja azul! O horizonte no qual vivemos é o caos, e a fé nos ajuda a não nos desesperarmos. Tudo isto tem uma razão de ser, tem um sentido.

Esta meditação “atéia” da realidade pode nos ajudar a nos seguramos às únicas coisas que finalmente ficam: a amizade, o amor, e tudo o que já nos permite experimentar um pouco da eternidade. Tudo o que não damos está perdido. É a verdadeira lógica da vida. Esta lógica de doação que é o coração da vida, seu motor, nos mantém no ser a cada instante e este motor não morre. A fé é então uma boa aposta! A Trindade é uma maneira um pouco complicada de contar esta troca gratuita de amor e doação, este desinteresse total ao coração de Deus.

Os valores do cristianismo e as lições de Jesus

Parece-me que é uma verdade que temos dificuldades de aceitar: a perfeição que proclama o cristianismo é que a vida cristã é somente uma vida humana, uma humanidade realizada em plenitude. É o que os primeiros gregos que se tornaram cristãos tiveram mais dificuldades em admitir. Que Jesus seja Deus causava menos problemas no mundo antigo, no qual os ancestrais eram divinizados e adorados. Entretanto, que Deus tenha se tornado homem era um escândalo insuportável. Esta humanidade de Deus era tão difícil de ser aceita que as assembléias de administradores diocesanos, os concílios, vão levar quatro séculos para defini-la contra Marcio, Valentin e outros docentes que diziam que Deus não havia verdadeiramente sofrido neste mundo, que ele era mais Deus do que homem... “A glória de Deus é o homem vivo” dirá Irenée de Lyon, acrescentando também “a vida do homem é de ver Deus”. A camaradagem com Cristo não nos instala então em um céu desumano que correria o sério risco de ser somente a projeção de nossos sonhos ilusórios, tudo o que não somos ou sonhamos ser: poderosos, belos, ricos... Deus nos acolhe em nossa miséria e não no que acreditamos ser nossa grandeza, é uma bofetada para nossas maneiras habituais de pensar, e isso nos liberta de nossos velhos ídolos cansados.

Para sermos mais humanos

Este cuidado de Deus com nossa fraqueza que é manifestado por sua morte na cruz, seu perdão, sua presença misteriosa no próximo que vem a nós em sua fragilidade e sua miséria, deveria fazer de nós, seres infinitamente humanos. De um cuidado do qual somos incapazes por nossas próprias forças e que todos os seres vivos compreendem, acreditando ou não. Fomos acolhidos neste mundo, braços nos carregaram, fomos alimentados, caminhamos em estradas que não construímos. A vida carrega todos os vivos e somos seus hóspedes de passagem... Acreditando ou não, todos os seres vivos compreendem intuitivamente o que é o amor.

Quais são os maiores desafios do cristianismo para o século XXI?

O grande desafio para o cristianismo no século XXI é o encontro de outras culturas e religiões. É claro que as religiões não esperaram a globalização para proclamar a “Boa Nova”, por meio do mundo inteiro, ou seja, a universalidade não data do século das luzes, mas o que é novo é que o próprio mundo “encolheu”. As trocas que se faziam em torno do globo pelos oceanos em vários meses, se seguiram em avião em algumas horas e pela internet em uma fração de segundos. Estamos então todos infinitamente próximos e as civilizações e culturas muito antigas são desestabilizadas por este fenômeno. Quem se lembra de sua cidade, de suas fontes sagradas, da badalada noturna, dos lugares mágicos onde uma vovó cantava desafinada no barulho infernal das megalópoles trepidantes? O grande desafio do cristianismo é o de não deixar populações inteiras desorientadas, perdendo suas antigas referências éticas nos diversos fundamentalismos. O grande desafio é de chegar a traduzir nossa fé, nossa crença, no cuidado de Deus humano em suas palavras, desta globalização como se fez em todas as gerações antes de nós. O crescimento geográfico da Índia e da China, o encontro com o Islã, são os grandes desafios mundiais que o Cristianismo vai encontrar.

A passagem do monastério para a vida familiar e o mundo virtual

A passagem do monastério em McKinsey para a tecnologia Internet é um pouco a passagem de um monastério aos jesuítas do capitalismo, aos nerds da Silicon Valley! Para resumir: após uma juventude agitada, me tornei cristão aos 16 anos. Uma vez que Deus era Deus, decidi dar-lhe minha vida, o que era o mínimo. E me tornei monge beneditino na Abadia de “La Pierre-Qui-Vire”, na Borgonha, um monastério perdido na floresta. Encontrei pessoas formidáveis, verdadeiros filhos de Deus. Esta comunidade austera (cair da noite, silêncio, a vida monástica, nada de carne e vinho...) me estruturou espiritualmente e humanamente durante dez anos. Como eu era responsável pela editora do monastério, fizemos um Cd-rom sobre a arte romana. Uma jornalista do jornal televisivo veio fazer uma reportagem e me apaixonei por ela. Então deixei a vida monástica. Como as tecnologias online chegavam a Europa, decidi continuar meu caminho e tornei-me consultor em McKinsey e após montei meu próprio escritório de consultoria. Em alguns anos, passei então da Idade Média ao terceiro milênio. Tentei ir até o final das coisas. Deus nunca me abandonou.

O livro Pourquoi nous sommes chrétiens

Em Pourquoi nous sommes chrétiens tento descrever por meio de meu percurso o que encontrei saindo de minha vida monástica: a acédia, a falta de empatia e de carinho na qual vivemos, o consumo como único horizonte, o capitalismo que se esvazia de seu ideal, a democracia e o debate político largados ao pensamento único, o mundo do trabalho que se preenche de palavras vazias, o cinismo ambiente que destrói as raízes de nosso desejo e nos faz ansiar pela felicidade. Todos esses elementos que cavam pouco a pouco a “era do nada”.

“Nada” é a palavra da acédia. Esta doença da alma que experimentavam os monges que partiam para viver nos desertos do Egito no século. A acédia, a doença da alma que torna o corpo pesado como uma pedra e faz crer ao meio-dia que o dia vai durar ainda cinqüenta horas: o demônio do meio-dia. Se quisermos compreender porque nosso desejo e nossa civilização, que chegaram a seu apogeu, estão em pane, devemos reler as tradições espirituais e filosóficas que fundaram o Ocidente.

Quem somos nós? Em que acreditamos?

Quem somos nós? Os herdeiros de uma civilização muito particular herdada da fé na palavra judia, o dever que realiza o que é dito: “Que a luz se faça!” e da clareza do logos grego. Os lares da palavra sintetizados na razão cristã medieval produziram crenças que carregamos – crendo ou não. Elas nos integram em uma civilização muito original. Em que acreditamos? Ao mesmo tempo na palavra dada, no respeito absoluto do outro e de sua vida, na igualdade de todos os homens sejam quais forem suas convicções, na igualdade do homem e da mulher, no sentido do trabalho, na fraternidade de todos os seres humanos, no sentido da história.
A acédia em que vivemos não é então um fim. Esta crise é uma chance de ultrapassar uma etapa, de reinventar nossos valores vitais. Nossa civilização conheceu nas etapas-chaves de seu desenvolvimento, dos renascimentos, buscando em suas próprias fontes: Renascimento da Idade Média, Reforma e nascimento do capitalismo... Esta reinvenção de nossas raízes é coletiva, mas sobretudo individual. Ela é uma arte de viver o cotidiano. A “moral” é primeiramente uma arte da felicidade.
 

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