Edição 208 | 11 Dezembro 2006

O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?”.

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

“O indivíduo sente-se mais autônomo no comando do seu universo religioso pessoal na medida em que as ofertas institucionais que o assediam são mais variadas.” O Brasil como um país de pluralismo religioso é o tema tratado por Pierre Sanchis, pesquisador do Instituto Superior dos Estudos da Religião na entrevista a seguir.


Pierre Sanchis possui graduação em Teologia pela Universite de Strasbourg, mestrado em Ethnologie Antrhropologie et Science des Religions pela Université de Paris VII e doutorado em Sociologie pela École des Hautes Ètudes en Sciences Sociales. Pierre ainda é professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desde 1999 e autor de As etapas pré-cristãs da descoberta de Deus. Uma chave para a análise do cristianismo latino – americano (Petrópolis: Vozes, 1968).
A entrevista foi publicada nas Notícias Diárias do dia 1-12-2006. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Uma questão que tem saltado aos olhos é a da dinâmica que tem perpassado o campo das religiões no Brasil nas últimas décadas. O senhor poderia falar para nós dos movimentos mais visíveis dessa dinâmica?

Pierre Sanchis
- A sua pergunta, como que sem querer, aponta para o que me parece o problema essencial que atravessa o campo religioso brasileiro contemporâneo. Você fala, sem mais, do campo ”das religiões”. Mas pode assim querer tratar de “religião” no singular, uma dimensão da vida social, muito presente em toda a história da sociedade brasileira, ou das “instituições religiosas”, no plural, que cristalizam, na concretude do social, esta dimensão.  Durkheim  já distinguia a experiência do “Sagrado”, e a “religião”, que organiza socialmente esta experiência. A atual versão desta distinção seria entre “religião” e “religiões institucionais”. Aconteceu-me perguntar, num título de artigo: “O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?”. Talvez aí esteja o movimento mais visível da dinâmica religiosa contemporânea. Paradoxalmente, junto com uma tendência de enfraquecimento e privatização da religião, alarga-se, e torna-se mais público, o âmbito do que se poderia chamar certa experiência religiosa, mas esta experiência vai se tornando independente das instituições que, até agora, costumavam enquadrá-la.  Isso não quer dizer que estas instituições tendam a desaparecer. Sem dúvida, pelo menos algumas delas se enfraquecem; mas outras – ou as mesmas em outros momentos – podem eventualmente se afirmar e fortalecer. O que muda, de modo geral, é a relação do fiel com a sua instituição de referência. Nesta relação, é o pólo do indivíduo, da subjetividade até, da experiência pessoal, que passa a assumir a primazia.

IHU On-Line - O debate sobre pluralismo religioso tem mobilizado os pesquisadores. O senhor poderia fazer alguns comentários sobre essa questão?

Pierre Sanchis
- Uma questão em parte correlativa à minha resposta anterior. O indivíduo sente-se mais autônomo no comando do seu universo religioso pessoal na medida em que as ofertas institucionais que o assediam são mais variadas. Com facilidade até ele poderá compor-se uma identidade plural ou, se de referência única, mais relativa e modulada conforme as iniciativas de suas intuições, de seus desejos, de seus sentimentos, emoções e experiências. Isso, por um lado, e em certos espaços sociais. Por outro lado, a dimensão do absoluto continua sendo um marcador no campo da religião, e o encontro generalizado de religiões que conhece o mundo contemporâneo significa o encontro de absolutos diversos. Quer dizer, com freqüência, o confronto de vários absolutos. O conflito.  Sabemos o risco que isto significa em termos de concórdia familiar e cívica, em termos de paz mundial. Se houver no mundo de amanhã (e já há) um problema abrangente e multifacetado, será o do gerenciamento das diferenças identitárias, de vários tipos e especialmente religiosas e étnico-religiosas, no sentido da convivência e da paz.    

IHU On-Line - O senhor produziu uma série de pesquisas sobre religião no Brasil.  Fale um pouco sobre esses trabalhos.

Pierre Sanchis
- O que me chamou primeiro a atenção, depois de certa familiaridade com a religião brasileira “geral”, foi o não-monolitismo desta religião. Aquele problema que, em tempos idos, se costumava chamar de “catolicismo popular” (e não tenho tanta certeza assim que tenha sido um “falso problema”) impunha a constatação da existência, no interior do catolicismo, de vários sistemas religiosos. Todos eles, no entanto, “católicos” e todos eles “brasileiros”. Acho que foi dali que decorreram as minhas ênfases, teóricas e empíricas: manifestações religiosas populares, catolicismo, o catolicismo e o grupo social brasileiro, sincretismo. Com alguns pontos de cristalização, sempre prontos a aparecer, como a relação do grupo “negro” com o catolicismo. Uma aparente dispersão de interesse, na realidade a permanência de um veio de interpretação. Com a certeza de que se tratará sempre de um problema e nunca de uma solução.

IHU On-Line - O seu interesse acadêmico incidiu bastante na reflexão sobre o  catolicismo. Em clássico trabalho sobre o tema, você afirmou que o  catolicismo no Brasil é marcado pela pluralidade e por uma identidade pontuada por específicos mecanismos de fagocitose. Você poderia explicar isso um pouco melhor?

Pierre Sanchis -
Sem querer, imagino que acabo de responder, pelo menos em parte. Acrescentarei que aquela primeira impressão empírica da pluralidade dos catolicismos acompanhou-se logo de uma reflexão teórica, que me impunha conjugar esta multiplicidade com um esquema de princípio unitário. Pensei encontrar, na procura de uma “estrutura”, o jeito de combinar – sempre heuristicamente, mas com um proveito real de compreensão  - o princípio unitário de um  “catolicismo” permanentemente  reconhecível com a multiplicidade de suas realizações históricas. Estas, resultado das sucessivas e concomitantes inserções deste princípio em situações sociais, econômicas, políticas, civilizacionais, enfim religiosas, as mais diversas. Para dizê-lo numa palavra, a dimensão de “catolicismo”, no interior mesmo do cristianismo, parece-me a constante tentativa – a um só tempo promissora  e frustrada –  de expressar uma Fé (absoluto da entrega individual à salvação pela Pessoa de Cristo) através de e pelo corpo social de uma religião.  Uma Fé feita Religião. Uma Igreja sacramental, e não simplesmente funcional. O que implica, a montante um especial Mito de origem desta igreja, e, a jusante, um universo mediador complexo, sacramental, santoral, cósmico, que deverá (criticamente) se alimentar, no decorrer da história, das realidades humanas que se apresentarem a ele. Inclusive das religiões. Neste sentido, o problema do “sincretismo” (mesmo se existirem boas razões para não lhe dar este nome), é conatural à dimensão “católica”. Uma dimensão que vai além da única instituição religiosa que lhe tem o nome.   

IHU On-Line - Como o senhor tem percebido as relações entre mudanças religiosas e mudanças culturais em nosso país?

Pierre Sanchis
- Em nosso país? As incursões que a gente pode fazer nas literaturas analíticas sobre a religião no mundo contemporâneo, parecem apresentar uma problemática global muito semelhante. “Modernidade” tende a ser uma, “globalização” a ser uniforme. E, no entanto... A modernidade não se implanta nas várias sociedades senão em cima de características que a história lhes deu, e a partir dessas. O resultado acaba sendo diversificado. No Brasil, então, os traços da universal secularização, individualização, racionalização crítica articulada ao cultivo da experiência e da emoção, vão se apresentar como marcados por alguns outros, que me parecem particularmente presentes na história cultural da sociedade brasileira. Citarei – e seria preciso matizar – uma presença superlativa da religião, a vivência socializada em meio a um universo de entidades ultra-empíricas, com quem se estabelecem relações quotidianas, enfim certa porosidade das identidades que favorece um clima que poderia chamar-se, a condição de bem definir o termo, de “sincrético”.  É pelo menos com uma chave deste tipo que tento analisar a relação de “cultura” e “religião” na atual sociedade brasileira.
 
IHU On-Line - Você podia traçar para nós sua trajetória pessoal até a antropologia  da religião?

Pierre Sanchis
- Desde a minha primeira chegada ao Brasil tinha sido impressionado pelo tipo de relação entre uma cultura, que me parecia de grande riqueza e originalidade e a expressão religiosa que, sem tentar lhe corresponder, era sobretudo reafirmativa de dimensões universais. A experiência da “Missa do Morro”, em Salvador, mais tarde um trabalho no Centro de Formação Intercultural de Petrópolis , inspirado nas idéias de Ivan Illich  e que tentava “aculturar” ao Brasil os voluntários, em grande parte missionários, que lhe chegavam do mundo inteiro, parecerem-me confirmar a urgência do estudo desta relação difícil e delicada entre cultura e religião. É para ela – sem exclusividade – que me voltei quando entrei explicitamente na perspectiva antropológica. Um dos meus trabalhos de Mestrado foi precisamente sobre a Missa do Morro, a minha pesquisa de doutorado se deu em Portugal, à procura do sentido das Festas de Santos e das Romarias. Quando voltei  ao Brasil, é a rivalidade do estamento militar com o estamento eclesiástico em torno da gerência do  “Brasil-Pátria” que me pareceu importante estudar naquela hora. Enfim, raizes culturais, tanto afro quanto portuguesas, bem como embates político-religiosos atuais, era do Brasil e especialmente do Brasil católico que se tratava. De um modo ou de outro, continuou assim.

IHU On-Line - Como você avalia a situação atual das ciências sociais da religião no Brasil?

Pierre Sanchis
- Imagino que se possa resumir assim a trajetória recente das ciências sociais da religião no Brasil:Um primeiro momento bastante ocupado por um estudo clássico de sociografia religiosa, em perspectivas ligadas às grandes religiões tradicionais, especialmente o catolicismo. Já então pelo menos uma obra (Candido Procópio) prenunciava uma segunda etapa, mais pluralista e mais crítica, mais especificamente “brasileira” também. Mas um grande problema se generalizava: no cerne mesmo da instituição “oficial” católica, que continuava sendo o centro das atenções, inscrevia-se a existência de um(uns) sistema(s) marginal(ais) (institucionalmente marginais mas socialmente centrais...), que esta sua densidade sociológica exigia que fosse  - também – considerado essencial: o catolicismo popular. Por sua vez, nesta dialética entre o “popular” e o “institucional oficial” inscrevia-se, no momento que atravessava a sociedade brasileira, um dramático embate de ordem política. “Religião popular”/”Doutrina oficial”/”Teologia da Libertação”: como se ia distribuindo consciência política e alienação? Quando a urgência política perdeu de sua agudeza apareceu outra problemática: em que consistiria a dimensão propriamente religiosa da religião?
E qual o destino da importância social desta dimensão na sociedade contemporânea? O tema da secularização ocupou então longamente as atenções dos analistas.  Como a resposta ao problema assim posto não se inscrevia nas perspectivas  nem de confirmação repetitiva nem de próximo desaparecimento, emergia a consciência de uma decisiva transformação. Consciência acompanhada de  dupla constatação. Por um lado, junto com uma menor intensidade difusa da referência religiosa existencial, sobretudo sociamente pública,  a multiplicidade de focos de expansão de uma experiência individual (eventualmente coletiva), que se poderia chamar de “religiosa”, e até de “mística”, embora mística de corte imanentista. Por outro lado a relativização do laço reconhecido desta experiência com as instituições, sobretudo aquelas mais tradicionais, que aparecem como recebidas por herança e menos abrem espaço à expressão individual de visão de mundo e convicção ética. Novo campo de observação e análise: uma religião de experiência, de decisão subjetiva, que procura - ou não - sua articulação com as instituições religiosas que o universo midiático não pára de manifestar, diversificar, ecoar e propor.

Mas uma última etapa parece se desenhar hoje. As instituições tradicionais, elas também, apresentam cada vez mais brechas por onde podem inserir-se experiências, subjetividades, relativizações... As mais recentes observações talvez tenham isso de inesperado: é quando parecia enfraquecer-se a força ordenadora das religiões sobre um fenômeno religioso caoticamente efervescente, que no seio mesmo  dessas religiões nascem espaços  onde esses traços encontram abrigo e legitimação. Lembremos das aparições mariais e do Movimento Carismático na Igreja Católica, do sufismo no Islã brasileiro, do fascínio exercido pelo budismo ou pela meditação transcendental, etc. Parece que está sendo procurado um acerto de novo tipo entre a autonomia (criativa) do indivíduo e a adesão confirmadora a uma “Igreja” (no sentido de Durkheim). Não sem a presença de franjas de sincretismo e também não sem ambivalência, em constante processo de solução, entre conservatismo e novidade, permanência e transformação.
Imagino que tudo isso significa um itinerário produtivo, num campo extremamente dinâmico, e a prospectiva de muitos novos estudos, empíricos (já os tem em rica quantidade e outros continuam bem-vindos) e também teóricos, que a hora talvez exija em maior número. 

IHU On-Line - Você podia comentar um pouco sobre o seu trabalho em torno da "missa do morro", realizada nos anos 60, e suas repercussões no campo da inculturação?

Pierre Sanchis
- Anos de grande fermentação, sóciopolíticas e religiosas. Com repercussões na dimensão ritual, importante no catolicismo. Ora, parecia-me evidente que os agentes da renovação não chegavam a dar um passo decisivo, em direção à introdução na liturgia católica de elementos rituais que tornariam sensível e presente nela a cultura brasileira, especialmente popular. A realização da “Missa do Morro”, na Bahia (uma expressão musical que foi percebida como evocadora do candomblé, com acompanhamento dos instrumentos baianos típicos), foi tentativa neste sentido, e a repercussão que ganhou, no nível da mídia e do quotidiano de uma opinião crítica, me permitiram analisar como, através  de um fato limitado e aparentemente bem específico, estavam de fato concernidos todos os níveis da realidade social, religiosa e política do momento, não só no plano local, mas nacional e além. Um acontecimento ritual mínimo cristalizava várias dimensões contraditórias de uma situação religioso-política explosiva.
Tratava-se, então, de “aculturação”. Hoje, os estudos, inclusive antropológicos, se multiplicam sobre uma dimensão mais profunda, a “inculturação”, que poderia representar, em princípio, não só uma aproximação, em sentido único, de uma religião com algumas  expressões culturais dos povos que a recebem, mas um encontro reformulador  de mão dupla entre o eixo fundamental de uma religião e o cerne de uma cultura. Imagino que tal fórmula não esconde nada dos problemas agudos que ela encerra...  E que o exemplo concreto da Missa do Morro, situado em perspectiva, por exemplo, e para citar só um, com o  dos Agentes de Pastoral Negros, evidencia o papel da história, que teima em reapresentar ao trabalho de análise problemas aparentemente permanentes, mas em nova roupagem , com complexidade crescente, atores recém-afirmados e repercussão mais densa na espessura da vida social.  

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição