Edição 208 | 11 Dezembro 2006

Necessidade de crer. Um ponto de vista laico. Trecho do novo livro de Julia Kristeva

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IHU Online

O artigo foi publicado no sítio do IHU nas Notícias Diárias do dia 9-12-2006

Sai nestes dias, em italiano, o livro Bisogno di credere. Un punto di vista laico, da filósofa Julia Kristeva.

O jornal italiano La Repubblica, 8-12-2006, publica um trecho do novo livro que traduzimos.

“Depois de ter constatado que o humanismo racionalista tinha falido, desembocando no totalitarismo do século XX, e depois de ter anunciado que teria falido novamente desembocando na automação econômica e biológica que ameaça a espécie humana no século XXI, dois prestigiosos interlocutores, Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas concordam ao declarar que as democracias modernas estão desorientadas por não terem uma autoridade “superior” confiável, a única capaz de normatizar a corrida desenfreada da liberdade. A convergência entre o filósofo e o teólogo deixa entender que o retorno à fé se impõe como a única via de saída capaz de garantir uma estabilidade moral, diante dos riscos da liberdade. Em outros termos, já que as democracias constitucionais necessitam de “pressupostos normativos” para fundar o “direito natural” e o Estado secularizado não dispõe da “ligaçãoção que unifica”(Böckenförde ), seria indispensável constituir uma “consciência conservadora” que se nutrisse da fé (Habermas), ou que fosse uma “correlação entre a razão e a fé” (Ratzinger).

Em contraponto a tais hipóteses, proponho pensar que nos encontramos já de fronte, particularmente nas democracias avançadas, a experiências pré-políticas ou transpolíticas que tornam caduco qualquer apelo à “consciência normativa” e ao binômio razão-revelação: experiências que se encaminham para uma refundação do humanismo nascido do Iluminismo, sem recorrer ao irracional. É precisamente neste ponto nevrálgico da modernidade que se colocam a experiência literária – com o pensamento teórico de que é inseparável – e a descoberta freudiano do inconsciente. Não ignoro, não ignoremos que a contribuição que tais experiências têm dado para tornar mais transpolítica, a tal ponto de fundar aquela “ligação unificante” que falta à racionalidade política secularizada. Esta é, contudo, a hipótese – alternativa à posição compartilhada por Böckenförde, Habermas e Ratzinger – que defendo nos meus trabalhos.

Diferentemente daquilo que nos querem fazer crer, o conflito de religiões é somente um fenômeno de superfície. O problema do início do terceiro milênio não é a guerra de religiões, mas a falha e o vazio que divide, hoje, aqueles que querem saber que Deus é inconsciente e aqueles que preferem não sabê-lo, para poderem gozar melhor do espetáculo que anuncia que Ele existe.
O universo midiático globalizado sustenta com todo o seu aparato de idéias e financeiro a segunda opção: não querer saber nada para melhor gozar do virtual. Em outros termos: gozar no ver prometida – e contentar-se de ter a promessa – a fruição dos bens garantidos pela Promessa de um Bem superior. A situação, por causa da globalização da negação que lhe é consubstancial, não tem precedentes na história da humanidade. A nossa civilização catódica, satura de seduções e de desilusões, revelou-se propícia para a fé. É o que favorece o retorno ou o reviver das religiões. Nietzsche  e Heidegger  já nos advertiram disso: o homem moderno, pela “ausência de um mundo sensível e supra-sensível, é dotado de poder coercitivo”. O aniquilamento da autoridade divina e, com ela, de toda e qualquer autoridade, estatal ou política, não conduz obrigatoriamente ao nihilismo nem ao seu contrário simétrico. O integralismo que assalta os infiéis, fazendo do divino um valor e até o “valor supremo”, os transcendalistas se aproximam do utilitarismo nihilista. Como estar consciente disso, hoje, sem, no entanto, enfiar-se num humanitarismo estreitamente racionalista ou numa espiritualidade romântica?

Eu sustento que a alternativa à crescente religiosidade, como ao seu contrário – que é o nihilismo obtuso – está já presente naqueles lugares do pensamento que nós buscamos não ocupar mas fazer viver. Nós quem?

Nós, que pertencemos ao vasto continente das ciências humanas, com o nosso envolvimento nas línguas e na literatura. A literatura e a escritura são uma experiência da língua transversal à identidade (de gênero, nacionais, étnicas, religiosas, ideológicas etc.). Entretanto, cúmplices e hostis que sejam à psicanálise, à literatura e à escritura, elaboram um conhecimento cheio de riscos, singular e compartido no desejo de sentido ancorado no corpo sexuado. Assim fazendo, a literatura e a escritura colocam na pauta o binômio metafísico razão versus fé, em torno do qual, no passado, se constituiu a escolástica. Convidam-nos a construir um discurso interpretativo, crítico e teórico, conseqüente com as propostas das ciências humanas e sociais, que é um elemento decisivo no construir a refundação do humanismo de que necessitamos.
Quem se expõe à experiência literária e, de modo diferente, mas cúmplice, quem se expõe à experiência psicoanalítica, ou simplesmente está atento ao que está em jogo – como nós, neste caso -, sabe que a contraposição entre razão e fé ou entre norma e liberdade não é mais sustentável se o ser falante que eu sou não se pensa mais como dependente de um mundo supra-sensível, e ainda menos por um mundo sensível “dotado de um poder coercitivo”. Sabe também que este eu que fala se desvela a si mesmo enquanto é construída uma ligação vulnerável com um objeto estranho, um outro ek-estático: a coisa sexual (outros dirão: o objeto da pulsão sexual cuja “onda portadora” é a pulsão de morte). A ligação vulnerável com a coisa sexual e nessa – sobre a qual se funda a  ligação social ou sagrada -, não é outra coisa que a ligação heterogênea, a fronteira entre a biologia e o sentido do qual dependem as nossas línguas e os nossos discursos, que se encontram modificados e que, recursivamente, modificam a ligação sexual.

No apreender a aventura humana, a literatura e a arte não constituem outra coisa que um ornamento estético, assim como a filosofia ou a psicanálise não pretendem levar à salvação. Contudo, cada uma destas experiências, com as suas diversidades, se propõe como o laboratório de novas formas de humanismo. Compreender e acompanhar o sujeito falante na sua ligação com a coisa sexual nos dá a oportunidade de enfrentar as novas barbáries da automatização sem recorrer às proteções propostas pelo conservadorismo que infantiliza, libertos daquele idealismo míope no qual se enfia o racionalismo banalizante e mortífero.

Se, no entanto, a aventura que pode ser delineada pondo-nos na escuta da literatura e das ciências humanas do século XX deixa pressagiar uma refundação do humanismo, a sua realização e as suas conseqüências não podem ser, para parafrasear Sartre, mais do que “cruéis e de longo respiro”.

Faço parte de uma geração que refutou o humanismo mole, aquela vaga idéia do “homem” esvaziada de substância, ligada a uma fraternidade utopística que se referia ao Iluminismo ao contrato pós-revolucionário. Hoje, parece-me não somente importante, mas possível retomar de outro modo aqueles ideais, porque estou persuadida que aquela que é chamada de “modernidade” e que, muitas vezes, foi denegrida, foi um momento crucial na história do pensamento. Não hostil às religiões e, muito menos complacente nos seus confrontos, o pensamento no qual me reconheço é talvez a nossa única oportunidade no confronto com o aumento do obscurantismo e como seu reverso que é a gestão técnica da espécie humana."

 

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