Edição 208 | 11 Dezembro 2006

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KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. São Paulo: Paulinas, 1992.

___________, Uma ética global para a política e a economia mundiais. Petrópolis: Vozes, 1999.

Reproduzimos a seguir a resenha sobre os livros de Hans Küng Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. São Paulo: Paulinas, 1992. Uma ética global para a política e a economia mundiais. Petrópolis: Vozes, 1999 feita pelo professor de Filosofia da Unisinos, José Nedel. A resenha foi originalmente publicada na Revista Filosofia da Unisinos nº 1 volume 7, janeiro e abril de 2006.

Hans Küng

Teólogo, autor de inúmeros livros de teologia, estará no Brasil nos dias 21 a 29 de outubro de 2007. Numa promoção do IHU, ele fará, pelo menos uma conferência sobre o Projeto de uma Ética Mundial e uma conversa com os professores e professoras de teologia da região. Concomitantemente, realizar-se-á a Exposição da Fundação que ele preside sobre a contribuição das grandes religiões da humanidade para uma ética mundial. A Exposição já foi sediada pela sede da ONU em Nova York. Além da Unisinos, Hans Küng deverá passar por Brasília, Rio de Janeiro e Curitiba. Os Cadernos Teologia Pública, no. 21, recentemente editados, publicaram o artigo do teólogo alemão Karl-Josef Kuschel intitulado Bento XVI e Hans Küng. Contexto e perspectivas do encontro em Castel Gandolfo.

Notícia sobre o autor

O conhecido sacerdote e teólogo suíço Hans Küng (nascido em 1928), professor Emérito de Teologia Ecumênica da Universidade de Tübingen, tem vasta obra teológica publicada. Em 1984, ele havia lançado a palavra de ordem: “Sem paz entre as religiões, não haverá paz no mundo” (Christentum und Weltreligionem, epílogo). A questão foi discutida em Paris, em 1989, num Colóquio da UNESCO. Em 1990, o autor desenvolveu suas idéias em moldes mais amplos no livro Projekt Weltethos – Projeto de ética mundial, uma das obras em epígrafe, que teve enorme repercussão, tendo sido traduzida para cerca de dez idiomas. Só na Alemanha dela foram vendidos mais de cem mil exemplares, de acordo com informações contidas na segunda obra em epígrafe, de 1999. Em decorrência disso, o Conde e a Condessa Von der Groeben criaram a Fundação Weltethos, da qual Küng se tornou presidente. A Fundação facultou-lhe a continuidade das pesquisas sobre o tema, após a proibição de lecionar contra ele lançada pelo Vaticano, em decorrência de críticas a questões pontuais da Igreja. Por incumbência do Parlamento das Religiões Mundiais, Küng elaborou, após ampla consulta internacional e inter-religiosa, um esboço de ethos mundial, procurando torná-lo realista, compreensível a todos e suscetível de ser objeto de consenso.

Em 1993, o Conselho do Parlamento das Religiões Mundiais emitiu, em Chicago, uma Declaração sobre Princípios de uma Ética Mundial, visando a uma Aliança de Civilizações. O documento, conhecido como Declaração de Chicago, foi assinado por representantes das mais diversas religiões e está baseada nos princípios de: 1 – Não-violência e respeito a toda vida. 2 – Solidariedade numa ordem econômica justa. 3 – Tolerância e sinceridade. 4 – Igualdade de direitos e parceria entre homens e mulheres. Küng, em seu projeto, antepõe aos quatro um princípio genérico, abarcando o sentido global deles: Verdadeira humanidade, no sentido de humanitarismo, ou seja, de todo ser humano ser tratado humanamente. A Declaração de Chicago resultou confirmada mediante relatório do Conselho de Interação formado por antigos presidentes de Estados ou de conselhos de ministros, sob a presidência do então chanceler alemão Helmut Schmidt. O documento, discutido por peritos das diferentes religiões, em Viena, em março de 1996, sob o título Em busca de padrões éticos globais, foi promulgado em Vancouver, em maio de 1996, em assembléia geral do Conselho de Interação. Em 1997, Hans Küng, em Weltethos für Weltpolitik und Weltwirtschaft – Uma ética global para a política e a economia mundiais, a segunda obra em epígrafe, procurou aplicar o Projeto Ethos Mundial à realidade da política e da economia, lançando, assim, orientações básicas para uma ordem mundial mais humana.

Tópicos relevantes das obras em epígrafe.

Nas duas obras mencionadas, aqui vistas em conjunto, porque são complementares, Hans Küng propõe, para a sobrevivência da humanidade, uma ética mínina a ser alcançada com a cooperação das grandes religiões. Começando, expõe sua concepção de ética e enfoca a necessidade dela para o convívio humano, tendo em vista que o agir ético deve constituir o quadro óbvio do comportamento humano individual e social. Observa que é importante o cumprimento das regras morais; mesmo quem as não quer observar deve deixar pelo menos a impressão de o fazer, como já Maquiavel  aconselhava. De fato, não haverá sobrevivência da sociedade humana sem ética.

Como fundamentação, critério e objetivo da ética, o autor propõe à pessoa humana, que nunca deve ser transformada em simples meio, ou objeto; ao contrário, deve permanecer sempre o sujeito, o objetivo último e o critério da ética. Com o critério universal do verdadeiramente humano, é possível discernir o bem e o mal, o verdadeiro e o falso. Assim, bom é aquilo que duradouramente promove a vida humana em suas dimensões individual e social. Contudo, o autor evita o antropocentrismo tradicional, exagerado, exclusivista, que ignora o padecimento dos animais e negligencia o mundo ambiente. Ao biocentrismo (que pretende atribuir um direito de existência a plantas, animais, espécies biológicas e sistemas ecológicos) e ao holismo (que visa a proteger também a natureza morta por causa dela mesma) contrapõe uma concepção antropocêntrica mitigada, ou seja, uma concepção humana integrativa: em lugar da dominação e da exploração da natureza pelo homem, a vinculação do homem à natureza.

Hans Küng ainda combina ética geral e de situação, além de postular que a ética seja preventiva, colocando prioridades e preferências já na fase da pesquisa, antes da industrialização, a fim de que sirva como profilaxia a crises. Isso já tem a ver com a ética da responsabilidade, que o autor, a exemplo de Max Weber , combina com a de mentalidade. É enfático em postular uma ética de responsabilidade, pois uma simples ética de mentalidade não tem futuro: ela é aistórica (ignora a complexidade da situação histórica) e apolítica (não leva em conta a complexidade das estruturas sociais e do jogo de forças existentes). Consegue até justificar o terrorismo. Em contrapartida, tem futuro a ética de responsabilidade que não exclui a de mentalidade, pois ambas são complementares. Impõe-se perguntar sempre realisticamente pelas conseqüências previsíveis do agir e assumir a responsabilidade por elas. As próprias pessoas, aliás, são responsáveis pela organização concreta de sua moral, na medida em que devem partir de suas experiências, da diversidade de vida e se orientar em determinados fatos. Existe na consciência de cada um, como Kant  já afirmava, uma autolegislação ética e uma auto-responsabilização para a auto-realização e a organização de seu mundo. Nunca estivemos tão conscientes como hoje da nossa responsabilidade global pelo futuro da humanidade. Por isso, o termo-chave para nossa estratégia de futuro deve ser a responsabilidade de todas as pessoas por este planeta, uma responsabilidade planetária. É que o destino da Terra atinge todos os homens, qualquer que seja a religião ou a ideologia a que pertençam.

É bom ver que a responsabilidade planetária postula uma ética global, para toda a humanidade, a interligar e a tornar todos responsáveis. A responsabilidade deve incidir também na política, inclusive externa, e na economia. Entre a política realista e a idealista, deve haver um meio-termo, que é justamente a política no espírito da responsabilidade. Há que se unir o cálculo político (política realista) com o julgamento ético (política idealista). Em suma, convicção e responsabilidade pelas conseqüências previsíveis, principalmente as negativas. Em economia, é preciso unir as estratégias econômicas com as convicções éticas, examinar se o agir econômico não ofende bens e valores mais elevados, se é social e ecologicamente aceitável e compatível com o futuro. Precisamos trabalhar na direção de uma economia de mercado ecológico-social fundamentada na ética. A economia e a ecologia mundiais devem ter como objetivo e critério o homem inserido num mundo ambiente em que valha a pena viver. Em suma, deve-se buscar uma economia de mercado regulada, social e ecológica, uma economia de mercado ecossocial.

Segundo o autor, a necessidade de uma ética mundial aparece sinalizada negativamente: pelas catastróficas evoluções econômicas, sociais, políticas e ecológicas que desfilam diante de nossos olhos. Aliás, também é característica da era pós-moderna a possibilidade de a espécie humana, pela primeira vez em sua história, estar em condições de produzir sua própria extinção. Uma utopia negra é a nova imagem angustiante do futuro. A resposta positiva à pergunta pela necessidade de uma ética mundial vem das condições atuais do mundo que, por ser uno, necessita de uma ética básica, com valores, objetivos, ideais e visões comuns. De fato, o fenômeno da globalização econômica evidencia que também no terreno da ética tem que haver uma globalização. A economia, a tecnologia e a política globais clamam por fundamentação através de um ethos global. No mais, o Estado democrático, embora neutro quanto à cosmovisão, necessita de consenso fundamental mínimo no que tange a determinados valores, normas e posturas.

Segundo o autor, esse ethos mundial – que deve ser libertador, vinculante e tolerante – não vem para ser nova ideologia do mundo nem cultura mundial única, tampouco religião única ou dominação de uma religião sobre as demais. Precisamos, não de uma religião comum, mas de um ethos comum, que não é sucedâneo da religião. Não visa a tornar supérfluo o específico das diferentes religiões e filosofias nem constituir um consenso ético total, ou um máximo “grosso” de ethos, na expressão de Michael Walzer, ou de “moral diferenciada”, expressão preferida pelo autor. Em verdade, o ethos mundial deve ser um consenso ético mínimo, um mínimo necessário de valores, normas e atitudes básicas humanas comuns, que pode ser afirmado por todas as religiões apesar de suas diferenças dogmáticas, suscetível de ser aceito até pelos não-crentes. O Projeto Ethos mundial não tenta difundir os direitos humanos da mentalidade ocidental de um direito natural, mas coligir valores, normas e atitudes das tradições étnico-religiosas próprias de cada povo, com o fim de fazê-los frutificar em prol dos deveres e direitos humanos.

O que se procura é um consenso básico sobre valores comuns, normas e atitudes, que inclua a auto-realização autônoma e a responsabilidade solidária. O núcleo desse ethos global é o que acabou constando da Declaração de Chicago.

O autor enfatiza que entre ethos e religião há complementaridade. Discorre amplamente sobre a importância das religiões mundiais na preservação da paz. Salienta os pontos de vista comuns entre as grandes religiões, a par de suas diferenças. Segundo ele, no tempo presente cabe às religiões mundiais uma co-responsabilidade especial pela paz no mundo, que todas devem reconhecer. No futuro, a credibilidade delas dependerá da medida em que acentuarem mais aquilo que as une do que aquilo que as separa. A humanidade pode cada vez menos dar-se ao luxo de ver as religiões incentivarem guerras ao invés de promoverem a paz, de praticarem fanatismo ao invés de reconciliação, de comportarem-se com superioridade ao invés de incentivar o diálogo. Sem a ajuda das religiões dificilmente se poderia colocar em prática, e com amplo apoio, a obrigação de auto-restrição: de frear o poder, de diminuir o prazer por causa da humanidade futura – exigência colocada por Hans Jonas, entre outros. No mais, as religiões mundiais são sistemas muito antigos e, ao mesmo tempo, contemporâneos, supra-individuais, internacionais e transculturais. Elas permeiam as culturas e os círculos culturais nos quais não se dissolvem simplesmente. São algo como os grandes sistemas fluviais: abrem passagem pelas mais diversas paisagens culturais. Apesar de todos os fenômenos de decadência, sempre de novo demonstraram, através dos milênios, uma inesgotável e indestrutível força espiritual, o que Spengler deixou de perceber.

No que tange à realização dos direitos humanos, Küng reconhece um déficit em todas as religiões mundiais, como também ocorre em quase todos os Estados. É sabido que, muitas vezes, o reconhecimento desses direitos aconteceu em luta ferrenha com as religiões estabelecidas. Em verdade, as religiões deveriam reforçar a Declaração dos Direitos Humanos, fundamentar tais direitos em suas próprias tradições, concretizá-los em vista da situação atual e pô-los em prática em seu próprio terreno. As normas humanitárias do direito internacional deveriam ter força de lei para as religiões. No mais, além do plano jurídico, elas deveriam dar impulsos éticos humanitários, orientar para assumir os deveres humanos e, desta forma, colaborar para a realização de um ethos universal da humanidade.

Segundo Küng, o Estado democrático-liberal tem de suportar diferentes religiões e confissões, filosofias e ideologias. Não deve prescrever legalmente valores superiores ou normas últimas. É bem de ver que a sociedade pluralista não necessita de um consenso rígido ou totalizante, mas de um overlapping consensus, consenso coincidente, como concebido por John Rawls .

Carecemos de uma nova ordem social no mundo, em que haja conjugação de valores: não só liberdade, mas também justiça; não só igualdade, mas também pluralidade; não só fraternidade, mas também irmandade; não só coexistência, mas também paz; não só produtividade, mas também solidariedade com o meio ambiente; não só tolerância, mas também ecumenismo; não só verdade, mas também liberdade. Impõe-se conjugar valores, acolher as diferenças toleráveis, promover a comunhão das pessoas humanas, inclusive com as demais criaturas, sem fanatismos, absolutismos, indiferentismos, relativismos.

Em relação à verdadeira apaziguação das religiões, portadoras de um potencial de paz, Küng é otimista. Rejeita a visão fatalista do norte-americano Samuel P. Huntington, segundo o qual a luta das culturas e religiões é inevitável. Para o teólogo ecumênico, o pretenso choque global inevitável das civilizações talvez seja o novo modelo de terror de que muitos estrategistas militares têm necessidade. Porém a visão de futuro para a humanidade é a paz global entre as religiões, que deve ser buscada com todas as forças, como pressuposto e fator impulsionador de uma paz global entre as nações. O modelo para o futuro não é, pois, a luta das culturas, mas a cooperação entre elas. O autor observa que a posição dos regimes árabes em relação ao islamismo é tão diversificada, que a partir daí um clash total entre a civilização muçulmana e a ocidental é pouquíssimo provável.

Para Hans Küng, o diálogo inter-religioso, em todos os âmbitos, oficiais e não-oficiais, científico e espiritual, no dia-a-dia, tem agora um peso novo: o interesse pela paz. É que, onde as discussões cessam, iniciam-se repressões, impõe-se o direito dos poderosos, dos mais fortes, dos mais sabidos. Quem dialoga não atira. Isso vale analogicamente também para a esfera religioso-eclesiástica. Seria de bom aviso instaurar inclusive o diálogo e a colaboração com os fundamentalistas na esfera político-social e no terreno religioso-teológico. Assim, o paradigma “pós-moderno” pode ser designado ecumênico.

O autor observa que a abertura teológica em relação a outras religiões de modo algum exige a suspensão das convicções próprias. Aliás, a posição fundamental do verdadeiro ecumenismo é a disposição ao diálogo dentro da firmeza de posição. O diálogo e o testemunho não são excludentes. Obviamente, sequer haveria necessidade de diálogo, se na religião de cada um não houvesse nada de normativo e definitivo. Para isso acontecer, todas as religiões, parceiras paritárias de caminhada, necessitam de transformação multifacetária na busca da verdade maior, do mistério do uno e verdadeiro Deus, que só se revelará de forma plena, no fim da história.

Küng rejeita qualquer determinismo a acenar com necessidades históricas. É que sempre de novo há viragens inesperadas e novas aberturas. As grandes ideologias modernas, que nos últimos dois séculos funcionaram como explicações “científicas” totais e semi-religiões, hoje estão desgastadas. Em suma, não existe fator determinante na história, ou seja, não há leis históricas com precisão científica.

Segundo Küng, o pacifismo absoluto, para o qual a paz é o bem supremo a que todo o mais deve ser sacrificado, é uma irresponsabilidade. Não é suficiente para preservar a paz. O legítimo direito de autodefesa, de conformidade com o art. 51 da Carta da ONU, não é suspenso nem mesmo pelo Sermão da Montanha. A exigência de renunciar à violência não pode ser posta em prática de maneira literal e fundamentalista.
Disseminadas nas obras em exame, encontram-se as seguintes proposições conclusivas do autor: 1 – “Não haverá coexistência humana sem uma ética mundial por parte das nações” (1992, p. 146 e 186). “Não haverá uma nova ordem mundial sem um novo ethos mundial, um ethos global ou planetário não obstante todas as diferenças dogmáticas” (1999, p. 168). “Não haverá nenhuma nova ordem do mundo sem uma consciência ética universal (sem um ethos mundial’)” (1999, p. 187). 2 – Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões (1992, p. 146 e 186). “Não haverá paz entre as civilizações sem uma paz entre as religiões” (1999, p. 167). “Não haverá uma sobrevivência da democracia sem uma coalizão de crentes e não-crentes em mútuo respeito” (1999, p. 167). 3 – Não haverá paz entre as religiões sem o diálogo entre as religiões (1992, p. 146 e 186; 1999, p. 167). 4 – Não haverá diálogo entre as religiões sem uma pesquisa das bases teológicas” (1992, p. 146 e 186).

Os pontos de convergência encontradiços em todas as grandes religiões são o fundamento para a ação sinérgica de todos no sentido da construção da paz mundial. Isso é necessário, porque: ou teremos no terceiro milênio uma “ecumene” pacífica – a exemplo da Europa unificada –, ou não teremos mais nenhuma “ecumene”, não teremos mais uma “Terra habitada”. Temos, pois, de optar pela convivência pacífica.

Apreciação sumária.

Pelo que se infere do exposto, Hans Küng é um otimista em relação ao futuro da humanidade. Assim sendo, combate a visão fatalista de Huntington, bem como as concepções acerca do fim da história, em suas variadas formas. Defensor da liberdade humana, mantém aberto o horizonte da história, não sujeito a leis necessitantes com precisão científica. Seu otimismo, contudo, está longe de alcançar as raias da pura utopia, por cultivar um vivo senso realista. Aliás, tenta unir o princípio realista da responsabilidade (Weber e Jonas) com o idealista da esperança (Bloch), como ele mesmo assinala. Talvez lhe coubesse também a imputação de uma “utopia realista”, como pretende John Rawls, na aplicação de sua teoria da justiça ao âmbito internacional.

Isso leva a uma outra característica, a da moderação, do meio-termo aristotélico da virtude, entre posições extremas, na economia, na política, no trato com as tradições culturais e religiosas, o que lhe propicia sólida base para o diálogo inclusive inter-religioso e ecumênico.

O autor segue a tradição clássica na filosofia do agir também pela concepção da unidade da moral, a mesma fundamentalmente para o indivíduo e o Estado. É a aplicação da doutrina da lei natural, que tem entre suas propriedades a da universalidade. Outro aspecto clássico é o do critério da moralidade, a pessoa humana, a verdadeira humanidade. Esse critério não foi criado, mas lapidarmente formulado por Kant, cuja influência o autor evidencia, inclusive, em outros aspectos.

Na crítica ao exercício abusivo da razão instrumental e na proposta de soluções para os problemas ecológicos, o autor acompanha o pensamento predominante da atualidade. A influência de Hans Jonas sobre ele resulta evidente. Sábia é a observação de que o saneamento da razão e da técnica, em suas extrapolações, não se faz com mais razão e mais técnica. Para tanto, é preciso passar a uma outra ordem de valores, a das tradições éticas e religiosas da comunidade.

A recepção das idéias de Hans Küng no mundo, nomeadamente no seio das religiões mundiais, é garantia de eficácia futura, embora as ingentes tarefas de sua efetivação estejam ainda por serem feitas, em sua maior parte. Os trágicos acontecimentos dos últimos anos – atentados em Nova York, Madri e Londres, entre outros – não autorizam ninguém a qualificar a Declaração de Chicago, que consubstancia o projeto de ethos mundial acalentado pelo autor, de “intento falido”, como faz Reyes Mate (Uma cultura do consenso. El País, 11 set. 2005). É consabido que princípios e regras morais, embora violados, não perdem a validade. Atuam na consciência das pessoas, dos grupos e povos e produzirão seus efeitos, no tempo oportuno. A história dos homens é farta em viradas e novas aberturas, não raro, contra toda e qualquer expectativa meramente humana. Com certeza, ela é governada, se não por uma “astúcia da razão”, por uma Providência que é, afinal, o fundamento do otimismo realista do teólogo ecumênico Hans Küng, que merece toda consideração e respeito, por sua contribuição para a pacificação dos espíritos, das religiões, das culturas.

Em fevereiro de 2006, realizou-se na PUCRS, em Porto Alegre, a IX Assembléia do Conselho Mundial das Igrejas, com a participação de representantes de 110 países. O Conselho é constituído de 347 igrejas cristãs, não incluída a católica, que todavia funciona como parceira e observadora. A realização da Assembléia, em atmosfera de acolhimento, amizade e convívio fraterno, evidencia que o entendimento e a cooperação entre essas instituições, cujo relacionamento ao longo da história sem sempre foi pacífico, é não só possível, mas real e em avanço progressivo. Abre-se, com certeza, uma expectativa de futuro promissor na direção do objetivo comum, que é o de alcançarem maior compreensão mútua, diálogo, cooperação e unidade, para a edificação de um mundo melhor, mais justo, pacífico e fraterno, em conjunto com as demais forças vivas das comunidades. É precisamente na dimensão delineada por Hans Küng.

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