Edição 500 | 13 Março 2017

No choque dos mundos, a construção de um saber comum

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Ricardo Machado

Aldeia indígena em Viamão, no RS, e estudantes de engenharia civil trocam experiências e criam edificação com elementos tecnológicos e da natureza

Quando um grupo de aproximadamente 20 estudantes de engenharia civil, mais a professora da escola que fica dentro da Aldeia Tekoá Pindo Mirim, na cidade de Viamão, no RS, discutiam fervorosamente sobre os novos passos para a construção do centro cultural e biblioteca na comunidade indígena, o jovem cacique Arnildo Verá, de 33 anos, aproximou-se e sentou junto ao grupo. Calado, ouviu atentamente o debate dos brancos, enquanto eles remexiam suas folhas e revisavam e-mails em seus celulares sobre as combinações anteriores. Era muito papel, muita fala, muito projeto. Quando a professora Alessandra Santos, responsável pela escola local, perguntou ao cacique Arnildo o que ele achava daquilo tudo, ele apenas respondeu: “Essa fala nem entra na minha cabeça”.

Arnildo não estava desinteressado pelo tema, ao contrário, era ele quem mais queria que a biblioteca fosse construída e com ela a possibilidade de erguer casas para as famílias da aldeia de 85 habitantes. Ele queria saber, na prática, como o projeto sairia do papel, quanto iria custar e de onde viria o dinheiro, afinal, a metafísica financeira dos brancos não é matéria que todo mundo alcança. O debate entre a professora e os alunos que integram o grupo do Engenheiros sem Fronteiras no RS voltou e de novo Arnildo calou-se. A discussão era em torno de uma ecoconstrução, que usa um composto de cimento, água e areia do próprio solo da aldeia, que depois de misturado vai para uma forma feita de madeira e é encaixado entre os moirões para formar as paredes. Depois de seco, surge uma parede rígida e consistente como concreto.

O tédio do cacique, no meio de toda aquela falação, em uma manhã quente de fevereiro, encontrava no outro lado o olhar entusiasmado de Alessandra e dos demais alunos que estavam visitando a aldeia, muitos deles pela primeira vez. Para os brancos o mundo da burocracia é razoável, e por isso acertavam os detalhes dos próximos passos a serem seguidos, enquanto as crianças da comunidade vinham chegando, todas elas saudosas de Alessandra, que as recebia com um beijo no rosto e uma expressão em guarani de boas-vindas. Arnildo só mudou o rosto entediado quando todos se levantaram para conhecer a aldeia. O cacique sorriu e animado passou a apresentar os diferentes pontos da área de 25 hectares destinada aos integrantes da etnia Mbya-Guarani. O mundo do pé na terra, do ouvido no chão para ouvir a semente germinar, como um dia falou Marx (quem diria, não?), é o mundo dos índios. Isso é o que entusiasma os anfitriões.

Centro cultural
Quando saíram da frente da escola, onde ocorreu a reunião, Arnildo foi direto para onde será construído o centro cultural e biblioteca. O local para a construção já havia sido preparado pelos indígenas, mas o tempo dos brancos é diferente do tempo dos índios. O que havia sido “limpo”, foi tomado de assalto pela natureza e o mato voltou a crescer, mas a área estava separada. Segundo explica o professor de engenharia da Unisinos Maurício Mancio, o centro cultural será uma edificação de 115 metros quadrados, com 12 paredes, formando um dodecágono, com telhado de capim santa-fé. O projeto arquitetônico levou em conta a sabedoria indígena, cabendo aos engenheiros a parte estrutural. “Isso tudo será feito com a comunidade, com transferência de tecnologia. O grande objetivo é, futuramente, usar as mesmas técnicas nas habitações das famílias”, explica o professor. A sabedoria tradicional guarani ensina a construir casas com argilas e taquaras, mas o solo do local onde a tribo foi assentada é arenoso, o que impede esse tipo de construção. “A ideia é sempre fazer uma relação colaborativa para que a comunidade possa utilizar as técnicas conforme o próprio interesse”, complementa.

Apesar do trabalho do grupo de estudantes da Unisinos ser gratuito e de parte dos materiais para a obra estarem disponíveis na região da aldeia, há custos para o projeto, o que preocupava, por razões diferentes, Alessandra e Arnildo. A professora, que já havia conseguido recursos para a publicação do livro Curumim contou... kyringue Omombe'u, em 2016, novamente foi atrás da empresa patrocinadora. Orçado em aproximadamente R$ 15 mil, para a compra do capim santa-fé, moirões e cimento, entre outros materiais, o projeto finalmente conseguiu um apoiador, a empresa Dufrio, para financiar a obra e torná-la real. “Unir uma necessidade da escola em ter um espaço amplo e cultural com conceitos tradicionais do povo Guarani, é proporcionar um espaço de convivência e de muito aprendizado natural e significativo”, anima-se Alessandra. “É a busca da sustentabilidade, através dos conceitos da permacultura, possibilitando a construção das casas com a areia compactada, trazendo moradias mais resistentes ao clima da região sem a utilização de plantas nativas que são escassas na área, devido à monocultura do eucalipto”, ressalta a professora.

Questões indígenas
A construção do centro cultural e biblioteca pode ser o pontapé inicial para uma melhoria de vida significativa das 85 pessoas que vivem na aldeia. A tribo foi para a região de Itapuã em 2000, depois de ser removida de uma área às margens da rodovia ERS-040, em Viamão, no RS. Dentre os inúmeros desafios, eles tiveram que reflorestar totalmente a área, que só tinha eucaliptos. Quem conta é Arnildo Verá, o cacique e neto de Toribio Gomes, de 98 anos, que muitas décadas atrás vivia com sua tribo onde atualmente fica o Parque Estadual de Itapuã. “Quando construíram o Parque, expulsaram meu avô e minha avó e todos os indígenas que viviam na região”, relata o cacique.

A questão indígena em todo o país é delicadíssima, desde o o imbróglio jurídico da Raposa Serra do Sol, em que seis arrozeiros pretendem desmanchar a demarcação das terras, aos povos do Xingu, com Belo Monte e as investidas da Belo Sun para se instalar no local, passando por todo o drama dos povos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul com o genocídio dos Guarani Kaiowá, até chegar ao extremo sul do Brasil e à marginalização das comunidades indígenas. Os Mbya Guarani que vivem na aldeia Tekoá Pindo Mirim, juntamente com outros grupos geograficamente próximos, esperam pela demarcação das terras indígenas na região, cujo território passará de 25 para 893 hectares. “Com essa área nosso modo de vida melhora muito, porque aí poderemos plantar diferentes coisas em diferentes épocas e poderemos mudar de uma região para outra”, projeta Arnildo. Não obstante todos os problemas já enfrentados pelos indígenas, a região, na década de 1970, teve a mata nativa retirada para a plantação de eucalipto que abastecia as caldeiras de um leprosário localizado não muito distante da comunidade.

Ao fim da visita Arnildo está mais animado, nota-se em suas expressões ao mostrar a aldeia. Os brancos falam menos, ouvem mais. Observam a comunidade, os trabalhos artesanais dos indígenas, conhecem as diferentes hortas e vão até um local de onde se pode ver a Lagoa dos Patos e a Lagoa Negra, que foi declarada área de preservação ambiental e somente indígenas podem se banhar nela. As crianças da aldeia brincam para lá e para cá, entram e saem da escola várias vezes. Ainda não é período de aula, mas sentem-se em casa. Um pequenino macaco, que foi encontrado pelas crianças da comunidade abandonado e ainda filhote, vem para perto de todos nos braços de um dos meninos. O sol no topo do céu avisa que já é meio dia. Os alunos e integrantes do Engenheiros sem Fronteiras se preparam para retornar à civilização urbana. Nos despedimos todos com apertos de mãos e acenos. Arnildo Verá, em silêncio e com o olhar esperançoso, torce para que o projeto dê frutos e que a comunidade possa, com as próprias mãos, como sempre fizeram os indígenas, construir uma vivência melhor e com a alegria digna de quem ergueu a sua moradia com a terra da própria terra.■

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